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AS PUPILAS DO SENHOR REITOR
AS PUPILAS DO SENHOR REITOR

DINIS, Júlio. As Pupilas do Senhor Reitor. 8ª ed., São Paulo: Editora Ática, 1987.

Fonte: www.dominiopublico.gov.br

Capítulo I

José das Dornas era um lavrador abastado, sadio e de uma tão feliz disposição de gênio, que tudo levava a rir; mas desse rir natural, sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, e não do rir dos Demócritos de todos os tempos rir céptico, forçado, desconsolador, que é mil vezes pior do que o chorar.

Em negócio de lavoura, dava, como se costuma dizer, sota e ás ao mais pintado. Até o Sr. Morais Soares teria que aprender com ele. Apesar dos seus sessenta anos, desafiava em robustez e atividade qualquer rapaz de vinte. Era-lhe familiar o canto matinal do galo, e o amanhecer já não tinha para ele segredos não revelados. O sol encontrava-o sempre de pé, e em pé o deixava ao esconder-se.

Estas qualidades, juntas a uma longa experiência adquirida à custa de muito sol e muita chuva em campo descoberto, faziam dele um lavrador consumado, o que, diga-se a verdade, era confessado por todos, sem esforço de malquerenças e murmurações. Diz-se que quem mais faz menos merece e que mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga, e não sei o que mais; será assim; mas desta vez parecia que se desmentira o ditado, ou pelo menos que o fato das madrugadas não excluíra o auxílio providencial, porque José das Dornas prosperava a olhos vistos. Ali por fins de agosto era um tal de entrar de carros de milho pelas portas do quinteiro dentro! S. Miguel mais farto, poucos se gabavam de ter. Que abundância por aquela casa! Ninguém era pobre com ele; louvado Deus!

Como homem de família, não havia também que por a boca em José das Dornas. Em perfeita e exemplar harmonia vivera vinte anos com sua mulher, e então, como depois que viuvara, manifestou sempre pelos filhos uma solicitude, não revelada por meiguices, que lhe não estavam no gênio, mas que, nas ocasiões, se denunciava por sacrifícios de fazerem hesitar os mais extremosos.

Eram dois estes filhos, Pedro e Daniel. Pedro, que era o mais velho, não podia negar a paternidade. Ver o pai era vê-lo a ele; a mesma expressão de franqueza no rosto, a mesma robustez de compleição, a mesma excelência de musculatura, o mesmo tipo, apenas um pouco mais elegante, porque a idade não viera ainda curvatura de certos contornos e ampliar-lhe as dimensões transversais, como já no pai acontecia. Conservava-se ainda correto aquele vivo exemplar do Hércules escultural.

Pedro era, de fato, o tipo de beleza masculina, como a compreendiam os antigos. O gosto moderno tem-se modificado, ao que parece, exigindo nos seus tipos de adoção o que quer que seja de franzino e delicado, que não foi por certo o característico dos mais perfeitos homens de outras eras.

A organização talhara Pedro para a vida de lavrador, e parecia apontá-lo para suceder ao pai no amanho das terras e na direção dos trabalhos agrícolas. Assim o entendera José das Dornas, que foi amestrando o seu primogênito e preparando-o para um dia abdicar nele a enxada, a foice, a vara, a rabiça, e confiar-lhe a chave do cabanal, tão repleto em ocasiões de colheita.

Daniel já tinha condições físicas e morais muito diferentes. Era o avesso do irmão e por isso incapaz de tomar o mesmo rumo de vida. Possuía uma constituição quase de mulher. Era alvo e louro, de voz efeminada, mãos estreitas e saúde vacilante.

O sangue materno girava-lhe mais abundante nas veias, do que o sangue cheio de força e vida, ao qual José das Dornas e Pedro deviam aquela invejável construção. Votar Daniel à vida dos campos seria sacrificá-lo. Apertava-se o coração do pobre pai, ao lembrar-se que os sóis ardentes de julho ou os tufões regelados de dezembro haviam de encontrar sem abrigo aquela débil criança, que mais se dissera nascida e criada em berços almofadados e sob cortinados de cambraia, do que no leito de pinho e na grosseira enxerga aldeã.

E desde então, desde que pensou nisto, uma ideia fixa principiou a laborara no cérebro daquele pai extremoso e a monopolizar-lhe as poucas horas que o trabalho não absorvia. De vez em quando o encontravam os amigos deveras preocupado, o que, sendo nele para estranhar, excitava curiosidades e receio e desafiava interrogações. O reitor foi um dos que mais se importou com a preocupação do nosso homem.

Era este reitor um padre velho e dado, que há muito conseguira na paróquia transformar em amigos todos os fregueses. Tinha o Evangelho no coração, o que vale muito mais ainda do que tê-lo na cabeça. A qualidade de egresso não tolhia os ser liberal de convicção. Era-o como poucos.

Ó homem de Deus, disse pois o reitor um dia, resolvido deveras a sondar as profundezas daquele mistério, que tens tu há tempos a esta parte? Que empresa é essa em que me andas a cismar há tantos dias?
— Que quer, Sr. Padre Antônio? um homem de família tem sempre em que cuidar; tem a sua vida e tem a dos filhos. Foi a resposta que obteve.

— Ora essa! insistiu o padre. Bem alegre te via eu, em tempos mais azados para tristezas, e bem alegres vejo muitos com bem outras razões para o contrário. Mas tu! Que mais queres? Tens bons haveres para deixares a teus filhos.; mas, quando não os tivesses, sempre eram dois rapazes; e deixa lá, José; um homem é outra coisa que não é uma mulher; onde quer se arranja; toda a terra é sua; em toda a parte encontra o que fazer, e qualquer trabalho lhe está bem. Agora os pobres que vejo por ai com um rancho de raparigas, coitadinhas, que ficam mesmo ao desamparo de todo, se a sorte lhes roubar o pai... esses, sim, é que não sei como podem ter um momento de alegria; e contudo encontrá-los nas festas, que é um louvar a Deus.

— É assim, Sr. Reitor, eu sei que os há por aí mais infelizes do que eu, mas...
— Mas então, quem tem saúde e a quem Deus não falta com o pão nosso cotidiano, só deve erguer as mãos ao céu para lhe tecer louvores. Mareia a tua vida, que teus filhos não são nenhuns aleijados para precisarem pedir esmolas.

— Graças a Deus que não são, Sr. Reitor. O Pedro, sobretudo, não me dá cuidados. O Senhor fê-lo robusto e fero; é um homem para o trabalho; e quem pode trabalhar não precisa de outra herança. Pelo trabalho, e com a ajuda de Deus, fiz eu esta minha casa, que não é das piores, vamos; ele, com menos custo, a pode agora aumentar, se quiser. Mas o Daniel já não é assim. Aquilo é outra mãe, o Senhor a chame lá. Um dia de ceifa é bastante para mo matar. É a sorte dele que me dá cuidado. Então é só isso? Ora te valha Deus! É verdade. O pequeno é fraquinho e decerto não pode com o trabalho do campo, mas... para que queres tu o dinheiro, José? Acaso não terás alguns centos de mil-réis ao canto da caixa para pôr o rapaz nos estudos? Não podes fazer dele um lavrador? Fá-lo padre, letrado ou médico, que não ficarás pobre com a despesa.

José das Dornas ao ouvir assim formulado o conselho do reitor sorriu com a visível satisfação que sempre experimentamos, vendo que um dos nossos pensamentos favoritos merece a aprovação de alguém, antes de lho revelarmos.

— Nisso mesmo penava eu. Já me lembrou mandá-lo estudar, mas tinha cá certos escrúpulos.
— Escrúpulos! Valha-te não sei que-diga! Pois ainda és desses tempos? Que escrúpulos podes ter em mandar ensinar teus filhos? Fazes-me lembrar um tio meu que nunca permitiu que as filhas aprendessem a ler; como se pela leitura se perdesse mais gente do que pela ignorância.

— Não é isso, Sr. Padre Antônio, não é isso o que eu quero dizer; mas custa-me dar a meus filhos uma educação desigual. Vê Vossa Senhoria. São irmãos e , mais tarde, o que tomar melhor carreira e se elevar pelo estudo, há de desprezar o que seguir a vida do pai, a ponto de que os filhos dum e doutro quase não se conhecerão: é o que mais vezes se vê. Não é uma injustiça que faço a Pedro a educação que der a Daniel?

— Homem de Deus, não há desigualdade verdadeira, senão a que separa o homem honrado dos criminosos e mau. Essa sim, que é estabelecida por Deus, que, na hora solene, extremará os eleitos dos réprobos. Educa bem os teus filhos em qualquer carreira em que os encaminhes; educa-os segundo os princípios da virtude e da honra, e não os distanciará, acredita; porque, cumprindo cada um com o seu dever, serão ambos dignos um do outro e prontos apertarão as mãos onde quer que se encontrem. E no sentido mundano, julgas tu que fazes mais feliz Daniel, por o elevares a uma classe social acima da tua! Aí, homem, como viver enganado! o quinhão de dores e provações foi indistintamente repartido por todas as classes, sem privilégio de nenhuma. Há infortúnio e misérias que causam o tormento dos grandes e poderosos, e que os pobres e humildes nem experimentam, nem imaginam sequer. Grande nau grande tormenta: hás de ter ouvido dizer. Sabes que mais José? – concluiu o reitor – manda-me o rapaz lá por casa, que eu lhe irei ensinado o pouco que sei do latim, e deixa-te de malucar!

Com estas e idênticas razões foi o bom do padre convencendo José das Dornas, que nada mais veementemente desejava do que ser convencido e, decorridos oito dias, via-se já Daniel passar, com os livros debaixo do braço, a caminho da casa do reitor.

Capítulo II

— Ó ti'Tomásia, dizia, ao vê-lo passar, uma velha que, sentada ao soalheiro, fiava, rezava padre-nossos e cabeceava com sono, o pequeno do José das Dornas anda agora nos estudos?
— Pois não sabe que o pai o quer pôr a padre? Respondeu a vizinha da porta de cima, ao passo que desenredava uma meada e fazia soltar à dobadoura os mais inarmônicos gemidos.
— Toma que te dou eu! A coisa vai ser grande então!

— Bem se diz: mais anda quem tem o bom vento, do quem muito rema. Verá você, ti'Custódia, que o Pedro, que se mata com trabalho, há de ter sempre vida de galés, sem nunca levantar cabeça; e o pelém do irmão é que há de pimpar de senhor e dar leis em casa.

— Uma coisa assim! Já agora havia mister de um senhor abade ou cônego na família! Ora este mundo sempre está!
— E então veja que padre aquele! A mim não me engana a pinta. É de boa raça. Não tem dúvida nenhuma.
— Sai ao lado da mãe, vizinha. Lembra-se do tio dele, o Joaquim do Morgado? Que menino!

A inflexão com que falou este menino! foi pronunciado era altamente significativa. É de crer que o referido Joaquim do Morgado, cunhado de José das Dornas, deixasse indeléveis recordações entre as mulheres de sua época.

— Se me lembra! Aquilo era uma coisa por maior. Bastava dar-lhe um pouco de trela, que ele aí estava! Nanja eu, comigo nunca ele fez farinha. E dizendo isto, desviava a cara a abaixava-se para apanhar o novelo que deixara cair, enquanto a vizinha fazia um gesto e resmoneava um aparte ininteligível, que ambos pareciam contrariar a última asserção da velha e pôr em dúvida a sua apregoada isenção de outros tempos.

— Nem comigo, ti'Tomásia disse, em tom já elevado, esta do aparte, nem comigo, que ele bem sabia com quem se metia. Desta vez, gesto e aparte pertenceram à outra interlocutora, e tinham a mesma significação. É certo, porém, que Daniel ia andando com seu latim e, dentro em pouco tempo, já papagueava os substantivos e os adjetivos com incrível e surpreendente velocidade.José das Dornas divertia-se excessivamente a ouvi-lo.

As declinações ditas pelo filho em voz alta "lá lhe caiam no goto" como ele dizia; e já procuravam imitá-lo nas suas horas de bom humor, que, segundo já afirmamos, eram numerosas.
— Dize lá, rapaz, dize lá. Então como é? Como é? Altrotoro, altrotoro, altrotoro. Ó tranca, ó trinque, ai, diabos, diabos, diabos. Ah! Ah! Ah! Ora dize lá, rapaz, dize lá. E Daniel principiava a repetir as lições acompanhado das gargalhadas de José das Dornas que, sem o saber, ia demonstrando com o exemplo um grande preceito de instrução, tantas vezes recomendado: o de vencer, pelo estímulo do agradável, o fastio que acompanha o estudo. De fato, a facilidade com que Daniel retinha já as enfadonhas lições da arte do Padre Pereira era em parte devida à maneira por que lhas amenizavam estes gracejos do pai; quanto mais arrevesados eram os nomes, com mais vontade os decorava Daniel, para despertar com eles a estranheza e hilaridade paternas.

Que estrondosas gargalhadas se não deram na noite em que repetia em voz alta a declinação do relativo Qui e seus compostos!
— Ora essa! dizia José das Dornas, que vem cá a ser isso? Qui, qui, qui, qui... Ai que o Sr. Reitor quer me ensinar ao filho a língua dos cevados! E toda a família desatava a rir, e Daniel mais que todos.

E assim procedia o menino Daniel nos seus estudos com grande aprazimento do reitor, que muitas vezes dizia ao pai, em tom confidencial.
— Sabes que mais, José? O rapaz é esperto, e era até um pecado desviá-lo do estudo, para que tem tanta queda. Olha que me estudou as linguagens em oito dias!

José das Dornas não podia avaliar ao certo e gênero e grau de dificuldade que vencera o filho; mas entendeu, lá de si para si, que fora alguma coisa de heroico, e nesse dia não pode deixar de olhar para o rapaz como se ele tivesse no rosto o que quer que fosse de estranho – a auréola dos predestinados para grandes coisas.

— E então, Sr. Reitor – perguntou ele um dia ao mestre – o pequeno vai bem?
— Otimamente. O Suplício para ele é já como água de unto. Qualquer dia passo-o para o Eutrópio e dentro em pouco para o Cornélio. Estas sucessivas passagens do Suplício para o Eutrópio, e do Eutrópio para o Cornélio, impressionaram profundamente José das Dornas. Lá lhe pareceu aquilo uma façanha ginástica admirável.

— Faremos dele um padre Sr. Reitor?
— Que dúvida? E um padre às direitas. 
Ora aqui é que o bom do pároco se enganava, como, pouco tempo depois, ele próprio reconheceu. Foi o caso que, ai por volta de um ano depois que o Daniel principiara os estudos, ele tinha então doze para treze anos,começou o reitor a observar que o rapaz lhe vinha um pouco mais tarde para a lição. Ao princípio eram cinco, dez minutos, um quarto de hora de diferença. Depois cresceu a demora a vinte, vinte cinco minutos, meia hora, e o padre pôs-se a parafusar: — Já não me vai parecendo bem a história. Dar-se-á o caso que o rapaz me ande por aí a garotar? Se eu o sei! E então que ia tão bem! Deixa-o vir, que eu sempre hei de querer saber o que isto é. Nada, não vamos assim à minha vontade. Deixa-o vir.

Se bem o pensou, melhor o fez. Chegou o pequeno, todo ofegante e suado, como quem viera às carreiras, e o reitor, fitando-o com olhar severo e penetrante, disse-lhe antes de lhe dar as bênçãos, que ele, de chapéu na mão, lhe pedia: — Olha cá, Daniel; donde vens tu a estas horas? O rapaz fez-se vermelho como um lacre, e não atinou com a resposta. Ficou-se a coçar na cabeça, a encolher-se, a engolir em seco, a rosnar não sei o quê, e... mais nada.

— Anda que eu desconfio que me vais saindo garoto. E, se assim é, tens que ver comigo. Grandessíssimo brejeiro! Teus pais manda-te para o estudo ou para andares jogando pedra com a outra canalha?
— Eu não andei jogando pedra, não senhor! exclamou Daniel com uma tão eloquente vivacidade que, sem possível ilusão, atestava que ele não mentia.
— Então que fez vossemecê até estas horas? 
Nova confusão do rapaz.
— Eu hei de saber; hei de mandá-lo vigiar, e depois direi a seu pai.

Nos quinze dias que se seguiram a esta cena, Daniel foi pontual às horas da escola. O reitor estava satisfeito com a emenda do rapaz, e lisonjeado, lá muito para si, com o seu poder persuasivo e a conversão que operava com uma simples admoestação.

Ao fim de duas semanas encontrou-se por acaso com José das Dornas, e já não se lembrava até de lhe fazer queixa do filho, que assim entrara obediente no bom caminho do dever. José das Dornas, porém, é que se mostrava preocupado. Quanto mais o padre lhe gabava a habilidade de Daniel, tanto mais o bom homem parecia constrangido, limitando-se a soltar uns ininteligíveis monossílabos em sinal de aprovação.

— Que tens tu, José? Ao modo que te estou estranhando! exclamou o reitor, já um pouco impaciente.
— É que, Sr. Padre Antônio, eu... a falar a verdade... queria dizer-lhe uma coisa.
— Pois dize, homem, dize para ai. Então deste agora em fazer cerimônias comigo?
— Eu sei o grande favor que o Sr. Reitor me faz ensinando o pequeno...
— Bem, bem, adiante; deixemo-nos agora disso. Se eu o ensino, é porque quero e gosto. O que estimo é que ele aproveite, como de fato aproveita; o mais são histórias.
— Pois muito agradecido. Mas dizia eu... sim... custa-me a explicar...
— Com S. Pedro! Fala, homem, dize lá o que tens a dizer.

— É que o rapaz a modo que é fraquito, e então...
— E então o quê?
— Tenho medo que, estudando demais, me adoeça por aí, e...
— Mas ele estuda demais?
— Não, senhor; mas... sim... queria eu dizer, que talvez fosse bom que o Sr. Reitor o demorasse menos na aula. Digo eu isto, mas se vir que...

— Sim, sim, mas então... vamos a saber, então ele demora-se muito?
— Não digo que seja muito. Tudo é necessário, bem sei...Mas... quero eu dizer... para quem é fraco como ele... Como sai às duas horas e vem só às trindades... e às vezes à noite fechada...

O Reitor ficou como se lhe caíra o coração aos pés, ficou... diga-se a frase, visto que a autorizou quem podia, ficou desapontado. Das duas horas às trindades, e à noite cerrada, às vezes, quando ele lhe entrava em cada às três e lhe saia pouco depois das cinco! Tinha assim o padre de modificar duplamente o seu juízo, quanto ao rapaz e quanto a si, descrendo da conversão do primeiro e do seu próprio poder de catequese. Este sacrifício em duplicado, custou-lhe e conservou-o por algum tempo mudo. Esteve para contar ao pai a história toda, mas calou-se. Tinha um coração generoso afinal de contas e compreendeu que a revelação, afligiria o velho.

— Tens razão, homem, limitou-se pois a dizer. Tens razão. O rapaz há de sair mais cedo. Eu olharei por isso. Mais alguns dias só, para chegar cá a um ponto que eu quero, e depois será como dizes. E lá consigo dizia o bom padre.
— Deixa estar, meu Danielzinho, que eu hei de saber por onde tu me vais, depois que te mando embora. Deixa estar, deixa, que me não tornas a enganar, meu menino. E foi para casa com firme resolução de elucidar este negócio.

Capítulo III

No dia seguinte deu Daniel a lição de costume, e às cinco horas recebeu ordem de se retirar, - ordem cuja execução, como era natural, não se fez esperar muito. Ele a voltar costas, e o reitor a pôr o chapéu na cabeça para lhe ir na pista. A tarefa não era fácil; basta nos lembrar da agilidade de Daniel, natural à sua idade, e compará-la com os já trôpegos movimentos do velho padre, que, com a pressa que levava, impelia diante de si todas as pedras soltas do caminho.

Foi seguindo direito pelas ruas que o conduziam a casa de José das Dornas e perguntando a quantos conhecidos encontrava, sentados pelas portas ou debruçados nas janelas, se tinham visto passar o pequeno. Por muito tempo foram as respostas afirmativas, o que satisfazia o reitor, pois indicavam-lhe que, até aquele ponto, o rapaz não se havia extraviado, deixando de seguir o caminho de casa.

Chegou, porém, a um largo, onde desembocavam diferentes ruas e azinhagas, e as coisas mudaram então de face. O reitor continuando a seguir seu sistema de indagações, tomou a direção que devia ser mais prontamente o pequeno Daniel aos lares paternos. A porta duma casa térrea, que havia na esquina, dobava uma velha, a qual, ao ver aproximar-se o reitor, ergueu-se, com toda a cortesia da cadeira em que estava sentada.

— Muito boas tardes, tia Bernarda. Diga-me, viu passar por aqui o pequenito do José das Dornas?
— Nosso Senhor venha na companhia de V.S.ª. Pois nada, não senhor, Sr. Reitor. O rapazito passava dantes por aqui todas as tardes; mas haverá coisa de quinze dias, ou três semanas, que já o não tenho visto. 
O reitor pôs-se a coçar na orelha. O delito começava a fazer-se evidente.

— Esta agora, murmurava ele deveras zangado, e depois acrescentou mais alto: E eu que me esqueci de lhe dar um recado para o pai! Diacho!
— Se V.S.ª. quer, eu mando lá a minha neta.
— Nada, não; obrigado. A coisa também tem tempo. Fique-se com Deus, tia Bernarda, e agradecido.
— Nanja por isso, meu senhor. E a velha fez reverência.
— Temos história, dizia o reitor, franzindo o sobrolho e tomando por outro dos caminhos que comunicavam com o largo. Perguntemos aqui e, parou junto dum alpendre rústico, debaixo do qual estava sentado um velho quase paralítico, que procurava nos raios do sol o calor que lhe escasseava nos membros, já regelados pela idade.

— Boas tardes, tio Bonifácio, disse o reitor, elevando a voz e parando defronte dele.
— Sr. Padre Antônio, um criado de V. Rev.ma.
— Sabe me dizer, tio Bonifácio, se o pequeno do José das Dornas passou há pouco tempo por aqui? O velho, já meio surdo, fez repetir a pergunta em tom mais elevado, e depois dum momento de silêncio, durante a qual pareceu interrogar a memória, já perra e enfraquecida.

— Sim senhor! vi, respondeu, acenando afirmativamente com a cabeça, Vi sim senhor. Passou aqui com os bois, há meia hora.
— Com os bois! Aí, esse é o Pedro. Falo no pequeno: no Daniel.
— Ah! nada... esse... ah! sim, sim... um que anda nos estudos?
— Esse mesmo.
— Sim, pelos modos que... agora neste instante ele passou a correr, para o lado dos açudes.
— Obrigado, tio Bonifácio.

— O mafarrico do rapaz que terá para fazer do lado dos açudes? Dizia o padre consigo, tomando a direção indicada. Efetivamente pelo novo caminho que seguia, iam-lhe dando informações de Daniel, acrescentando de mais a mais, que, havia coisa de duas semanas, era ele certo por ali todas as tardes. O reitor dava-se a perros, para atinar com o motivo de semelhante rodeio.

— Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo! Para que virá o rapaz dar esta esquisita volta? De certo ponto por diante faltaram-lhe as informações, porque o sítio se tornava quase despovoado. A tarde ainda estava longe do seu fim; mas umas nevaditas começavam a levantar-se dos campos e lameiros, e o reitor, que tinha o seu reumático a atender, já ia perdendo grande parte daquele fogo com que encetara a pesquisa. No meio dum estreito e alagado caminho, que seguia tortuosamente por entre dois campos de centeio, parou e entrou a refletir: — O rapaz sumiu-se. Para o ir procurar assim à toa e a estas horas do dia não estou eu. Vão lá atrás do homem da capa preta. Quem sabe onde o diabrete foi dar agora consigo? O pai que o procure que tem obrigação disso. O melhor é retirar em boa ordem, antes que venha o frio da noite.

Já se preparava para seguir o prudente conselho, que a si próprio acabava de dar, quando lhe despertou a atenção um assobio agudo e vibrante, cujo timbre lhe era tão conhecido como a toada da cantiga que executava.

— Olá, disse o reitor, parando equilibrado sobre duas alpondras no meio do lamaçal do caminho Moiro na costa, ou eu me engano muito! Pôs-se a escutar de novo, e cada vez mais parecia confirmar as suas suspeitas, acabando de se convencer de todo, quando, ao assobiar, sucedeu uma voz infantil, que ele logo reconheceu como a do discípulo, cantando, ainda na mesma toada, que era de uma música popular, as seguintes coplas.

Morena, Morena.
De olhos castanhos.
Quem te deu, morena,
Encantos tamanhos?

Encantos tamanhos.
Não vi nunca assim.
Morena, morena,

Tem pena de mim.
Morena, morena,
De olhos rasgados.

Teus olhos, morena,
São os meus pecados.
São os meus pecados.
Uns olhos assim.

Morena, morena,
Tem pena de mim.
Morena, morena,
Dos olhos galantes.

Teus olhos, morena,
São dois diamantes.
São dois diamantes.

Olhando-me assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.

Morena, morena,
Dos olhos morenos.
O olhar desses olhos.
Concede-me ao menos.

Concede-me ao menos.
Não sejas assim.
Morena, morena.

Tem pena de mim. Temos o homem, disse o reitor, depois de ouvir a cantiga, e enfiou resoluto pela rua adiante. Mas tendo dado alguns passos mais, parou como se mudasse de tenção.  Nada, não convém que ele me veja. É preciso espiá-lo sem que ele dê por isso.

Feita esta reflexão, passou um rápido exame ao terreno e retrocedeu. Dobrou novamente a esquina da viela em que se introduzira; costeou o campo do lado direito, até se lhe deparar uma cancela rústica, que não lhe opôs a mínima resistência, e oculto pelo centeio, caminhou, o mais prudentemente que pôde, até o lugar correspondente àquele de onde partia a voz e daí por diante até descobrir a caça que procurava. Não levou muito tempo a realizar o seu intento. Eis a cena que viu o reitor, acocorado ente o centeio, com a bengala fixa no chão, mãos apoiadas na bengala, o queixo apoiado nas mãos.

Capítulo IV

Defronte do campo, donde, com as melhores intenções deste mundo, o reitor estava espionando, e separado apenas dele pela estreita e úmida rua, de que já falamos, estendia-se um trato de terreno inculto, muito coberto de tojo e de giestas, e dessa espontânea vegetação alpestre, que, no nosso clima, enflora ainda mais os montes mais áridos e bravios.

Dispersas por toda a extensão deste pasto, erravam as ovelhas e cabras de um numeroso rebanho, de que eram os únicos guardadores, um enorme e respeitável cão pastor e uma rapariguita de, quando muito, doze anos de idade. Até aqui nada de notável para o reverendo pároco. Mas o que o maravilhou foi o grupo que formavam, naquele momento, a pequena zagala, o cão e o nosso conhecido Daniel, por via de quem o bom do padre empreendera tão trabalhosa excursão.

A pequena sentada junto de uma pedra informe e musgosa, folheava com atenção um livro, dirigindo, de tempos em tempos, meios sorrisos para Daniel, que, deitado aos pés dela, de bruços, com os cotovelos fincados no chão e o queixo pousado nas mãos, parecia, ao contemplar embevecido os olhos da engraçada criança, estar divisando neles todos os dotes mencionados na canção da Morena, que lhe ouvimos cantar.

Jaziam ao lado dos dois uma roca espiada e os livros de Daniel. Completava o grupo o cão, enroscado junto do pequeno estudante com desassombrada familiaridade, e denunciando assim que o conhecimento entre eles, e por conseguinte de Daniel com a pastora, não era já de recente data.

Este grupo, apesar de toda a sua beleza artística, realçada pelas meias tintas do crepúsculo e por o fundo alaranjado do céu, sobre que se desenhavam os rendados das árvores ao longe, não agradou de maneira nenhuma ao reitor, que, com um franzir de sobrolho, mostrou claramente a contrariedade que ele lhe fazia experimentar. Esteve para surgir entre o centeio e mostrar-se aos enlevados personagens deste idílio infantil, severo e terrível, como o velho vulto do gigante Adamastor, nas estâncias do grande épico.

Pôde, porém, conter-se e constrangeu-se a observar a cena, com mal reprimido desagrado. A pequena, que estivera por muito tempo inclinada sobre o livro, como a lutar com alguma dificuldade de leitura, que procurava vencer por si, acabou por fazer um gesto de impaciência, e, apontando com o dedo a palavra da dúvida, colocou a página diante de dos olhos de Daniel, perguntando-lhe: — Isto que quer dizer? Daniel olhou por algum tempo para o livro, e afinal respondeu: — Cataclismo.
— E o que vem a ser cataclismo?

Daniel ficou embaraçado. A falar a verdade, ele não sabia bem o que era cataclismo. Não teve coragem para o dizer francamente e titubeou: — Cataclismo... sim... cataclismo é... sim... eu sei o que é... agora para to dizer é que... Cataclismo... O reitor apesar da posição crítica em que estava, não deixou de se zangar lá consigo, ao ver um discípulo seu não poder se desenredar de tais dificuldades filológicas.

Margarida, que era este o nome da pequena, adivinhou a causa da hesitação de Daniel e delicadamente lhe pôs fim, olhando outra vez para o livro e continuando a estudar em silêncio. Daí a pouco voltou, porém, a consultar o seu pequeno mestre.
— E isto? Como se lê?
— Metempsicose  foi a reposta de Daniel.
— E o que vem a ser?

Desta vez ainda o embaraço de Daniel era maior. Nunca ele soubera o que fosse metempsicose, e, como pela segunda vez se via pilhado em falso, perdeu a paciência. Saiu-se do aperto, como alguns professores em casos análogos.
— Ora! Isso é uma coisa que leva muito tempo a explicar. Margarida resignou-se a não entender. Uma terceira interrogação. Desta vez foi a palavra pragmática que a originou.

Daniel estava em maré de infelicidades. Esta acabou de o impacientar. Tirando o livro comprometedor das mãos da discípula, disse com certo despeito mal encoberto: — Deixa-te de estudar, Margarida; não estou agora para isso.
— Mas depois... amanhã...
— Amanhã! Que tem? Sossega, que não te castigo. E demais ainda tens muito tempo. Não vês que só venho e tarde?
— Mas...
— Mas... agora não quero que estudes, quero que cantes.
— Ora cantar! Que hei eu de cantar?
— A cantiga da Morena.
— Eu não gosto dela.
— Não?
— Eu, não.

— Então de qual gosta mais, Guida? Perguntou Daniel, dando à pergunta, e sobretudo àquela familiar alteração do nome de Margarida, uma música de afetuoso galanteio, que não deixaria ficar mal ninguém.
— A da Cabreira, é muito mais bonita.
— Já não me lembra bem. Pois então canta a da Cabreira.
— Agora não.

— Agora sim; e por que a não hás de cantar agora?
— A minha irmã Clara é que a sabe cantar bem, eu não.
— Ora adeus, ela é ainda uma criança, disse Daniel com um soberbo gesto de homem. Eu quero-a ouvir de ti. — Eu julgo que nem a sei.
— Sabes, sabes, ora vamos a ver.
— Olhe... eu canto, mas...

E Margarida pôs-se a cantar e com a voz tão sonora e agradavelmente infantil, que, se o reitor estivesse despreocupado, em uma posição mais cômoda e disposto a julgar com imparcialidade, confessaria que era excelente. Mas na ausência destas condições de juízo desapaixonado, foi um crítico como quase todos. Ai vai o que ela cantava. em uma dessas singelas e monótonas melopeias de quase todas as xácaras populares:

Andava a pobre cabreira.
O seu rebanho a guardar, 
Desde que rompia o dia.
Ate a noite fechar.

De pequenina nos montes.
Não tivera outro brincar,
Nas canseiras do trabalho.
Seus dias vira passar.

— Assim como tu, disse Daniel. Margarida sorriu, fazendo com a cabeça um movimento afirmativo, e continuou:

Sentada no alto da serra.
Pôs-se a cabreira a chorar,
Porque chorava a cabreira,
Ides agora escutar.

"Aí! que triste a sina minha,
Aí que triste o meu penar.
Que não sei de pai nem mãe,

Nem de irmãos a quem amar.
De pequenina nos montes.
Nunca tive outro brincar.

Nas canseiras do trabalho.
Meus dias vejo passar".
Mas, ao desviar os olhos.

Uma coisa que a fez pasmar.
Uma cabra toda branca.
Se lhe fora aos pés deitar.

— Assim, pouco mais ou menos, disse Daniel, pousando a cabeça nos braços encruzados sobre as urzes do chão.

Margarida prosseguiu.
Branca toda, como a neve,
Que nem se deixa fitar,
Coberta de finas sedas,

Que era coisa singular! E, maliciosamente, com um sorriso de travessura infantil, passou os dedos por entre os cabelos de Daniel.

Nunca a tinha visto antes.
No seu rebanho a pastar,
E foi a fazer-lhe festa...

E foi para a afagar... E continuava a correr as mãos pela cabeça de seu jovem companheiro, que sorria.

Eis vai a cabra fugindo.
Pelos vales sem parar;
Ia a cabreira atrás dela.
Mas não a pôde alcançar.

E andaram assim três dias.
E três noites sempre a andar!
Até que a porta de uns paços.

Afinal foram parar.
Chorava o rei e a rainha.
Há dez anos sem cessar,

Que lhe roubaram a filha.
Numa noite de luar.
E dez anos são passados.
Sem mais dela ouvir falar,

Eis chega a cabreira à porta.
À porta foi se sentar.
"Ai que bonita cabreira...

E Margarida, ao cantar este verso, não pôde se conservar séria, vendo Daniel levantar os olhos para ela.

Que lá embaixo vejo estar!
E uma cabra toda branca.
Que nem se deixa fitar.
Meus criados e escudeiros.

Ide a cabreira buscar".
Isto dizia a rainha,
Este foi seu mandar.

Foram buscar a cabreira.
E a cabra de a acompanhar.
Até a sala dos paços.

Onde o rei a viu chegar.
"Pela minha c'roa de ouro.
Eu quero agora apostar,
Que esta é a filha roubada.

Numa noite de luar".
Milagre! Quem tal diria!
Quem tal pudera contar!
A cabrinha toda branca.
Ali se pôs a falar.

A seguinte quadra foi cantada também por Daniel e sem ofensa da harmonia:

"Esta é a filha roubada.
Numa noite de luar,
Andou sete anos no monte.
Quem nasceu para reinar!"

O resultado da intervenção de Daniel foi acabarem os dois a rir, com grande risco de deixarem incompleta a cantiga. A rogos do seu companheiro, Margarida, passados alguns momentos, concluiu:

Que alegrias vão nos paços,
E que festas sem cessar!
A filha há tanto perdida,
No trono os pais vão sentar,

E vêm damas p'ra vesti-la.
E vêm damas p'ra calçar,
E as mais prendadas de todas.

Para as tranças lhe enfeitar.
Vão procurar a cabrinha...
Ninguém a pôde encontrar;

Mas... Foi olhando Daniel que a pequena Guida terminou: Mas um anjo de asas brancas. Viram aos céus a voar E assim acabou a última quadra da xácara, e por algum tempo, as duas crianças se conservaram caladas, como se quisessem seguir ainda, até as derradeiras vibrações, as notas melodiosas daquela voz, ao desvanecerem-se no espaço. Daniel foi o primeiro a romper o silêncio.
— Então, vês como a soubeste até o fim? E cantaste-a tão bem!
— Ora!
— Mas é noite, Guida, Repara. Olha que são horas de tu ires juntar o gado.

E acrescentou, suspirando melancolicamente: — Daqui a pouco estou eu de volta com o meu latim! E que lição tamanha me marcou o padre esta manhã!
— Então de que tamanho é?
— Olha; vai vendo, disse Daniel, abrindo a Seleta e mostrando a Margarida as folhas que o reitor lhe marcara para estudar. É esta lauda... e esta... e esta, até aqui.
— E então isso diz o que diz?
— Conta a vida lá de uns generais antigos que fizeram guerras mortes e que quase sempre se matavam a si, quando não os matavam a eles.
— E para que é preciso que saiba estas histórias quem quer ser padre?
— Eu sei lá! Mas que estás tu a dizer? Padre! padre! Não me fales em ser padre, Guida. Eles cuidam que eu quero mesmo ser padre, estou querendo.
— Então?

— Ora quando chegar a hora eu lhas cantarei. Ainda está por nascer o barbeiro que me há de abrir a coroa. O tio João das Bichas disse-me noutro dia a rir, já se sabe, que já tinha em casa uma navalha afiada para isso; eu fui-lhe dizendo que bem deixava então a navalha para o barbearem em morto.
— Mas o seu pai mata-o!

— Meu pai? Deixa-te disso. Meu pai não há de querer fazer-me padre a força.
— Mas o Sr. Reitor?
— O Sr. Reitor não é cá chamado. Que se meta com a sua vida. Ora é muito boa!
— E por que não quer ser padre, Danielzinho?

— Olhem que pergunta! Não quero ser padre, porque não quero, porque gosto de ti, e, porque, afinal de contas, hei de vir a casar contigo.
— Ora!
— Hei de, sim. Verás. 
E dizendo isso, passou facilmente o braço pelo pescoço da pequena Guida, e pousou-lhe na fronte um beijo que ainda nem sequer a fazia corar. O reitor estava escandalizado e estupefato por quanto vira e ouvira. Tivesse assistido em pessoa ao aparecimento do anticristo, que não se maravilhara tanto.

Esta cena inofensiva, esta écloga entre duas crianças, parecia-lhe mais abominável do que a outro qualquer as mais impudicas aventuras daquele herói, que Byron imortalizou com o nome de D. Juan, nome, já antes dele, de pouco austera memória. Ao chegar a seus atônitos ouvidos, a vibração sonora do beijo, que terminou o diálogo, o padre estremeceu como se acabasse de escutar um silvo de serpente cascavel, e não pôde reprimir uma interjeição desaprovadora, bastante audível, para ser percebida por todas as personagens da cena que descrevemos.

— Não ouviste, Guida? Que foi aquilo? Disse Daniel, já meio erguido e olhando com inquietação ao redor de si. — Não é nada – respondeu esta, com pouco mais de frieza de ânimo. Mas, neste tempo, já o cão se havia levantado e ladrava furiosamente na direção do lugar onde o reitor estava escondido.
— Aqui, Gigante, aqui! bradava-lhe, em vão, Margarida.
— O que estará acolá no centeio para o cão ladrar assim? Perguntou Daniel, já sem pinta de sangue. 
E o cão ladrava cada vez mais, e parecia pronto para arremeter contra um inimigo oculto.

O reitor, como é de prever, começava a achar-se muito pouco à vontade.
— Aqui, Gigante, continuava a pequena, já cansada de bradar. Mas Daniel, assustado, valeu-se do cão, como instrumento de exploração e defesa, e soltou uma palavra imprudente: — Busca, Gigante, pega! Não foi preciso mais nada. O Gigante galgou de um salto o estreito caminho que o separava do campo onde o reitor cada vez suava mais com a iminência do perigo, e rompendo por entre o centeio, veio pousar triunfantemente as patas dianteiras sobre os ombros do pobre velho, que julgou ver a morte na figura deste monstruoso cão.

Como esses bonecos que fazem as delícias dos pequenos feirantes de S. Miguel e do S. Lázaro, no Porto, e que ao se abrir a caixa que os contém, são repentinamente expelidos por uma mola interior, o pároco, ao toque mágico do agigantado quadrúpede, ergueu-se, de súbito, sobre os calcanhares, e, meio sufocado pelo susto e com as faces enfiadas, bradou para Daniel: — Chama este cão rapaz endemoniado! Ele mata-me! Daniel é que não podia lhe valer, tão embasbacado ficou com a inesperada aparição do mestre. A mulher de Ló por certo não se conservou tão imóvel, depois do fatal momento em que cedeu à sua irresistível curiosidade.

A pequena Margarida é que salvou a situação, como me parece que se costuma dizer em política. Armou-se da maior severidade que lhe era possível, e com a inflexão de voz imperiosa, pronunciou um -"aqui Gigante!" que foi prontamente obedecido.

O reitor estava salvo, mas ainda não senhor seu, e deveras chufado com as circunstâncias ridículas que acompanharam a sua descoberta. Ora, como sempre acontece, estas circunstâncias inabilitavam-no para assumir o caráter severo, grave e pedagógico, necessário a quem se propõe a dar uma repreensão ou a fazer uma prática de moral. Com muito bom senso renunciou, pois, o reitor a este projeto, e sem dar palavras, virou costas e abandonou o lugar dessa aventura, interiormente quase tão pouco satisfeito consigo como com o seu discípulo.

Daniel, passados alguns momentos mais de silencioso pasmo, desatou a rir, a rir, a rir, desse expansivo e contagioso rir de criança, que não tem outro igual. Esqueceu o que para ele havia de estranho e sério em tudo aquilo, e as consequências que poderia ter, para só se lembrar da carantonha que fazia o reitor a gritar que lhe acudissem, do susto que apanhara, do aspecto sorumbático que levava ao partir, e por isso tudo ria às bandeiras despregadas.

Vejam lá se o padre não fez bem em adiar o sermão para ocasião mais oportuna? Porém. Margarida? Essa é que não ria. Certo instinto de delicadeza inato em quase todas as mulheres, não sei que vaga presciência de infortúnio, que algumas, de criança possuem, parecia-lhe estar dizendo que tudo aquilo, sem saber por quê, lhe poderia vir a ser funesto. E enquanto Daniel ria, ela, coitada, não se pôde conter, e começou a chorar.

— Que tens tu, Guida? Isso que é? Perguntou-lhe Daniel, já sério e meio sensibilizado. Por que choras assim? — Deixe-me. Não sei bem... mas sinto uma tristeza... e tamanha... tamanha! Vamos. É tarde, vou juntar o gado. — E eu ajudo-te.
— Não. Vá para casa e corra bem, antes que o Sr. Reitor chegue lá primeiro.
— Pois ele irá?
— Ande... corra.

Foi então que Daniel reconheceu que Margarida podia ter alguma razão em não levar o caso a rir, e que não devia ser para ele uma coisa de todo insignificante a aparição do padre ali. Por isso disse adeus à sua companheira, e deitou a correr para casa.

Capítulo V

No dia seguinte, que era um domingo, vestia-se o reitor, na sacristia, para celebrar a missa conventual. Entre as diversas pessoas que assistiam ao ato, ele avistou o nosso conhecido José das Dornas, e a lembrança do ocorrido na véspera surgiu-lhe outra vez ao espírito, acompanhada de todas as circunstâncias desagradáveis que se deram então. Durante a noite, havia o padre, a sós com o travesseiro, tomado uma resolução. Foi, pensando nela, que no momento em que José das Dornas se aproximou mais do lugar, em que ele se paramentava, lhe disse: — Logo, depois da missa, espera-me lá fora, no adro, que temos que conversar. José das Dornas fez um sinal de assentimento, e entrou para a capela. Nada ocorreu durante a missa, que exija especial referência. Foi dita pelo reitor com todas as formalidades do rito, e escutada pelo auditório, e principalmente por José das Dornas, com respeitosa atenção.

Acabada ela, formaram-se diferentes grupos pelo adro, do qual uma frondosa alameda fazia, naquela época do ano, um dos lugares mais apetecíveis da terra; José das Dornas trocou meia dúzia de palavras com alguns conhecidos seus. Falou no tempo, no aspecto das searas, nas mudanças da lua, e pouco a pouco, foi ficando cada vez mais desacompanhado, porque os aldeões iam dispersando, atraídos pela lembrança do jantar que os esperava.

Finalmente achou-se de todo só e se pôs de mãos nos bolsos, a passear no adro. No entretanto ia fazendo suas conjeturas sobre os motivos que levariam o reitor a mandá-lo esperar e sobre a natureza da conversação que ia ter com ele. De fato não tardou. O reitor saiu finalmente da sacristia, e dirigiu-se imediatamente para José das Dornas, que se descobriu ao avistá-lo.

— Está à vontade, José, está à vontade. Ora... nós temos que falar a respeito do teu pequeno.
— Então é preciso comprar-lhe mais alguns livros? O que V.S.ª vir que...
— Nada, nada. A coisa agora é muito diferente.
— Então?

— É que... Ora escuta, José. Lembras-te de que eu te disse, aqui há tempos, que o rapaz havia de ser padre?
— Se lembra? Muito bem. E eu disse...
— Bem, bem. Pois é... se queres que te fale a verdade... parece-me que o melhor... é dar-lhe outra arrumação. José das Dornas parou e pôs-se a olhar boquiaberto para o reitor.

— Então... o pequeno não tem memória para os estudos?
— Tem, tem e até demais... Mas... ouve cá; esta vida de sacerdote quer vocações decididas. Não as havendo, é um grande erro abraçá-la, e um grande pecado constranger alguém a segui-la contra a vontade.
— Credo! pois quem diz menos disso? Mas então, acha o Sr. Reitor que o rapaz não terá queda?

— Hum, hum... murmurou o reitor. Parece-me que não tem grande queda, não.
— Valha-me Deus, mas... por que julga V.S.ª isso? E queira perdoar se sou confiado em perguntar.
— Cá por certas coisas.
— E eu que até me parecia que o pequeno fora mesmo talhado para a vida!
— Também eu o julgava.
— O seu gosto era ajudar a missa.

— Olha lá se o vês agora!
— Até pelos seus brinquedos. Olhe que não havia para ele como armar igrejinhas e pregar sermões.
— Isso agora... quanto a gostos e brinquedos... parece-me que houve sua mudança ultimamente.
— Então? O reitor hesitava em falar a verdade inteira a José das Dornas; por isso, a esta pergunta, começou ainda a titubear, e respondeu evasivamente: 
— Sim... creio que já não se entretém muito com igrejinhas...
— Ah! pois sim... mas... é que agora tem já outras canseiras... Os estudos...
— Ah! os estudos... É o que me lembra.
— Olhe, Sr. Reitor, continuava José das Dornas, um tanto incrédulo a respeito da mudança de inclinação do filho eu finalmente... sim... como o outro que diz... não sei lá as razões que tem V.S.ª para pensar dessa forma... mas a mim está-me a parecer que V.S.ª se engana. O reitor tinha atingido os limites de sua grande paciência. Esta dúvida de José das Dornas, ainda que formulada a medo, acabou por resolvê-lo ser mais explícito.

— E se eu te disser, José das Dornas, exclamou ele, parando e voltando-se para o seu interlocutor, se eu te disser que teu filho Daniel apesar dos seus doze ou treze anos, que será a idade dele, tem já na aldeia a sua conversada? José das Dornas parou como fulminado. O reitor continuou seu caminho.

— Que diz, Sr. Reitor? Exclamou afinal José das Dornas, atrasado já uns cinco ou seis passos, e na mesma posição em que o deixara a revelação.
— O que sei! respondeu o reitor, com eloquente laconismo.
— Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo! Está o mundo roto! Pois o rapaz... Oh, Sr. Reitor, palavra, que se fosse outra pessoa que mo dissesse, eu não acreditava.
— E se eu te afirmar que vi, com os meus olhos, o teu Daniel sentado no monte ao pé de da rapariga, cantando juntos, lendo juntos, e afirmando-lhe o rapaz que nunca há de ser padre, pois queria casar com ela?

— Ora, ora, Sr. Reitor, essa é demais. Há de perdoar, mas essa...
— E se eu te disser que ele lhe deu um beijo, acrescentou o padre em tom confidencial.
— Um beijo!
— E se eu te disser que ele, todos os dias, me sai da aula às cinco horas, e passa o resto da santa tarde junto da pequena?
— Ora o rapazinho!
— Então, já vês que não convém fazê-lo padre. Para dar maus exemplos, temos cá, infelizmente, bastantes. E quando o pano é assim em amostra, que fará a peça inteira.
— Mas que lhe havemos de fazer agora?

— Se te guiares pelos meus conselhos, aí tens um plano: deixa-te de ordenar o rapaz. Pega nele e remete-o quanto antes para um colégio, onde não lhe deixem por o pé em ramo verde. Fá-lo depois médico... advogado... o que quiseres e que ele não repugne...
— Então quer dizer que o mande para Coimbra?
— Para Coimbra? Eu sei? Homem, a falar a verdade, semente desta em Coimbra, é para dar uns frutos por aí além. Para o Porto, onde ele possa estar sob as vistas dos parentes que lá tens, vai muito melhor. Põe-me a cirurgião. Eles hoje, dizem, que saem de lá como de Coimbra, e olha que é uma boa carreira. O nosso João Semana está velho, e, morrendo ele, não temos por aqui mais ninguém. Mas é preciso tratar já disso. Impõe-me o rapaz daqui para foras, se queres fazer dele alguma coisa de jeito.

— Mas, ó Sr. Reitor, e quem era a cachopa?
— Isto agora é que já não é da tua conta. Faze o que eu te digo, e deixa o resto. E nestes termos se separaram os dois, tomando cada um a direção da casa. José das Dornas ainda este por algum tempo impressionado com o que lhe acabara de dizer o reitor. Há notícias de uma digestão demorada e laboriosa, como a de certos alimentos.

Enquanto ela dura, o espírito não se acha à vontade e como que se agita sob a influência de uma incômoda sensação; mas, pouco a pouco, opera-se um íntimo trabalho assimilador, acalma-se a espécie de febre digestiva, que acompanhara aquela elaboração mental, e tudo entra na ordem. A notícia, que nos impressionara, perde enfim quanto se nos havia figurado de estranho; sentimo-nos mais livres e em mais felizes disposições para encararmos os fatos.

Assim aconteceu como José das Dornas: o que, ao princípio, lhe avultara como calamidade, acabou por se transformar em uma coisa naturalíssima e engraçada até; o que lhe parecera desmoronamento de um belo edifício em construção, convenceu-se em pouco tempo que não passava de uma reforma preparatória para futuro melhor; e de carrancudo e pesaroso que ficara ao princípio, acabou por se tornar prazenteiro e quase risonho.

— O rapaz sai-me da pele do diabo! Com quê, já tinha também a sua conversada! Havia mister! Ah!, ah!, ah! E o reitor atrapalhado! Ah!, ah!, ah! Agora é que eu lhe acho graça! E como soube dizer que não havia de ser padre, porque queria casar. Ora o rapazinho! Esperto é ele! Oh lá! Mas como diabo o ouviu o reitor? A falar a verdade... o pequeno tem razão. Eu, que tão bem me dei com aquela santa, que está no céu, como havia de obrigar um filho meu a não gozar de uma felicidade como a minha! Deixar o rapaz... Quer casar? Faz ele muito bem. Deus lhe depare uma boa cachopa, que seja mulher de casa... Mas quem seria a tal? Isso é que o padre não diz. Pois hei de sabê-lo. Sempre mandarei o pequeno para o Porto... E que dúvida! Nas terras grandes é que se fazem os homens... Há de ser cirurgião, se quiser. O reitor lá nisso diz bem, O João Semana está acabado... Padres não faltam... e com a esperteza do Daniel, era uma pena não fazer dele uma outra coisa... Aí o rapazinho que é os meus pecados! Ah! ah! ah! Some-te! Já tem o sangue na guelra. Madruga!

E com estes monólogos e as mais fagueiras disposições de ânimo, chegou José das Dornas a casa, e jantou com apetite. À mesa lançava, às furtadelas, maliciosos olhares para o filho mais novo, o qual, sentindo-se sob iminente pronúncia, não levantava os seus. O pai a custo podia suster o riso ao observá-lo.

Capítulo VI

E ainda bem não tinha decorrido uma semana, depois do que referimos, já o pequeno Daniel era transferido para o Porto na melhor égua da casa, em conformidade com o plano traçado pelo reitor. O rapaz chorou muito ao partir. O pai sensibilizou-se, mas foi dominando a sua emoção conforme pôde. Daniel entrou na cidade invicta com pouca disposições de se lhe afeiçoar. Matavam-no saudades da terra, da família, e mais que todas a da sua pequena Guida, de quem nem ao menos lhe tinha sido possível se despedir, pois nem para isso lhe haviam dado ensejo.

Desde a tarde em que fora surpreendido pelo reitor no inocente colóquio que tanto escandalizou o bom do pároco, nunca mais a tornara a ver, nem dela ouvira falar. Somente, ao despedir-se do seu mestre, este lhe disse, afagando-o nas faces e sorrindo afavelmente: "Vai, que eu continuarei com a lição da tua discípula". Daniel não pôde responder e partiu. Mas, ao ver sumirem-se atrás de si as copas das árvores, a cuja sombra o esperava talvez Margarida, borbulhavam-se as lágrimas nos olhos. Pobre criança!

E Margarida? Essa mais pungentes sentia ainda as saudades. Sempre assim acontece. Em todas as separações, tem mais amargo quinhão de dores o que fica, do que o que vai partir. A este esperam-no novos lugares, novas cenas, novas pessoas; sobretudo espera-o o atrativo do desconhecido, que de antemão lhe absorve quase todos os pensamentos. Vai experimentar outras sensações, e à força de distrair os sentidos, é raro que não acabe por distrair o coração. Mas ao que fica... lá estão todos os objetos que vê a lhe recordar as venturas que perdeu; ali as flores que colheram juntos, para as trocar depois; acolá, a árvore a cuja sombra se sentaram; além o ribeiro que arrebatou na corrente as pétalas, desfolhadas um dia, do bem-me-quer fatídico, que os amantes interrogam; o tronco onde se gravaram unidas as iniciais de dois nomes; o canto dos pássaros que tantas vezes escutaram; o ponto da perspectiva, mais procurado pela vista de ambos... Oh!, há bem mais alimentos para as saudades assim! E depois, o que se ausenta vai esperançado nisto mesmo: em que a afeição, que deixa, lhe será fielmente mantida até a volta; que evitarão o esquecimento das promessas feitas tantas testemunhas que as presenciaram e que, sem cessar, as recordarão; os que ficam anteveem que, longe de tudo que possa falar-lhes delas, pouco a pouco se varrerão essas promessas da memória do ausente, e, ao dizer o adeus da despedida, um amargo pressentimento lhes segreda que dizem adeus a uma ilusão.

Ora é preciso saber que Margarida se sentia triste, profunda e inconsolavelmente triste, sem que lhe acudisse à ideia tudo quanto havemos dito. Porém, a nós, é-nos lícito analisar aquele tenro coração de criança, afeiçoado para os sentimentos e dotado de delicadíssimos instintos, como o de poucos, Alma voltada à melancolia e que se habituara a sentir, sem se estudar! Não há para mim mais simpática espécie de sofredores! os mártires que se analisam, e nos fazem resenha e inventário dos seus tormentos; esses que, todos os dias, desenvolvem em estilo imaginoso a fisiologia do próprio coração indagam a teoria do padecer, que, dizem eles, os torturam e o fazem com uma profundeza de vistas, verdadeiramente filosófica... esses mártires... para falar a verdade, não creio muito neles. Quem sofre deveras, tenho eu para mim, acha-se com pouca vontade de esquadrinhar os mistérios do sofrimento e não se põe com grandes filosofias a esse respeito.

Eu julgo mais natural e sincero fazer como a pequena Margarida, depois da partida de Daniel: subindo todas as tardes ao outeiro silvestre onde tantas vezes ele se viera sentar também, sentia cerrar-se-lhe o coração de tristeza, e... desatava a chorar. Não sei que moda anda agora de se não considerar o choro como a mais eloquente expressão do pesar! Eu, por mim, é dos sinais em que deposito mais fé. Era bem justificada a saudade de Margarida. A curta biografia dela a fará compreender.

Guida era o fruto único do primeiro matrimônio de seu pai, cuja morte recente acabara de a fazer órfã de todo. Entregue ao domínio de uma madrasta, que não desmentia pela sua parte, a fama que de ordinário acompanha este pouco simpático nome, tivera a experimentar, nos maus tratamentos recebidos e na frieza ou declarada aversão, como que lhe dispensavam os poucos cuidados de que se via objeto, toda a amargura de uma existência sem carinhosas afeições, esse tão necessário alimento ao coração das crianças.

Arredada de propósito de casa, e passando dias inteiros nos montes, a acompanhar o gado, habituou-se de pequena a vida da solidão e, é sabido que hábitos de melancolia se adquirem nesta escola. Foi, pouco a pouco, contraindo o caráter triste e sombrio que é o traço indelével que fica de uma infância, à qual se sufocaram as naturais expansões e folguedos, em que precisa de transbordar a vida exuberante dela. Por isso se afeiçoara a Daniel, o único que a viera procurar à sua solidão e oferecer-se como o suspirado companheiro das suas horas infantis. Vê-lo desaparecer agora, era assistir ao desvanecimento da mais grata das ilusões, da mais intensa das suas alegrias; e a sensibilidade nascente da pobre criança recebia uma nova têmpera nesta separação dolorosa.

Capítulo VII

Mas deixemos as lágrimas, e as íntimas e não ostentosas tristezas de Margarida, e vamos chamar ao primeiro plano da cena uma personagem que, contra seus direitos de primogenitura, temos até agora deixado oculta na penumbra dos bastidores. Falamos de Pedro, o filho mais velho de José das Dornas. Pedro, mais idoso que seu irmão cinco anos, teve uma infância mais trabalhosa que a dele, mas bem menos digna de menção no romance. Votado, como já disse, aos trabalhos da lavoura, as horas que tinha de ociosidade empregava-as a dormir, sono que as fadigas do dia faziam digno de inveja.

Por certo que os leitores não quereriam que eu lhes referisse aqui as pequenas diversões daquela vida de rapaz da aldeia. Seria uma fastidiosa enumeração de jogos e frequentes lutas com os companheiros, por vários motivos pueris. Isto quase aos dezessete anos. Enquanto que Daniel estudava o latim e se distraia já da aridez das regras da sintaxe, conversando a sós no monte com Margarida, Pedro trabalhava, dormia, ou brincava no terreiro com os rapazes de sua idade, sem sentir outras aspirações e achando-se até pouco a vontade junto das mulheres, com quem não sabia conversar. Não eram porém definitivas estas disposições de espírito em Pedro, como se vai mostrar. Aos dezoito anos operou-se a revolução.

Isto não quer dizer que a febre da adolescência principiasse a fazer circular nas veias do moço lavrador esse sangue inflamado que devora como uma oculta labareda; que ele tivesse dessas tristezas súbitas, desses devaneios e não sei que fantasiar mal distintas felicidades, desses arroubamentos, desse amor ideal, sem objeto, que é o mais puro e espontâneo culto do coração humano. Nada disso. A natureza não afinara a alma de Pedro para as sutilíssimas vibrações desta ordem. Esta quinta-essência da sensibilidade não lhe fora concedida. A gente da aldeia não conhece os prenúncios do amor, que os poetas têm apregoado no seu lirismo, a ponto de se acreditar por aí na universal realidade deles; sendo forçoso confessar que muita gente há, que nunca na vida sentiu os tais vagos e erráticos sintomas a que me refiro, e que contudo amam ou amaram deveras. Se serão os bens ou mal organizados, não me atreverei a decidir, mas que os há, isso, sustento eu. E Pedro era dos tais.

Querem saber como principiou nele a transformação a que aludo? Tudo veio naturalmente, sem aquela intensidade de fenômenos precursores, que, à imitação dos médicos, poderíamos talvez chamar de críticos. Um dia foi convidado para um serão. Aceitou contra vontade. Lá se divertiu mais do que julgou, e voltou contente, dormindo a sono solto depois. Daí por diante não faltava a nenhuma dessas assembleias campestres: fiadas, esfolhadas, espadeladas, ripadas; lá ia a toda com sua viola, traste indispensável aos dândis da localidade.

Habituou-se por lá a conversar com as raparigas, e, dentro em pouco, era mestre em trocadilhos e conceitos amorosos. Aventurou-se uma vez a cantar ao desafio; a musa auxiliou-o, e dali em diante foi-lhe concedida a palma nesse gênero de certames. Com tais predicados não lhe podiam escassear aventuras de amores; e não lhe escassearam.

Mas, em todo esse tempo, e apesar de todas as ocorrências, continuava dormindo as suas noites placidamente e de um sono só, dando assim uma excelente lição a esses amantes wertherianos que, por as mais pequenas coisas, perdem o sono e o apetite. Ele não. Os seus arrufos, as suas contrariedades não chegavam a esses excessos. Com o amor dá-se o mesmo que com o vinho. Perdoem-me as leitoras o pouco delicado da confrontação; mas bem veem que ambos eles embriagam. É portanto lícito compará-los. Diz de certas pessoas, que têm o vinho alegre de outras que, o têm triste, estúpido e bulhento, conforme dá a alguns a embriaguez para a hilaridade; a outros para os sentimentalismos, a outros para a modorra ou para brigas. Pois com o amor é o mesmo.

Amantes há que celebram os seus amores, e até suas infelicidades amorosas sempre em estilo de anacreôntica, esses têm o amor alegre; outros que, quando amam, embora sejam ardentemente correspondidos, suspiram, procuram os bosques solitários, que enchem de lamentos, e as praias desertas, onde carpem com o alcião penas imaginárias, têm estes o amor sombrio; a outros serve-lhes o amor de pretexto para espancarem ou esfaquearem quantas pessoas imaginam que podem ser-lhes rivais ou estorvos, e, nesses acessos de fúria, chegam a espancar e esfaquear o objeto amado, são os do amor bulhento e intratável; há os que emudecem e embasbacam diante da mulher dos seus afetos, que em tudo lhe obedecem, que a seguem como o rafeiro segue o dono, e experimentam um prazer indefinível de adormecer-lhe aos pés, pertencem aos do amor impertinente e estúpido. Poderia ir muito longe essa classificação, se fosse aqui o lugar próprio para ela.

Basta, porém, que-diga, que o amor de Pedro das Dornas pertencia a primeira categoria; tinha de fato ele o amor alegre. Pedro cantava sempre; tudo lhe servia de tema a uma série de quadras improvisadas, de que fazia uso para alentar-se no trabalho. É verdade que talvez isso fosse porque Pedro não tinha ainda encontrado o verdadeiro amor, aquele que, dizem, uma vez só na vida se experimenta. Em todo caso era o que sucedia com ele. Mas o reitor estava sempre a lhe pregar.

— Pedro, tu andas por aí muito à solta! Vê lá onde vais cair
— Ó Sr. Padre Antônio, a gente também precisa de se divertir um bocado.
— Pois sim, mas tudo se quer em termos e que não venham depois as lágrimas e os arrependimentos!
— Eu não hei de fazer coisa que...
— Sim, sim... Sabes o que eu te digo? O melhor, rapaz, é procurares o que te faça arranjo, e então que seja deveras. Casa-te e deixa-te de andar desnorteado, e nessa vida airada, que raro dá para bem.
— Ora, Sr. Reitor, ainda tão novo, hei de já tomar canseiras de família?
— Queira Deus que, conservando-te assim como estás, nas as acarrete mais pesadas ainda.

Não obstante os conselhos do reitor, Pedro não se sentia com grande vocação matrimonial. Todas as suas afeições eram efêmeras, e daquelas, em cujo futuro o próprio que as sente não acredita, mas lá vem uma vez que é de vez, diz o ditado: e, com Pedro, não estava esta fórmula de sabedoria popular destinada a ser desmentida.

Vejamos como foi isto. Ia Pedro nos vinte e sete anos já era então um rapaz vigoroso e sadio, de belas cores e músculos invejáveis. Andava certa manhã ocupado a cortar milho em um campo, propriedade da casa, o qual ficava situado na margem do pequeno rio, que atravessava a aldeia em continuados meandros.

Próximo havia uma ponte de pedra de dois arcos, construção já antiga, mas bem conservada ainda; o rio era nesse lugar pouco fundo, e deixava à flor da água as maiores das pedras espalhadas pelo seu leito, permitindo assim a passagem, a pé enxuto, de uma para outra margem.

De joelhos sobre essas poldras, como por lá lhe chamam, desde o arco até alguma extensão no sentido contrário ao da corrente, um bando de lavadeiras molhava, batia, ensaboava, esfregava e torcia a roupa, ao som de alegres cantigas, interrompidas às vezes por estrepitosas gargalhadas; outras estendiam-na pelos coradouros vizinhos, e, algumas, mais madrugadoras, principiavam a dobrar a que o sol da manhã havia já secado. Pedro, do campo onde trabalhava, via estas raparigas, conhecidas quase todas, mas sem que o vê-las o distraísse da tarefa em que andava empenhado.

À medida, porém, que, prosseguindo na ceifa, se aproximava mais da beira do campo, imediato ao rio, como o adiantado do trabalho lhe concedia mais vagares, pôs-se a reparar com atenção para uma das lavadeiras e a achar certo prazer na contemplação. Era uma rapariga de cintura estreita, mãos pequenas, formas arredondadas, vivacidade de lavandisca, digna efetivamente das atenções de Pedro e até de qualquer outro mais exigente que ele.

As mangas da camisa alvíssima, arregaçadas, deixavam ver uns braços bem modelados, nos quais se fixavam os olhos com insistência significativa. Um largo chapéu de pano abrigava-a do ardor do sol e fazia-lhe realçar o rosto oval regular de maneira muito vantajosa. De quando em quando, levantava ela a cabeça e sacudia, com um movimento cheio de graça, a trança mais indomável, que, desprendendo-se-lhe do lenço escarlate que a retinha, parecia vir afagar-lhe as faces animadas, beijar-lhe o canto dos lábios, efetivamente de tentar. Em um desses movimentos frequentes, reconheceu que era observada, se é que certo instinto, peculiar das mulheres bonitas, lho não fizera já adivinhar. Sabendo-se observada, conjeturou que era admirada também, conjetura que por mulher alguma é feita com indiferença e muito menos por Clara, era o nome da rapariga  porque se diga o que é verdade, tinha um tanto ou quanto de vaidosa.

Lisonjeada, pois, com a descoberta, sentiu Clara desejos de se fazer apreciar mais do que pelos olhos, de cujo conceito ela não já podia duvidar. Elevou para isso a voz, e em uma toada conhecida, em uma dessas eternas e popularíssimas músicas da nossa província, das que mais espontaneamente entoam as lavadeiras nos ribeiros e as barqueiras aos remos, cantou a seguinte quadra: Ó rio das águas claras,

Que vais correndo pro mar; Na pausa que, segundo as exigências da música, se faz ao fim de dois versos, Clara torceu a roupa que estava lavando, e lançou com disfarce, os olhos para o lugar, onde Pedro a escutava; e depois concluiu: Os tormentos que eu padeço. Ai, não os vá declarar Pedro efetivamente estava recebendo com prazer o timbre agradável daquela voz feminina; sentiu em si uma comoção estranha, visitou-a a musa rústica, e atirando-se com vontade ao trabalho, elevou também a voz, já tão conhecida por todos os frequentadores de arraiais e esfolhadas, e respondeu: "Não declara quem não pode, e não tem que declarar"; Na pausa olhou também para o lado onde estava Clara, a qual ria ocultamente com as companheiras, que eram todas ouvidos. A luva fora levantada e principiava o certame. O momento era solene! Pedro terminou: "Pois quem como tu é bela", não pode ter que penar Um murmúrio de aprovação se levantou do conclave feminino.

A reputação de Pedro não fora desmentida desta vez ainda. Mas Clara não era menos repentista. Tinha fama de nunca haver cedido o passo nestas pugnas incruentas, mas renhidas. É verdade que, no caso presente, o contendor era de respeito; ela porém aventurou-se e não fez esperar a resposta:

O que eu peno ninguém sabe,
Ninguém o pode saber;
Porque eu peno e não me queixo,

Em segredo sei sofrer. Novos sinais e aprovação das mulheres, os quais estimularam a emulação de Pedro. Ele respondeu:

Pois o sofrer em silêncio.
É um dobrado sofrer;
Melhor contarmos tudo.

A quem os possa entender. Esta quadra ainda produziu mais efeito, do que as precedentes, graças à insinuação que nela se fazia, e tendências que mostrava para dar novo caráter ao desafio. Clara aceitou a direção que lhe era indicada assim, e respondeu: A quem me possa entender:

Tudo eu quisera contar;
Mas os amigos são raros,
Não sei onde os encontrar.

E logo Pedro:

Encontra-os em cada canto.
Quem os quiser procurar;
E um dos mais verdadeiros.

Aqui te está a escutar. Chegadas as coisas a este ponto, o combate prolongou-se por bastante tempo, sustentado de parte a parte com igual denodo e perícia. No entanto, a roupa ia-se lavando e o milho achava-se quase todo ceifado. Os contendores, cada vez mais próximos, pareciam cada vez mais e coração empenhados na luta. Mas tudo tem um fim neste mundo. Com as respectivas tarefas, terminou a justa, ficando ambos os campeões vencidos um por outro, pois ambos se reconheciam já seriamente apaixonados.

Pedro passou as canas de milho para o carro. Clara meteu a roupa na canastra; e puseram-se a caminho. Encontraram-se na ponte, e travaram então um diálogo em prosa, que foi a confirmação de quanto, em verso, tinham dito já. E daí se originou uma afeição mútua, que, desde o princípio assumiu em Pedro caráter mais grave e prometedor de bons resultados, do que as antecedentes. O reitor, que andava com os olhos sempre em cima do rapaz, disse-lhe dias depois: — Lembra-te dos meus conselhos, Pedro. Não vás mais longe. Fica por onde estás, que não ficas mal. Pedro já lhe não opôs os acostumados argumentos antimatrimoniais, Calou-se. É que desta vez a coisa era mais séria; e demais Pedro ia nos vinte e sete, e por isso começava a lhe sorrir mais afavelmente o remanso do matrimônio. Mas para justificarmos a opinião do reitor a respeito da nova inclinação de Pedro, digamos quem era Clara que assim de repente pusemos diante do leitor sem prévia apresentação.

Capítulo VIII

Clara era a filha do segundo matrimônio do pai daquela mesma Margarida ou Guida, cujos amores infantis tanto haviam já dado que entender ao reitor. O pai de Margarida fora pela primeira vez casado com uma prima, que nada mais lhe havia trazido em dote, além de uma afeição ilimitada e de um coração excelente.

Durante a vida da primeira mulher viveu sempre ele a custa de muito trabalho, pelo ofício de carpinteiro, não podendo até mandar aprender a ler à filha, único fruto desta primeira união, pois que de pequenina a teve de ocupar no trabalho. A mãe de Margarida morreu, porém, deixando-a de idade de cinco anos. O pai, como já dissemos, deu-lhe em pouco tempo madrasta, e, na opinião do mundo, fez um ótimo negócio o carpinteiro.

De fato, a segunda mulher trouxe-lhe um dote avultado, e, dentro de alguns dias, viam-no abandonar a ferramenta do ofício e entregar-se todo ao fabrico e administração de suas novas terras, tornando-se um dos mais conceituados lavradores dos arredores. Mas a próspera fortuna do recente lavrador converteu-se em tormento e desventura para a desamparada criança. A madrasta, em pouco tempo mãe de uma outra rapariga, ciosa de toda afeição e carícias paternas, que Margarida pudesse disputar a sua filha, aborrecia-se e procurava sempre pretextos para a trazer por longe.

Daí, a causa daquela solidão a que fomos encontrar, quando pela primeira vez nos apareceu. Margarida chorava sozinha ou baixava a cabeça resignada. Tinha um caráter dócil e submisso, e não se atrevia a protestar nem sequer por uma daquelas espontâneas e irrefletidas revoltas, tão próprias da infância atribulada.

Com a morte do pai agravaram-se ainda mais estas tristes circunstâncias. Livre da única repressão que podia coagir a completa má vontade que tinha à enteada, aquela mulher de gênio violento acabou por desprezá-la de todo. A cada passo lhe lançava em rosto a pobreza de condição em que nascera, clamando que o pão que lhe dava a comer era um roubo que fazia a sua própria filha.

Margarida ouvia; humilhavam-na estas contínuas e injustas recriminações, mas até as lágrimas procurava ocultar, com medo que dessem causa a novas iras. Limitava-se a rezar muito a Nossa Senhora, para que a levasse para si. A pobrezinha olhava para o futuro e via-o cerrado, sem um único raio de luz em que fitasse os olhos, para atravessar com mais ânimo as trevas completas do presente. Uma só compensação experimentava a triste e desarrimada criança, em troca de tantas dores e constante suplício: - era a amizade de sua irmã.

Clara não herdara da mãe durezas de coração nem violências de gênio. Afável no meio de suas alegrias de infância, compadecia-se já pelo que via sofrer a irmã, e admirando aquela resignação de mártir, que ela bem se conhecia incapaz de mostrar em ocasião alguma da vida, principiou a olhar para Margarida com certo respeito, que, pouco a pouco, degenerou em prestígio e lhe cultivou no coração uma verberação sem limites.

Muitas vezes as rudezas da mãe para com Margarida faziam-na chorar também, e, às ocultas, vinha pedir perdão a esta de um tratamento, de que ela bem percebia ser a causa involuntária. Margarida, da sua parte, sentia-se grata ao generoso afeto de Clara, e em pouco tempo ficou sendo esse laço o único pelo qual ela parecia prender-se ainda ao mundo, que tão despovoado destas seduções lhe andara sempre.

Pequenos episódios, na aparência insignificantes, corroboraram em uma e outra estes sentimentos e influíram na sorte futura das duas irmãs, que, ainda crianças, se diziam já amigas inseparáveis. Em uma noite de inverno, a mãe de Clara deitara-se às nove horas com a filha; e por um requinte de crueldade estúpida obrigara Margarida a conservar-se a pé serandando, até concluir certa tarefa que lhe marcara; e ao deixá-la só, dirigiu-lhe estas palavras cheias de humilhação para a pobre rapariga: — Minha rica, quem vier a este mundo, sem meios de levar melhor a vida, não deve perder o costume de trabalhar, nem ganhar outros, com que, ao depois, não possa. Fica a pé e tem-me essa obra acabada. Margarida não tentou uma só queixa ou súplica, em seu favor. Calou e obedeceu.

Era, como disse, no inverno; fazia um frio excessivo. A lareira estava apagada já; da parede defumada pendia uma candeia, cuja luz bruxuleante era a única a iluminar o recinto. O vento assobiava nas inúmeras fendas da porta da cozinha e entrava em correntes impetuosas pelo tubo da chaminé, indo inteiriçar os membros regelados da desditosa criança, que, só a custo podia já suster a roca e torcer o fio, para terminar o trabalho. O silêncio da noite era interrompido por mil ruídos sinistros, próprios para amedrontar as imaginações supersticiosas como sempre, mais ou menos, são as da gente de campo.

Margarida, naquele momento, sentiu mais amarga que nunca, a sua orfandade e o seu desamparo. Chorou, chorou a ponto de se sufocar, e pediu à Virgem que se compadecesse dela. Lembrou-se então de quando a mandavam sozinha para o monte, e daquelas raras entreabertas de felicidade que lhe fizera sentir a companhia do pequeno Daniel.

As saudades desses dias nunca mais a deixaram. Com ela vivia sempre, com elas se achava só, quando, olhando para o passado, lhe pedia uma recordação de prazer, em paga de tanta tristeza que, no presente, lhe oferecia a vida, de tantas sombras, com que lhe vinha o futuro.

Nessa noite pensou também em Daniel; pensado nele, e naqueles breves momentos que vivera, esquecida do infortúnio, na solidão dos montes, chegou a iludir-se, a imaginar-se transportada lá; e esqueceu o frio e o medonho da noite – que um outro lhos fizera desvanecer a vara mágica da fantasia; - e insensivelmente parou-lhe a mão que fiava, descaíram-lhe os braços, vergou a cabeça melancólica, e o pensamento perdeu-se em longa e abstrata contemplação que, sem transição apreciável, terminou em um sono profundo. Encontraram-se e confundiram-se os últimos devaneios da vigília, com os primeiros sonhos em que flutuavam ridentes as mesmas imagens, fantasiadas ou recordadas naquela.

Clara não pudera, porém, adormecer com a ideia do sacrifício imposta à irmã. Do leito, onde se deitara com a mãe, ouvia o som do soluçar de Margarida, e isto era um martírio para ela. A boa rapariga pedia a Deus que olhasse por a pobre desvalida da irmã, que já não tinha nenhum amparo, e, rezando assim, chorava ainda mais do que ela. Cedo, porém, um alto e pausado respirar deu-lhe a certeza de que a mãe havia já caído no sono. Clara não hesitou mais.

Com todas as precauções possíveis, deixou-se escorregar de mansinho entre o leito e a parede, colocou sobre os ombros uma capa de baeta que encontrou à mão, e, com muita cautela, passou-se para a cozinha, onde Margarida já tinha adormecido. Clara não a acordou. Depois de a agasalhar com uma manta do leito, agachou-se ao lado dela e tirando-lhe sutilmente a roca da cinta, pôs-se por sua vez a trabalhar. Eram duas horas da noite e a tarefa estava terminada. Margarida dormia... sonhava ainda.

Neste instante, um som, que julgou partir da alcova, fez recear a Clara que a mãe tivesse acordado; por isso, mal teve tempo de correr a meter-se no leito, procurando não excitar a desconfiança materna, e não pôde chamar a irmã para a mandar deitar.

Passados alguns momentos, Margarida despertou. Ao lembrar-lhe que adormecera com o trabalho mal principiado ainda, apertou-se-lhe o coração, e a pobre criança juntou as mãos de desesperada. Mas que espanto ao ver espiada a roca e fiadas as estrigas que lhe haviam dado por tarefa!

A sua primeira ideia foi que tinha sido aquilo um milagre da Senhora, a quem se havia encomendado e cujo auxílio fervorosamente suplicara. Tinham-lhe contado a lenda daquela freira que, abandonado um dia a ermida da Virgem, de quem era devota, cega por uma paixão mundana, voltara mais tarde às portas do claustro, coberta de arrependimento e de vergonha: e, quando esperava recriminações e opróbrios, soube que ninguém tinha lhe dado pela falta, porque a Senhora se compadecera dela, e revestindo a sua imagem, viera todos os dias fazer o serviço da clausura.

Margarida acreditou em outro milagre desse gênero e com estas ideias se foi deitar, rendendo expansivas ações de graças à Virgem, por tão miraculosa intercessão. Mas, pouco a pouco, a verdade foi lhe aparecendo mais distinta, e pela madrugada acabaram de confirmá-la alguns vestígios evidentes de Clara ter estado junto de si nessa noite, e enquanto ela dormia; denunciou-a um lenço que ela deixara cair na pressa com que voltara à alcova. Nessa manhã, pois, Margarida aproximou-se da irmã, e beijou-a com efusão.

Obrigada, Clarinha, Deus te há de recompensar essa bondade.
— Se achas que mereço alguma recompensa, por que ma não dás tu mesma Guida?
— Eu, meu coração? Que recompensa podes esperar de uma pobre?
— Que não queiras muito mal a minha mãe por tanto que te mortifica, e que... me tenhas um pouco de amizade. — Querer mal a tua mãe, doida! E posso eu querer mal a quem me dá o pão, de que me sustento, o teto e os vestidos que me cobrem? Que eu nada disto tenho, Clarinha.
— Não me digas isso.
— A minha amizade, tu me pedes! E um pouco de amizade disseste! E, a não ser a ti, a quem queres que eu vá dar toda esta que Deus me pôs no coração para dar? Da tua mãe recebo eu a esmola do pão e do abrigo, agradeço-lhe e rogo a Deus por ela; a ti devo-te mais; devo-te a esmola da consolação e do conforto; por isso te estremeço e quero, Clarinha. E tu duvidá-lo?
— Esmola! esmola! Que palavra! De quem recebes tu esmola em casa de teu pai, Guida? Perguntou Clara, com uma viva expressão de nobre orgulho que lhe estava no caráter.

Margarida sorriu melancolicamente a esta exaltação da sua irmã e respondeu: — Esta casa não é de meu pai, é de minha… Ia dizer madrasta, mas conteve-se, receando dar à palavra uma entonação menos afetuosa. Clara saltou-lhe ao pescoço, e, por um daqueles impulsos irresistíveis da sua índole generosa e expansiva, exclamou, beijando-a nas faces.
— Guida, Guida, esta casa ainda há de ser minha, e então veremos se me fazes a desfeita de lhe não chamares de tua também.

Doutra vez tinha ido Margarida vender fruta ao mercado. Com inacreditável exigência havia-lhe a madrasta fixado, de antemão, qual seria o preço da venda, não lhe permitindo baixá-lo, e obrigando a pequena, ao mesmo tempo, a não voltar para a casa sem a ter realizado.

Os maus-tratos e ásperas repreensões esperavam infalivelmente Margarida naquele dia, visto a exorbitância dos preços estabelecidos e uma tão grande afluência de fruta na praça, que barateara o gênero. A rapariga chorava e lamentava-se, enquanto os compradores sorriam ao ouvir o preço excessivo que ela pedia pela fruta. Nisto apareceu Clara, que, por acaso, atravessava a feira naquele momento. Viu a irmã assim aflita, e aproximou-se dela.
— Que é isso, Guida? Tu choraste?
— E admiras-te ainda de me veres choras, Clarinha?
— Mas... dize-me, por que foi isto? Margarida contou-lhe tudo.

Clara ficou a olhar para o chão pensativa.
— E de tanta gente rica que há por aí, ninguém terá alma de pagar mais cara alguns vinténs esta fruta, para fazer bem a uma pobre rapariga. O acaso fez com que descobrisse um velho, que, naquele momento, atravessava o lugar, fazendo provisão de fruta, e parecendo não regatear muito.
— Ai! disse Clara, ao encarar com ele – o meu padrinho, o Sr. Cônego Arouca! Queres tu ver, Guida, como eu te vendo a fruta?
— Que vais fazer, Clarinha?
— Escuta. E, imediatamente, arrebatando a canastra das mãos da irmã, Clara correu a colocar-se no caminho do velho cônego, quando este prosseguia no seu feirado.
— Muito bons-dias, meu padrinho, deite-me as suas bênçãos.
— Tu por aqui, Clarita? Deus te abençoe, rapariga.

Então que fazes tu?
— Sou muito pouco afortunada, meu padrinho. Sabe?
— Sim, pequena? Então por quê? Não encontraste noivo ainda?
— Ora! está a brincar. Não é isso.
— Então?
— Trago à feira uma canastra cheia de frutas, e ainda não encontrei compradores.
— E o defeito é da fruta, ou de quem a vende?
— Há de ser de quem a vende que lá a fruta... essa boa é.
— Boa, sim; mas cara...
— Ora essa! meu padrinho. Nós cá não somos mais do que as outras. Vendemos pelo mesmo preço que elas vendem.
— Ora deixa cá ver a fruta. Então quanto queres tu por isso? Um dinheirão?

Este exame era simplesmente por formalidade, pois o cônego tinha resolvido, de si para si, ser o feirante de toda a fruta, embora fosse dura como pedra, e cara como o açafrão.
— Se for para o meu padrinho, o que quiser, respondeu Clara.
— Está bom. Não é má de todo. Passa-me ai para a canastra do criado, enquanto eu faço as contas.

E, ao passo que a filhada cumpria a ordem recebida, ele mexia, e remexia nos bolsos do colete, donde tirou não sei que moeda em ouro, que quadruplicava o preço da fruta, e passou-a para as mãos de Clara, dizendo: — Aí tens; o que crescer é para um lenço.
— Então muito obrigada, meu padrinho. E deite-me suas bênçãos.
— Vai com Deus, rapariga, e faz visitas à tua gente, respondeu o cônego, dando-lhe a mão a beijar.

Clara voltou a correr para junto de Margarida, bradando-lhe: — Vê, vê, não te aflijas. Fruta vendida, e uns créscimos para tremoços. Margarida agradeceu-lhe com um olhar, orvalhado de lágrimas de gratidão. Assim continuou este viver por muitos anos mais, até que a mãe de Clara adoeceu. Durante a moléstia, foi Margarida desvelada e incansável enfermeira, colhendo sempre, em paga dos seus carinhos, modos rudes e ásperos, expressões inequívocas de aversão que nunca deixava de sentir por ela. A heroica rapariga não afrouxava por isso na afetuosa caridade com que a tratava.

A doença agravou-se, e a morte foi declarada inevitável. Neste momento solene, como que se abrandou o coração e falou a consciência da moribunda, mostrando-lhe a injustiça do seu procedimento para com Margarida. À hora da morte chamou-a junto de si, e, apertando-lhe as mãos, disse-lhe entre soluços: — Guida pela primeira vez lhe deu este nome afetuoso, perdoa-me! Deus alumiou-me o espírito. Só agora conheço a minha maldade e as tuas virtudes. Perdoa-me minha filha, e sê generosa até o fim, Clara fica só, é ainda muito criança. Lembra-te que ela é tua irmã, aconselha-a, e estima-a, olha-me por ela. Perdoa-lhe o ser filha de tua madrasta. Foram as derradeiras palavras que disse.

Margarida caiu sufocada de choro, junto do leito da morta. Não lhe restava no coração a menor sombra de ressentimento contra aquela que a fizera tão infeliz. Eram sinceras, como poucas, as lágrimas dessa órfã. Passado tempo, sentiu que um braço a levantava. Voltou-se: era o reitor, que olhava para ela comovido.
— Muito bem, Guida, muito bem! exclamou o velho com entusiasmo. Essas lágrimas são generosas, são verdadeiras joias da tua boa alma. Elas devem ser de grande alívio para aquela cujo maior pecado neste mundo foi o muito que te fez padecer. E daí por diante ficou o reitor tendo por súbito conceito a Margarida.

Capítulo IX

Depois da morte da madrasta, a sorte de Margarida tomou uma feição mais favorável. Vivendo na companhia da irmã, nunca mais teve que suportar aquelas humilhações continuadas que a faziam corar. Antes, no modo porque era tratada em casa, parecia ser ela a senhora de tudo, e Clara a que recebia o benefício; contra estas aparências só a sua modéstia protestava.

Clara possuía um coração excelente, mas faltava-lhe cabeça para superintender nos negócios da casa; por isso pedira a Margarida que os gerisse ela e lhe deixasse ir gozando a apetecida liberdade dos seus dezoito anos. O pároco, por tutor das duas órfãs, sancionou e dirigiu com seus conselhos esta disposição de coisas. Mas um tal sistema de viver não podia bastar por muito tempo a Margarida. Havia no caráter desta rapariga um fundo de dignidade pessoal que lhe não deixava aceitar a vida plácida, que cordialmente a irmã lhe talhara.

Habituara-se muito cedo ao trabalho e como ele contava.
— Se o desprezo agora, dizia ela a si mesma, pensando nisto, quem sabe se um dia, ao procurá-lo, ele fugirá? Sentia-se jovem, com forças e coragem; envergonhava-se da ociosidade. Entre os projetos, que formou então, um lhe sorriu sempre mais que todos.

Margarida tinha uma educação pouco vulgar para a sua condição. Várias circunstâncias haviam gradualmente concorrido para lhe aperfeiçoar. Daniel fora, como sabemos, o seu primeiro mestre, e quando outra razão não houvesse, as saudades que a vista e a leitura dos livros ainda lhe causavam, lembrando-lhe aquele tempo, levá-la-iam a procurá-los com prazer. Seguira-se a Daniel o reitor, conforme ao que prometera ao discípulo. Vendo o padre a inclinação da sua pupila para a leitura, fazia-lhe, de quando em quando, alguns presentes de livros, depois de os passar pela crítica dos seus rígidos princípios morais, e julgá-los salutares. Margarida lia-os com ardor, e, pouco a pouco, costumou-se a lê-los com reflexão também. Não sendo muito abundantes as bibliotecas da terra, era obrigada a reler, mais que uma vez, os mesmos livros, o que é sempre uma vantagem para a instrução colhida neles.

Além do interesse crescente que ia encontrando na leitura, um motivo mais oculto lhe alimentava esse ardor , motivo que ele própria quase ignorava, ou pelo menos não dizia a si. Como que desta se forma se aproximava de Daniel. Das duas inteligências de criança, que se tinham visto a par, como duas aves que brincam na relva, uma levantara voo e subira; que admirava que a outra, saudosa, ensaiasse as forças para a acompanhar? Para, ao menos, a não perder de vista de todo? Há destes motivos ocultos das nossas ações, que passam desconhecidos. O que é certo é que a sede de saber devorava Margarida. O hábito da meditação, que adquirira, permitia à sua inteligência tirar grandes riquezas da pequena mina em que trabalhava. Um acontecimento favoreceu ainda estas tendências.

Um dia, acolheu-se à aldeia, a viver vida e privações de miséria, um destes desgraçados, a quem as ondas do mundo arrojam, náufragos e quebrantados, à praia. Era um homem, que, saindo em criança ainda, daquela mesma aldeia, entrara, sob os sorrisos da sorte, na vida das cidades. A instrução, a riqueza, as honras, tudo o rodeara do prestígio que parece assegurar a felicidade. Se ele a sentiu então, não o sei eu; - um dia, porém, como o Jó da Escritura, viu as mão da desgraça baixar sobre sua cabeça, privá-lo das riquezas, das dignidades e da família, e deixá-lo só; só ao declinar a vida, só quando já não há no coração fogo para alimentar esperanças, vigor no braço para arrotear caminhos novos!

Este homem sacudiu a poeira dos sapatos à porta das cidades, onde sonhara meio século, e veio, tendo por único arrimo a consciência, procurar o teto que, nu, o abrigara na infância e quase o recebia na velhice como de lá saíra, - teto que nem já era seu. É uma história vulgar a deste homem. Insistir nela seria contar ao leitor coisas sabidas. A quem reservará a sorte o privilégio de ignorar uma história assim? Era, pois, um desgraçado. Isto bastava para que, ao seu lado, visse, olhando-o compadecido, o rosto de Margarida e, animando-o, os sorrisos de Clara. O infortúnio chamou para junto do leito da miséria deste velho desanimado, estas duas mulheres. Ao lado de todas as cruzes aparecem desses vultos compassivos. Com que havia de recompensar a devoção heroica de duas juventudes à velhice empobrecida, quem nada tinha a dar? Não lhe exigiam elas a recompensa, é certo; mas pedia-lhe a alma. Dos amigos que tivera, só lhe restavam quatro; e esses lhe valeram. Eram quatro livros...

Talvez os leitores já estivessem imaginado que este homem trouxera ainda quatro amigos para a diversidade, sem serem livros. Custa-me desenganá-los; mas não trouxe. Foi nestes livros que Margarida encontrou novos alimentos para a leitura. Não sei bem ao certo, quais eram eles. Estas leituras, dirigidas agora pela crítica esclarecida e o são juízo do pobre velho, valeram imenso a Margarida, que, dentro em pouco chegou a uma cultura intelectual, a que nunca tinha aspirado. Por isso, na ocasião de formar projetos, para se dignificar aos próprios olhos pelo trabalho, sorria-lhe principalmente a carreira do ensino. Ensinar era aprender, ensinar era amar; e estas duas necessidades daquele espírito generosos, aprender e amar, se satisfaziam assim. Cultivar inteligências e cultivar afeições! Que futuro! A alma no íntimo apaixonada, de Margarida, exultava só com a ideia.

Restava obter o consentimento de Clara, e que tática nãos seria necessária para isso?
— Clarinha, disse-lhe pois um dia Margarida, vou pedir-te um favor!
— É possível! exclamou Clara, sinceramente admirada. É esta a primeira vez que me pedes um favor, Guida. repara bem.
— Tanto mais razão para mo concederes, filha; não é verdade?
— Assim me pedisses mil, Guida, para todos te conceder também. Ora dize.
— Sabes que eu não me dou com esta vida de senhora, em que tu me tens. Que queres, minha filha? Isto de trabalhar é hábito que se ganha de pequena e não se perde mais...
— Mas, então, disse Clara, pondo-se séria como se suspeitasse vagamente o que a irmã lhe ia dizer.
— Queria que me deixasses trabalhar.
— Mas não trabalhas tu tanto, mais do que eu, Guida? Podia eu, sem ti, olhar por estas coisas de casa, de que não entendo, de que não quero entender? Só se queres vir a lavar ao ribeiro comigo.

Ora! Guida, essas mãos delgadas já não foram feitas para isso.
— O que dizes que eu tenho que fazer, Clarinha, não é trabalho que ocupa muitas horas, como sabes. Resta-me ainda tanto tempo! Olha que os dias são muito grandes.
— Mas que queres tu afinal?
— Sabes? uma coisa que eu desejava... uma coisa que me faria alegre até! não desejas tu me ver andar alegre? não me ralhas tu pelas minhas tristezas?
— Mas vamos ver o que tu querias; o que é que te daria essas alegrias grandes? Alguma loucura grande também?
— Não é, não. Olha... se eu tivesse umas poucas crianças para ensinar...

Clara não a deixou continuar.
— Tu, tu, minha irmã! Ensinares tu as filhas dos outros? Viveres de educar filhos alheios!
— Oh! orgulhosa! Então isso é alguma vergonha? Anda, lá, que o Sr. Reitor te ouvia...
— Mas que se diria de mim, Guida? Sempre tem coisas! Repara bem, que se diria de mim?
— Que és uma boa alma, Clarinha, tu que reparte comigo a tua casa, o teu...
— Guida! exclamou Clara, interrompendo-a com um tom de repreensão.
— E que se dirá de mim, se não me concederes o que eu te peço? o que se terá dito?
— Que é muito boa em não me abandonares, em me dares conselhos, em me perdoares as minhas doidices.
— Mas não é também por o que dirão, que eu te peço isto não; é porque o coração me leva a pedir-te.
— Guida, por amor de Deus! Perde essa ideia! É uma desfeita que me fazes.
— Não é, minha filha, não é. Pois bem, pergunte-se ao Sr. Reitor, e se ele disser que...
— Ora, o Sr. Reitor, sim! Basta ser pedido teu para ele aprovar.
— Estás sendo muito má, disse Margarida, afagando-a.

Depois de alguma luta, foi resolvido consultar o pároco, ficando cada uma com a liberdade de pleitear a causa própria. Clara tinha alguma razão em suspeitar da imparcialidade do juiz. O pároco, tutor das duas raparigas, costumara-se a admirar o bom senso e a inteligência superior de Margarida a ponto de confiar mais nela do que em si mesmo. Decidiu pois a demanda em favor da irmã mais velha, excitando contra si um amuo de Clara, que durou três dias. Era extensão excepcional dos despeitos da boa rapariga; mas é que desta vez sempre se tratava de Margarida, e em tais assuntos Clara era intolerante. Em resultado de tudo isto, passados dias, começou Margarida sua tarefa de educação, à qual se entregava com amor. As crianças afluíam-lhe, atraídas por aquela suavidade de maneiras, que constituía um dos mais fortes atrativos do caráter dela.

Esta fase mais bonançosa da existência de Margarida já não conseguiu porém lhe modificar o caráter pensativo e suavemente melancólico, que a infância oprimida lhe fizera contrair. Adquirira já o hábito da tristeza e das lágrimas, e este, como todos os hábitos, não se perde facilmente. No meio das recentes felicidades da sua vida, ela própria, por muitas vezes, se surpreendia a chorar.

— Não é isto uma ofensa a Deus? Dizia então consigo. Por que choro eu? Não tenho a amizade de Clara, amizade extremosa, como ainda a não recebi de ninguém? Eu devo estar alegre e bendizer ao Senhor, que não desvia de mim os seus olhares de misericórdia. Em um momento de expansiva conversação, Clara disse-lhe um dia, vendo-a assim triste: — Não me dirás tu, Guida, o que hei de fazer para te ver rir e estar alegre?

— Olha, Clarinha, a gente é como as flores, que umas nascem com cores vermelhas que alegram, outras com cores escuras que entristecem. Olha tu as violetas e os suspiros, que te digam por que nasceram assim e por que, crescendo na mesma terra e sendo alumiadas pelo mesmo sol, não têm as cores brilhantes da rosa.
— Bem respondido, sim senhora; daqui em diante hei de chamar-te sempre a minha violeta.
— Criança! E tu, Clarinha, nunca te sentes triste?
— Triste por quê? Que tenho eu a desejar para ser feliz de todo?
— Tens razão. Tu... nada.
— E tu? Perguntou Clara, fitando os olhos da irmã.
— Eu... E Margarida sem responder ficava mais triste ainda do que até ali. Clara impacientava-se.
— Olha, Guida. Há muito tempo que ando vontade de te dizer uma coisa; mas... como que até me chega vergonha de te falar nisto. Eu não entendo nada destes enredos de justiça; mas... lembra-me, em vida de minha mãe, ouvir-te dizer muitas vezes que... nada disto era teu e... que dela recebias tu... a...
— A esmola do agasalho que me dava; e era... e é assim.

— E era e é assim! Guida! Eu não sei lá como os homens fazem estas coisas. Mas se eu sou agora, como dizes, a senhora de tudo, não quero mais te ouvir falar deste modo. Quero que olhes, como teu, tudo o que me pertence; que não me tornes a dizer essa palavra tão feia, que ainda agora te ouvi. De outro modo, fico de mal contigo; isso fico. Já o merecias por te estares a cansar com trabalho, sem precisão. Margarida sorriu.
— E quando, para o futuro vier alguém tomar parte consigo nestes bens, pensará assim como tu?
— Alguém! como alguém?
— Sim; julgo que não estás para freira, Clarinha.
— Ai, e pensas nisso já? Pois bem, se assim for, hei de escolher quem seja digno de ser teu amigo, ou então...

— Está bom, está bom. Dá cá um beijo, e não falemos mais nisso. Farei tudo como dizes. E a tristeza de Margarida não terminava ainda. No entretanto o reitor ia-se afeiçoando todos os dias mais às suas pupilas. A mais velha dizia: — Toma-me conta de Clara. É rapariga e amiga de brincar. Faz com que te confie todos os seus segredos. Serve-te do poder que tens sobre ela para a guiares, minha filha. Dá-lhe parte do teu juízo. E por outro lado, dizia a Clara: — Olha lá, rapariga. Tu anda-me com juízo, ouviste? É bom rir e estar alegre, mas em termos, em termos. Segue os conselhos de tua irmã e faz por imitá-la.

E consigo só, dizia, ao lembraram-lhe as duas: Excelentes corações! Deus lhe dê na terra a felicidade, que eu lhes desejo e que são dignas. A Clarita bem está... Tem dos bens da fortuna, não lhe faltarão arrumações; mas a pobre Margarida... Se ao menos, por felicidade, tiver um cunhado que seja um homem de bem!

Capítulo X

Foi por isso que o reitor, ao perceber um dia a inclinação recíproca de Clara e Pedro das Dornas, exultou com a descoberta. Amigo das duas famílias, e conhecedor da boa índole de Clara e dos sentimentos generosos de Pedro, ele só antevia ventura na projetada união. Em relação aos dotes, não havia entre os noivos, grande desigualdade, e, em vista disso, não era provável que, da parte de José das Dornas, surgissem dificuldades sérias.

Por outro lado, a boa alma do noivo tranquilizaria o reitor, em relação à sorte de Margarida: ele a saberia estimar como ela merecia. Esta consideração, sobretudo, fazia o contentamento do padre. Daí, aquele conselho dado a Pedro, conselho que encontrou este em muito boas condições de o observar. Passados dias, procurou o reitor o seu amigo José das Dornas e comunicou-lhe que Pedro estava resolvido a casar, e lhe pedira para servir de embaixador em solicitar o consentimento paterno. Como tinha conjeturado, o projeto passou sem oposição da parte de José das Dornas, que antes ficou muito contente com a novidade. Somente pediu o adiamento da época dos esponsais, para quando chegasse do Porto, Daniel, que devia, naquele ano, terminar a sua formatura na escola de medicina na cidade invicta.

Clara tinha, antes disso, respondido ao pároco, perguntando-lhe este se aceitava o pedido de Pedro, que desejaria consultar a irmã. Aprovou o Padre esta atenção delicada, e esperou-se pela resposta de Margarida, de quem não havia grandes impedimentos a recear. Estava Margarida a ler, quando Clara foi ter com ela.

Era já então uma simpática figura de mulher a de Margarida. Não se podia dizer um tipo de beleza irrepreensível, mas havia em toda aquela figura um ar de afabilidade e de meiguice tal, que nem avultavam essas pequenas incorreções, só reveladas a um exame minucioso e indiferente; mas a primeira, a grande, a invencível dificuldade era conservar esta precisa indiferença ao vê-la. Os olhos, sobretudo, negros como poucos, sabiam fixar-se com tanta penetração e bondade, que só a contemplá-los, esquecia-se de tudo o mais. Não possuía uma desses tipos fascinantes que atraem as vistas; era fácil até passar por ela, desatendendo-a, mas fitada uma vez, o olhar deixava-a com pena, e a memória conservava-a com amor. A boca tomava-lhe naturalmente uma expressão de triste meditar, entreabrindo-se-lhe, de quando em quando, os lábios por uma dessas mais profundas inspirações que dissimulam um suspiro, Clara aproximou- se da irmã sem ser pressentida e sentou-se junto dela. O grupo gracioso, que ambas formavam assim, tentaria qualquer artista que o visse.

A aparência jovial de Clara fazia realçar, pelo contraste, o vulto melancólico de Margarida. Naquela tudo era reflexos de desanuviada alegria interior, nesta difundia-se incessantemente uma dessas meias sombras, como as que produzem as pequenas nuvens brancas que, sem ofuscar inteiramente a luz do sol, lhe mitigam contudo um pouco o resplendor dos raios.

Clara tomou as mãos da irmã, sem romper o silêncio.
— Que tens tu, Clara? Perguntou-lhe Margarida. Não sei que te leio nos olhos. Desconfio que me vais dizer alguma coisa.
— E vou.
— E parece ser de importância, ao que vejo; estás tão séria! acrescentou Margarida sorrindo.
— É que é deveras sério e muito sério o que te vou dizer.
— Então?
— Querem-me casar.
— Ah!
— E olha, Guida, eu julgo que o meu noivo é um bom rapaz... mas... sempre queria saber o que tu pensas dele, e se merece a tua aprovação.
— A minha!? E também te é precisa, filha?
— É, sim; pudera não. Já o disse ao Sr. Reitor e ele concordou.
— Sois todos muito bons para comigo. Mas que te hei eu de dizer! Que te diz o coração?
— Ora, o coração...
— O coração, sim. Por que não? Quando é bom, como é o teu, deve-se sempre ouvir, e... quer-me parecer que já o consultaste, antes de mim...
— Falo a verdade. É certo que já.
— E que te disse ele?
— Aconselha-me... que sim.
— Que mais queres?
— Que também me aconselhes.
— O mesmo que o coração, já se sabe.
— Não, senhora, com franqueza, aquilo que pensares.
— E quem é o noivo?
— O Pedro do José das Dornas.
— Ah! Por certo que é um bom casamento.

Conquanto pouco conheça ainda esse rapaz, ouço dizer que é honrado, trabalhador, e... de mais a mais, está bem.
— Então, aprovas?
— Se te fosse necessária a minha aprovação, dir-te-ia que estimo até muito que se faça esse casamento, e que sejas feliz. Clara abraçou-a com efusão, e correu a dar parte ao Reitor do resultado da entrevista. Margarida ficou só. O que acabara de ouvir da boca da irmã deixava-a pensativa. A ideia de que a vida de Clara em breve se ia associar a de uma pessoa estranha, não podia deixar de lhe fazer sentir graves preocupações pelo destino dela e seu.

Era um problema proposto à solução do futuro, e Deus só sabia como o futuro o teria de resolver. Clara ia entrar na vida de família; ia cedo transformar em amor de esposa e de mãe todos aqueles tesouros de sentimentos que, até então, a ela só confiara, a ela, Margarida, à desvalida da sorte, à órfã e esquecida sempre, e talvez dali em diante, ainda mais esquecida e mais desamparada de afetos! Ao pensar nisso, não podia evitar certas angústias de coração. Era mais uma afeição que lhe roubavam! Pois nem esta lhe pertencia? E depois, como seria considerada pelo marido de Clara? Humilhações, pudera-as suportar de sua madrasta, mas receava não ter já resignação bastante para as receber de mais ninguém.

É certo que o bom nome de Pedro a tranquilizava; mas quantas decepções sobre os melhores caracteres humanos nos prepara uma íntima convivência com eles? Quantos defeitos ocultos, ignorados do mundo, a vida de família faz evidentes, a ponto de tornar inevitáveis, discórdias, que aos olhos do vulgo nunca se justificam?

A corrente destes pensamentos tomou, porém, de uma maneira gradual, diverso curso. O nome da família de Pedro não era desconhecido para Margarida. Andava-lhe associada a mais grata recordação da amargurada infância da órfã. Quem em tão pequeno número contava os corações que haviam simpatizado com o seu, que muito era que se recordasse com saudade do pequeno estudante de latim que, de tão longe, vinha sentar-se ao pé dela e falar-lhe com um afeto que até então desconhecera?

Desde que as apreensões do reitor haviam ocasionado a partida de Daniel, nunca mais Margarida lhe falara. Via-o todos os anos, quando ele vinha passar as férias à aldeia, e não podia ocultar a si própria a afetuosa atenção com que ainda então o observava. Mas, pelos seus novos hábitos de vida, Daniel distanciara-se daquela que conhecera em criança; nem dela talvez se lembrasse já. Margarida pensava agora no caso, que os aproximava assim, e não podia, sem uma vaga inquietação de espírito, ver, no futuro, a possibilidade de uma entrevista com ele.

Os caracteres concentrados como o de Margarida alimentam-se ordinariamente de uma ideia fixa... quantas vezes de uma ilusão? Que forma o segredo inviolável da sua existência inteira. Abre-lhes ela as portas de um mundo imaginário, para onde se refugiam dos embates do mundo real, que impressionam dolorosamente a sua delicada sensibilidade. Quando os encontramos sós, estes melancólicos devaneadores, acreditemos que lhes povoam a solidão formas invisíveis, criadas à poderosa evocação da sua fantasia; o silêncio em que o virmos cair, dissimula-lhes os misteriosos diálogos na linguagem desconhecida e intraduzível desse fantástico mundo. É uma singular loucura procurar distraí-los, chamando-os à consideração das coisas reais. A mais doce consolação, a mais festiva alegria daquelas almas, é aquilo mesmo que se nos afigura tristeza.

Deixem-nos assim. Não queiram erguer-lhes a fronte que involuntariamente se inclina, não tentem iluminar-lhes com sorrisos a fisionomia, sobre a qual se derrama uma severa gravidade; não se esforcem por lhes tirar dos lábios comprimidos uma palavra qualquer, o fogo da vida, que parece tê-los abandonado, deixou somente a superfície, para mais intenso se lhes concentrar no coração. Margarida tinha também o seu pensamento secreto que, em momentos assim, acariciava com amor.

Esse pensamento de longe lhe viera; há muito lhe era companheiro. Assim como nas trevas da noite os olhos involuntária e quase irresistivelmente se fixam no mais pequenino ponto luminoso, que lhes surja na obscuridade, assim se voltava o pensamento de Margarida para o último raio, que lhe luzira débil de entre as sombras da existência passada. A cândida afeição de Daniel era esse raio; através das diversas fases da sua vida a acompanhara sempre a imagem dele, modificando-se conforme a natureza dos sonhos em cada uma. Aos vinte e dois anos, que Margarida contava agora, recebera essa imagem toda a vida, de que um coração juvenil anima as suas criações queridas.

De fato, não fora sem comoção de suspeitosa natureza... que a imagem de Daniel adolescente viera, por mal percebidas gradações, afugentar das reminiscências da boa rapariga e do pequeno Daniel, que ela conhecera outrora; não foi sem íntimas turbações de ânimo que, de envolta com as memórias suaves desse curto passado, a fantasia lhe começou a misturar vagas aspirações para um futuro que, agradavelmente e melancolicamente também, agitava o coração da ingênua cismadora. Era bem triste, depois de sonhos assim, acordar na amarga realidade do presente desencantado; mas era inevitável. O destino decidira de outra sorte.

Vamos, dizia Margarida a si mesmo. Que mulher sou eu? Quando precisava de dobrada força para o trabalho, ainda me ponho a pensar... não sei em quê. Pensar! É um luxo, com que não podem os pobres, acrescentava, sorrindo amargamente. É um prazer de ricos e ociosos. A nós, sai-nos muito caro cada minuto desperdiçado a pensar assim. Clara vai casar,cismava ela depois. É forçoso que me separe dela. Bendito seja Deus, que me inspirou esta divina idéia de viver pelo trabalho; dele só e com ele deve ser agora principalmente o meu viver. É custoso, porque querias devera a esta pobre criança, mas é necessário. Um dia podia causar-lhe involuntariamente mal, se ficasse. Hei de partir.

Capítulo XI

Procedia-se com toda atividade aos preparativos do casamento contratado. José das Dornas não cabia em si de contente. A formatura de um dos seus filhos, e a perspectiva do vantajoso casamento de outro eram para isso motivos de sobejo. Acrescentem agora que o ano tinha sido fértil, que o enxoframento das suas vinhas prometia excelentes resultados, e poderão julgar se tinha ou não razão o robusto lavrador para andar satisfeito e para cantar, amiúde, a sua cantiga favorita:

Papagaio, pena verde,
Não venhas ao meu jardim;
Todas as penas se acabam,

Só as minhas não tem fim. Depois de haver superintendido em todos os aprestes que se faziam na casa, para receber o novo adepto da ciência hipocrática, José das Dornas, cedendo àquela irresistível necessidade, tão geral em todos nós, de transmitir aos outros, parte das nossas alegrias, comunicando-lhes a narração delas, saiu e transportou-se à loja do Sr. João da Esquina, ponto de reunião da mais escolhida sociedade da terra.

— Ora viva Sr. José das Dornas; passasse muito bem, é o que estimo, disse o merceeiro do fundo da loja, onde, em pé sobre um banco de pau, se ocupava a dependurar velas de sebo para satisfazer a requisição de um freguês.
— Deus seja aqui, respondeu José das Dornas, sentando-se familiarmente em um dos bancos, que havia por fora do mostrador.
— Muito calor, Dr. José, observou-se o merceeiro adiantando-se.
— De morrer, acrescentou o lavrador, tirando o chapéu e passando o lenço pela cabeça escalvada.
— E então que se diz de novo? Perguntou o outro, pagando-se da importância do gênero que acabava de aviar.

— Que se há de dizer? Que se vive, como Deus quer, e cada um pode. Os velhos, como eu, com os seus achaques. Tal foi a resposta de José das Dornas, morto já por encontrar uma transição natural para falar do filho, sem quebra de modéstia paterna.
— Então já se sabe que o Padre Custódias é quem prega este ano o sermão da Senhora do Amparo? Disse João da Esquina, que sempre que perguntava o que ia de novo, é porque tinha alguma coisa a responder.
— Sim? Exclamou com afetada admiração José das Dornas, a quem naquele momento a notícia importava muito mediocremente.
— É verdade. E a filarmônica é que vai tocar.
— Então a festa é de espavento!
— A confraria tem no cofre perto de cem mil-réis.
— Está feito!
— E diga-me, Sr. José, que lhe parece da pega do nosso reitor com os do Amparo? Não acha que é um despotismo?
— Eu sei? Olhadas as coisas de certo modo, o homem não deixa de ter alguma razão.

— O quê, senhor, o quê? Exclamou indignado o merceeiro. Não tem razão nenhuma. Não me diga isso. Ora... pois fale a verdade. De quem é a cera das promessas que fazem à Senhora? Não é dela? A quem compete então o direito de a vender?
— A confraria, que é a sua procuradora. Isto é claro como água.
— Pois sim... não digo menos disso... mas... os direitos paroquiais... enfim, não sei, não sei, murmurava José das Dornas, ansioso por dar de mão ao sobre assunto, delicado para ele, que tinha amizade nos dois partidos, muito fora do seu propósito naquela ocasião.
— Que direitos, que direitos? Tortos lhe chamo eu. Eu bem sei o que aquilo é... Lembra-se do que o reitor de Cisnande fez ao do Mártir? Pois temos outra aqui.

— Homem, insistiu José das Dornas, deveras impaciente por não ver se aproximar a conversa do tópico desejado, antes se afastando cada vez mais dele. Não diga isso do Padre Antônio; você bem sabe que o quinhão do nosso reitor é o quinhão dos pobres. Mas... eu dessas coisas não entendo, nem quero entender; parece-me contudo que era bom que andassem nisso com prudência e aconselhados por quem possa dizer alguma coisa a tal respeito.
— Então o juiz da confraria é algum tolo? Olhe que o João da Semana é homem para fazer frente ao reitor se... Como já tivemos ocasião de dizer, João da Semana era, por aquele tempo, o único facultativo da freguesia, e lisonjeiramente conceituado na opinião pública da terra.

Desde que José das Dornas ouviu pronunciar o nome do velho cirurgião, alegrou-se por lhe parecer preparar-se a índole da conversa em sentido favorável ao assunto que ele mais pretendia tratar; por isso, logo se apressou em observar: — João da Semana é homem fino, bem sei. Mas é também amigo velho do reitor; são amigos de tu, e por isso duvido que queira deixar ir as coisas ao mal. De mais a mais, está velho e... A conjunção devia ser a ponte de passagem para o assunto suspirado; mas o merceeiro cortou-lhe no princípio.

— Velho, sim., mas robusto como poucos rapazes. Olhe vossemecê que aquela alminha já às cinco horas da manhã tem visitado mais de sete ou oito doentes. José das Dornas julgou ainda este terreno favorável para lançar os alicerces da ponte que queria construir.
— Isso lá é assim; bem precisa de quem o ajude; e dentro em pouco... João da Esquina ainda desta vez lhe baldou a tentativa.
— Mas diz você que ele é amigo do reitor? Também eu sou; mas isso não quer dizer nada, o que é de direito... — Pois sim; eu não digo menos que isso; mas enfim...um cirurgião tem o tempo tão ocupado... ainda se meu filho...
— Uma quarta de açúcar, bradou uma rapariga, que nesta ocasião entrava na loja, e por essa forma, uma vez mais impediu que José das Dornas realizasse o seu intento.

Quando a freguesa se retirou, ele prosseguiu com constância digna de melhor sorte: — Mas ainda, se meu filho... O tendeiro, porém, que, com a transação que operara, tinha deixado escapar o fio da conversa, julgou que se tratava de Pedro e perguntou: — Então quando casa ele com a Clarita dos Meadas?
— Veremos; provavelmente breve; chegando do Porto o outro rapaz...
— Olhe que foi bem-bom arranjo, Sr. Zé, continuou o tendeiro com impertinente falta de percepção. Só o campo dos Bajunços é uma tal peça de lavra!

— E sobretudo é boa cachopa a rapariga; lá isso é. Pois... quando vier o outro... teimava o lavrador. De novo um feirante veio interromper o discurso ao pobre do pai, que se vingou mandando-o interiormente ao diabo. Já ia desesperando de conseguir a realização do seu inocente propósito quando o reitor, passando pela porta da loja, lhe perguntou: — Então vem hoje o homem ou não?
— Eu espero que sim, Sr. Reitor; disse José das Dornas, levantando-se e descobrindo-se. Pelo menos não recebi notícias em contrário.
— Vê se me mandas avisar, logo que chegue que o hei de querer ir ver.
— Não há de haver dúvida.
— Adeus.

E o padre continuou seu caminho, cortejando amavelmente, com um movimento de bengala, João da Esquina, que apesar de partidário dos do Amparo, não colheu friamente a saudação. Mas afinal, graças às palavras do padre, tomou a conversa o rumo desejado de José das Dornas.
— Como que então temos cirurgião novo cá na terra? Ora Deus o ajude, disse João da Esquina.
— Enquanto João da Semana viver, há de custar a afreguesar-se o rapaz, observou o pai traindo no gesto, porém, convencimentos contrários ao que em palavra exprimia.
— Deixe lá. Há gente para ambos. A terra já vai dando para dois, graças a Deus. E o rapazinho saiu esperto.

— Lá isso se diga o que é a verdade, não é agora por ser meu filho, mas todos o confessaram. Criança era ele ainda, e já o reitor se espantava da memória do rapaz. E se você visse, Sr. João, o livro que ele escreveu? Chamam-lhe lá teses, ou não sei quê. Pelos modos, sem escrever aquilo, não podem ter as cartas de exâmina. Eu tenho um que me mandou. Como sabe, eu daquilo nada entendo, mas bem vejo que é obra acabada e bem-feita. Deixe estar que lho hei de trazer, para ver.
— Eu disso pouco sei dizer, não é a minha especialidade. Não estamos habilitados para declarar aqui qual fosse a especialidade do Sr. João da Esquina.

— Pois sim, bem sei; continuou o pai, mas sempre há de encontrar coisa que o perceba. O João da Semana também tem um que o Daniel lhe mandou e disse-me que está coisa asseada; e o Sr. reitor afirmou-me que bem se conhece que o rapaz não se esqueceu do latim, porque em... geografia, parece-me que foi geografia que ele disse, nisto que ensina a escrever com letras dobradas, não tem nada que se lhe note.

— Bom é isso – replicou o tendeiro, já um pouco distraído a somar as parcelas do seu livro de assentos. José das Dornas continuou: — Quer saber, Sr. João? Olhe que, pelos modos, o rapaz até lá provou... Já sei que se vai admirar, mas olhe que é fato, assim o leu no fim do livro o Sr. Reitor, até lá provou... que não há doenças.

João da Esquina interrompeu efetivamente a sua tarefa, para fitar no seu interlocutor uns olhos espantados.
— Que não há doenças?
— É verdade – respondeu o lavrador, saboreando em delícias a estupefação do seu vizinho.
— Essa agora! dizia este ainda no mesmo tom de espanto, mas como se entende isso?
— Assim como eu digo.
— Ó Sr. José das Dornas, então que é este reumatismo que me não deixa mexer?
— Não sei. Diz ele que é outra coisa; lá lhe dá um nome, mas é tão arrevesado, que me não ficou.
— Que não há doenças! Essa lá me custa a engolir! Então para que andou o rapaz a estudar, e o que vem fazer para cá, se não há doenças? Faz o favor de me dizer
 
— Ele não me disse que...

Mas João da Esquina estava muito ofendido nas suas crenças, para o deixar continuar: — Que não há doenças! Sempre é uma, a falar a verdade! Não, não há! Que diabo ele viu então lá no hospital? Ora essa! E que disseram lá os... mestres a isso?
— É o que eu estou morto por lhe perguntar. Mas o Sr. João admira-se? E então se eu lhe disser que ele provou também que um homem é a mesma coisa que um macaco? João da esquina fechou com impetuosidade o livro dos assentos.
— Irra! Está a caçoar comigo, Sr. José? Ele podia lá dizer semelhante coisa?
— Pergunte ao Sr. Reitor, que assim o explicou: pergunte, se não acredita.
— Eu não, pois... Macaco! Então eu sou macaco? Então vossemecê é macaco? Então ele é macaco? Então nós somos... Ora, isso não pode ser.
— Você, Sr. João, cuida que eles entendem as coisas assim como nós. Isso tem lá sentido.

— Outro sentido! Que diabo de sentido há de ter? Todos sabem o que é um homem, todos sabem o que é um macaco. Não vejo que outro sentido seja. Macaco! Irra! Não, essa agora é que me não entra cá.
— Ele, salvo seja, observou José das Dornas, rindo, aqueles diabos parecem às vezes mesmo gente, lá isso parecem; o Sr. João nunca os viu?
— Vi, vi; tenho visto muitos.
— Olhe que fazem coisas! Que, fora a alma, já se sabe...
— Pois sim; mas o... mas a cauda?
— Ah! lá isso... respondeu o lavrador embaraçado.
— Ora então, aí tem, disse João da Esquina com ar triunfante, capaz de fulminar Lamarck.

— Deixe ver se me lembro de outras que ele provou...
— Não; essa já não é má! Mas, ó Sr. José, deveras ele disse?
— Ora essa, vizinho! Palavra que sim...
— Macacos! O rapaz não estava em si deserto. Macacos! Mas então que ele queria dizer afinal? Pois nós somos macacos, Sr. José? Ora diga?
— Não sei. Eles lá o leem, lá o entendem.
— Vão para o diabo. Bem me importa a mim o que eles leem e o que eles entendem. Não está má essa! Macacos!

Durante este solilóquio de João da Esquina, fazia José das Dornas por lembrar-se de mais outra das proposições, que publicamente sustentara seu filho, perante o júri escolar.
— Ah! é verdade, exclamou afinal. Esta também lhe vai fazer mossa. Já estou vendo... Diz que sustentou lá também que a gente, verdadeiramente, devia andar com as mãos pelo chão.

O gesto de tendeiro foi tão violento, que José das Dornas acrescentou como corretivo: — Ele não diz isto bem assim, mas lá por umas outras palavras, que eu não tinha entendido, mas que o Sr. reitor explicou. João da Esquina conservava sobre José das Dornas um olhar desconfiado
 
— Vai me parecendo que o Sr. José tem estado mas é a caçoar comigo.
— Ó homem! Com a verdade com que eu falo, assim Deus salve a minha alma.
— Então com que havemos de andar a quatro como, com sua licença, as cavalgaduras?
— Não; ele tanto não quer dizer.
— Não quer? Mas se ele diz...
— Sim, mas ele não diz...

E os dois olhavam-se embaraçados. José das Dornas não podia se resignar a tirar a consequência, um tanto dura, formulada pelo tendeiro; mas também não lhe corria escapula razoável. João da Esquina aguardava em vão a resposta. Afinal José das Dornas saiu-se de entre as duas pontas dilemáticas deste " disse não diz", graças a evasiva costumada em casos tais: — Homem, eles lá sabem o que querem dizer na sua.
— Eu julgo que não é necessário ser grande doutor para defender isso. Mas que ande quem quiser com as mãos pelo chão, que eu por mim...
— Outras, continuava José das Dornas. Disse que há muito pouca diferença entre um... um alimento ou elemento, diz que é a comida que a gente come, e um veneno.

João da Esquina já não podia se espantar mais; limitou-se a observar com ironia: — Pois, quando ele vier, cozinhe-lhe vossemecê um guisado de cabeças de fósforos com rosalgar, a ver como ele se dá. Se é a mesma coisa... Sempre ao que ouço! estes médicos de agora!
— Enfim, mostrou muito outra coisa o rapaz e de que eu agora não me lembro. Pelos modos deixou-os todos maravilhados.
— Se lhe parece que não! sendo todas desse jaez.

Para os leitores, alheios a certas noções de ciência e que se sintam tentados, como o Sr. João da Esquina, a duvidar da veracidade de quanto José das Dornas referira, devo eu, em bem do caráter sisudo do honrado lavrador, acrescentar aqui, à maneira de nota elucidativa, informando-me com pessoa competente, soube que as proposições que tanto impressionaram o tendeiro tinham seus fundamentos em várias opiniões e teorias filosóficas mais ou menos à moda.

Daniel, com o amor extravagante natural a quem deixa aos vinte anos os bancos das escolas, afeiçoara-se àquelas proposições que, formuladas, pudessem aparentar-se mais paradoxais, não hesitando em levar às últimas consequências os princípios sistemáticos de algumas escolas e seitas. Esta vulgar tentação da juventude não lhe granjeou grandes créditos no conceito de João da esquina, a cujo bem senso repugnavam as asserções, que, pelo relatório do José das Dornas, lhe vieram assim, nuas e cruas, ao conhecimento. Assim que o lavrador virou as costas, João da Esquina murmurou com os seus botões: Nada, para mim não serve o doutor. Se ele diz que não há doenças, que há de vir cá vir fazer? E depois, pôr-me em dieta de vidro moído e cebola albarrão ou outras coisas assim, e mandar-me a correr de quatro pelos montes. Nada. Quero-me com o João da Semana, que é homem sério, e não tem destas esquisitices da moda.

Capítulo XII

Ao deixar José das Dornas, na tenda do seu vizinho da esquina, o reitor, apoiado na grossa bengala de cana, companheira fiel das fadigas de muitos anos, foi seguindo pelos caminhos poucos cômodos de sua paróquia, entrando na casa dos mais pobres, onde levava a esmola e o conforto das doutrinas evangélicas que tão singelamente sabia pregar. Era esta, para ele, tarefa habitual.

Sentava-se com familiaridade à cabeceira do jornaleiro doente, ele próprio lhe arrefecia os caldos, lhe temperava os remédios e lhos ajudava a tomar; guiava com conselhos e ensinava com o exemplo os enfermeiros que, entre a gente pobre dos campos, são quase sempre os mais pequenos da família, aqueles que, pela idade, representam ainda uma parte pouco produtiva da receita; porque os outros nos reclamam as exigências imperiosas do trabalho.

No cumprimento desta obra de misericórdia, atravessou o reitor quase toda a aldeia, e com o coração apertado pelos infortúnios que vira, e desafogada a consciência pelo bem que fizera, continuava placidamente a sua tarefa abençoada. Depois de muito andar e de muito consolar misérias, parou por algum tempo por debaixo das faias, que assombravam um largo terreiro, e sentou-se com o fim de ganhar forças para prosseguir.

Enquanto descansava foi dar balanço às algibeiras, que trouxera bem providas de casa. Este balanço foi desanimador para os projetos ulteriores do velho. A esmola, essa sublime gastadora, que nunca abandonava a direita do pároco nestas visitas pastorais, havia-lhe esgotado o capital, sem que ele desse por isso. O reitor mostrou-se mortificado; não que lamentasse o dinheiro gasto assim, mas porque estava longe de casa, e tinha ainda mais infelizes a socorrer.

Poucas cogitações financeiras de um ministro de Estado, perante um deficit no orçamento, valem as do pároco naquela ocasião. Apertando entre o indicador e o pólex o lábio inferior e com o olhar imóvel próprio das profundas abstrações do espírito, conservou-se por bastante tempo irresoluto, entre o prosseguir a sua visita com as mãos vazias, e o transferir para outra vez o complemento dela. Nem um nem outro alvitre lhe agradavam porém. De vez em quando tornava a procurar nas algibeiras, a ver se lhe passava despercebida alguma moeda, que o tirasse de maiores dificuldades. Mas de nada lhe valia a pesquisa.

Enfim se levantou; radiava-lhe a fisionomia com um ar de resolução como se afinal lhe ocorrera o pensamento desejado; e foi já com andar firme e decidido que continuou o seu caminho, murmurando consigo mesmo não sei que palavras pouco perceptíveis, acompanhada ás vezes de certa mímica de mãos. Depois de trezentos passos, pouco mais ou menos, dados assim, achou-se o reitor defronte de uma casa branca, cujas funções eram bem indicadas pelo ramo de loureiro que pendia à porta e pelo coro e vozes e ruído de gargalhadas e juras, que vinham do interior dela. O padre tomou a direção desta casa. Não o surpreendeu o espetáculo que presenciou, porque o esperava.

Alguns lavradores e homens de ofício, sentados à volta de uma banca de madeira, todos formidavelmente munidos de grandes copos de vinho, estavam ali recebendo simultâneas as comoções de beberronia e de jogo de parar. Cada um deles seguia de olhos atentos as evoluções do baralho de cartas, moído e sebento, que um banqueiro, igualmente dotado desta última qualidade, executava a prestidigitação de consumado artista; o ardor do ganho, a recíproca desconfiança que os animavam, rompiam ainda através dos densos nevoeiros que pareciam toldar aquelas vistas avinhadas.

Havia um considerável monte de cobre e alguma prata no meio a mesa e montes parciais, mais ou menos bem providos, ao lado de cada jogador. A cada sorte, que se decidia entre um silêncio e ansiedade de suspender quase a respiração, seguia-se um vozear infernal composto de exclamações de júbilo dos felizes e pragas dos sacrificados.

O reitor assomou ao limiar da porta, em um desses momentos de tumulto. Discutia-se, quase tão desordenadamente como nas mais importantes sessões dos nossos parlamentos, a legalidade e a inteireza da mão última do jogo. A correr parelhas com a pouca moderação das palavras, só a das libações do vinho. Os copos vazavam-se e enchiam-se com rapidez pasmosa, e o taberneiro a cada um que se despejava traçava um sinal a giz na porta vermelha da cozinha.

O aparecimento do reitor causou sensação. O primeiro movimento dos circunstantes ao darem por ele, foi o de esconderem as cartas e o dinheiro; mas, na impossibilidade de o fazer a tempo, levantaram-se e, com ar de embaraço, tiraram o chapéu e baixaram os olhos. Houve um momento de silêncio, empregado por o reitor em reconhecer os delinquentes, e durante o qual estes não ousaram levantar os olhos.

— Não é regedor, sosseguem, disse enfim o, reitor ainda no, limar da porta e pena é que não o seja para vos meter a todos na cadeia. E adiantando-se na taberna, continuou: Santa vida esta! Assim é que é ganhar o reino do céu! Sim, senhores! Aqui estão uns poucos de santos varões, que empregam bem o seu tempo! Respeitáveis e exemplares patriarcas, de quem muito se pode esperar como educadores de família! Sim, senhores! E, mudando para um tom mais severo: Vossas mulheres estafam-se com o trabalho, para dar um bocado de pão negro aos filhos e a vós esta vida regalada, não é assim? Ainda agora encontrei o teu pequeno, Manuel, que pedia esmola pela porta dos vizinhos; não tens vergonha? Tua mulher, Francisco, estava há pouco de cama e teve de mandar à cidade a filha mais nova com uma canastra de hortaliça, com que ela mal podia; ia a vergar, a pobre pequena.

Achas isso bonito? Teu irmão, João, ainda não há três dias que foi pedir emprestado, chorando, ao José das Dornas, dinheiro para pagar ao mestre da fábrica, em que traz o filho na cidade; talvez tu não tivesses para lho emprestares? - Não há muito o pobre José Maia se me queixou a mim, de que tu, Damião, ainda lhe não tinhas pago por inteiro o preço daqueles bois que lhe compraste. Mas que importam essas pequenas coisas? Que importa lá a miséria que vai por casa, se não falta o dinheiro para o vinho e para o jogo! Isso é o que se quer! E tu, acrescentou voltando-se para o taberneiro, que, de trás do mostrador, assistia calado a toda essa cena, tu vai engordando à custa destas misérias todas. Passam fome as mulheres e as crianças, para te encher as gavetas e a barriga! Ó Santo Deus! e tanta desgraça, que por aí vai, e tanta gente sem pão para comer!

— Essa é boa! o meu ofício é vender vinho, vendo-o; faço o meu dever, resmungou o taberneiro despeitado.
— Fazes também o teu dever, enchendo com outro tanto de água as pipas de vinho que vendes? E permitindo em tua casa estes costumes proibidos pelos homens e amaldiçoados de Deus? Estes jogos infernais, que têm levado tantas cabeças à forca, e tantas almas ao inferno? É esse também o teu ofício? Pois deixa estar avisarei o regedor, para que te dê a recompensa, por o bem que o cumpres.

O taberneiro não redarguiu.O reitor voltou-se de novo para os jogadores, ainda silenciosos.
— Chego ao meio de vós com as mãos e as algibeiras vazias. Vede. O dinheiro, com que sai de casa, ficou-me por esses caminhos, alguns nas casas de muitos dos que vejo agora aqui. A esses não estou disposto a perdoar a dívida, pois vejo que não precisavam da esmola, que eu lhes dei; os outros, que têm para perder no pecado, também hão de ter para a obra de misericórdia, ou tisnada trazem já a alma pelo fogo do inferno. Tenho ainda muitos pobres para ver, e não trago já dinheiro comigo. Peço esmola para os pobres, prosseguiu o reitor em voz alta, e aproximando-se da mesa, quem não dará aqui esmola para os pobres? Amanhã, continuando vós nesta vida, eu pedirei também esmola para vós. Lembrai-vos disso.

E a um por um estendia o chapéu, fitando-os com um gesto nobre de composta severidade. O respeito que lhe impunha a figura do ancião, pedindo desinteressadamente pela pobreza, e em muitos, a voz da consciência, coroaram do melhor êxito a inspiração do pároco.

Houve quem lhe despejasse no chapéu todo o dinheiro que tinha diante de si.
— E tu?
— Não tenho nada, respondeu este homem com ar abatido, perdi e devo.
— Não tens nada! – redarguiu o padre com amargura, tens sim; tens cinco filhos e uma velha mãe moribunda. O homem cobriu o rosto, para ocultar as lágrimas.

— A que vem esse choro agora? Pois julgavas tu que matarias a fome à tua família por essa maneira? Para que te deu Deus os braços robustos, homem, e o peito valente, se os negas ao trabalho? E voltando-se para os jogadores que sabia mais abastados prosseguiu com maior veemência: E vós tivestes alma para vos entregardes a este jogo danado com um homem, que punha em cima da mesa o pão e o sangue dos seus filhos e de sua mãe! Vergonha e desgraça sobre vós, miseráveis, se dentro de um dia não compensardes o mal que fizestes, abrindo por vossas mãos a este pai e filho desnaturado a carreira do trabalho, que é da honra igualmente, dentro de um dia como podeis e deveis. Eu vos forçarei a isso. Homens, que tão bens servis para perder, servi um dia ao menos para salvar. Não podes pagar? Alguém pagará a tua parte.

— Não pode pagar, não confirmou o taberneiro, que a mim me deve ele uma conta, e não pequena, de vinho.
— Ah, sim? Disse o reitor, voltando-se para o da observação. Pois hás de ser tu que pagarás a parte dele. Ainda não deste nada. Dá-me a sua dívida.
— Mas, Sr. Reitor... balbuciou o taberneiro.
— Consideras-te mais que os outros! Só se for por seres o mais culpado.
— Não, senhor... De boa vontade lha perdoo, lá por isso... e acrescentou falando consigo o taberneiro: Não cedo grande coisa, que perdida a tinha eu há muito.

Depois desta abundante colheita, o reitor continuou: — Compensem ao menos com esta boa ação, o pensamento diabólico, que vos juntou aqui. E agora ide para vossas casas, e para o trabalho. Lembrai-vos que mal vai a família e a fazenda do que se esquece na taberna assim; e retenha-vos essa lembrança, se ainda não tendes endurecido de todo o coração. O que entra rico nesta casa, sai a pedir; se entrar pobre, sai criminoso. Ide. Fugi às tentações destes inimigos, isto dizia tomando as cartas da mesa e fazei como eu, quando as tiverdes à mão. E, com um rápido movimento do braço, fez voar todo o baralho até ao fogo, que em pouco tempo o reduziu a cinzas. E pondo outra vez o chapéu na cabeça, saiu da sala.

Após ele foram saindo também os jovens consócios da taberna, que não se sentiam com alma de continuar ali. Para alguns tinha de ser a última tentação. O que menos contrito se mostrou foi o dono do estabelecimento que deu ao diabo a intervenção do pároco na pacífica diversão de meia dúzia de fregueses honestos e tementes a Deus. No entretanto o reitor ia prosseguindo a sua visita e distribuindo pelos necessitados o dinheiro dos ociosos. Sorria de satisfação o velho, ao fazê-lo.

— As grandes ventanias, monologava ele; são também um mal para o lavrador, porque lhe derrubam as searas, mas... como se não podem evitar... que se faz? levantam-se nos montes as asas de um moinho, e elas aí estão aproveitadas. Aproveitemos pois também da loucura má desses perdulários, já que pude acabar com ela de todo. Se a água é muita nas presas, não se deixa extravasar à toa, abre-se um regueiro, que a leve onde ela seja precisa. Ó Santo Deus! e então que há por aí terras tão sequinhas de água! Doer-me-ia a consciência se tivesse enchido a bolsa com as esmolas dos laboriosos e poupados; mas com as destes... ora... folgo e orgulho-me.

Capítulo XIII

Ao chegar a um largo todo plantado de sobreiros, quase seculares, que havia no centro da aldeia, ainda o bom do pároco levava as algibeiras bem fornecidas. A tarde se aproximava do fim, estendiam-se já as sombras muito mais para o oriente, e coloriam-se de vermelho afogueado as vidraças voltadas ao ocaso.

O reitor encaminhou-se para uma das casas de mais miserável aparência que havia naquele lugar.
— Terminemos por este, dizia o velho consigo. Empurrou adiante de si a porta desta casa, e ia entrar, quando deu de rosto com Margarida, que saia. Os olhos vermelhos da sua pupila, a expressão de dor que trazia no semblante, chamaram a atenção do reitor.
— O que tens, Margarida? Perguntou ele, como solicitude. Esses olhos são de quem chorou.
— É que me despedaça o coração ouvi-lo.
— Então está mais doente?
— Está muito mal.
— E onde ias tu?
— A casa. O boticário quer o dinheiro dos remédios...

— Que não vá se arruinar o homem. Deixa que tem de me ouvir. É pior que o pior dos seus cáusticos. Porém, não tem dúvida, que eu venho bem provido. Entra, mas antes me alegra este rosto. Vamos. E os dois entraram na sala. O interior da casa não contradizia o aspecto de fora. Era a casa de um pobre. Com a cabeça encostada nas mãos e os cotovelos apoiados na mesa, estava um homem escarnecido e pálido, tão absorto, que nem deu pela chagada do reitor, o qual se aproximou dele lentamente.

Este homem era o infeliz que servia de mestre a Margarida. O pároco ficou por algum tempo a observá-lo em silêncio; vendo porém que não era sentido, dirigiu-lhe a palavra.
— Que grande dormir é esse, Sr. Álvaro, que nem dá pela chegada de um amigo? O velho levantou finalmente a cabeça como sobressaltado por aquela voz.
— Ah! é o Sr. Reitor? Não dormia, não...
— Então?
— Pensava.
— Em quê?
— Em quê? E falta-me em que pensar? Na minha vida passada e na futura, que está próxima já.
— O passado, disse o reitor, sentando-se do outro lado da mesa e sem desviar os olhos do velho Álvaro é um sonho, que se sonhou. E quando dele, felizmente, não ficaram remorsos, que peçam reparações, arrependimentos ou... penitências, perde-se muito tempo a pensar nele assim. Da vida futura... bom é ter nela sempre o pensamento, decerto; mas quem sabe lá quando nos está próxima?

— Sei-o eu. Há dois dias que me sinto fraco, muito fraco. Nem já pude sair para, como costumava, ir ver o pôr do sol lá acima dos degraus da capela do Calvário.
— Isso lá... todos nós temos dessas fraquezas, sem causa. Há dias assim. E então desanima por isso?
— Desanimar! replicou o velho, sorrindo tristemente. E que ânimo tenho ainda para perder? Há muito que ele me falta na vida. Bem vê, continuou apontando para Margarida, que tenho precisado de um braço para me sustentar.

— Grande ânimo tem o que sai das grandes provações com a cabeça levantada. Para que se faz de cobarde diante de quem lhe conhece e admira a coragem? A Cristo, também houve uma mulher que lhe limpou o suor da fronte vergada; e mais era um ânimo divino, aquele.
— Não, eu não sou forte, continuou o velho doente. Colocado, como estou, entre a morte e a vida, receio-me de ambas. desfalece-me o alento diante das provações continuadas de uma; assusta-me a incerteza, o desconhecimento da outra. O meu coração é muito da terra, para poder ser forte. Os meus olhos ainda não se secaram para as lágrimas...
— Bem-aventurados os que choram! redarguiu o reitor.

— Como me há de sustentar a vida, se há muito que, onde busco a consolação, encontro só o desespero? Continuou o enfermo. Ao findar o dia, gostava eu de me ir sentar lá fora, a ver descer o sol; mas, dentro em pouco tempo, tomava-me de uma tristeza profunda e rompia em lágrimas, que não podia estancar. Aquele descimento do sol lembrava-me outros ocasos. Eu tenho visto tantos! um dia, em volta de mim, apagaram-se os esplendores da riqueza. O meu coração era de homem... padece: mas Deus sabe que não foi para ele, esta a prova mais terrível. Outro dia se apagou a luz da vida no olhar da esposa adorada; outro, nos rostos de duas crianças inocentes, que, ainda a morrer, me sorriem; então sim, fez-se noite em minha alma... Era isto que me recordavam aqueles ocasos.

— Mas então para que procurava essas ocasiões de tristeza, diga? Perguntou Margarida com afabilidade e quase sorrindo. Olhe, se às mesmas horas se voltasse para o outro lado, para aquele onde o sol nunca vai se esconder, nem as estrelas, havia muitas vezes de avistar a lua que subia, a lua que não deixava que a sua noite fosse escura de todo. Também ela o afligiria assim?
— Também ela. As vezes a vi. Lembrava-me então que, para mim igualmente, ao apagarem-se as mais ardentes afeições do meu coração, nasceu a luz do teu afeto, melancólica e suave como a dela, Margarida; entristecia-me com a lembrança.
— Por quê? Perguntou Margarida.
— Porque tentando descobrir a força misteriosa que te aproximava da minha desventurada velhice, a ti, a quem, pela idade, só alegrias deviam atrair, encontrava apenas a explicá-la a tristeza dessa alma, tristeza que é o segredo do teu coração, que a ninguém revelas, e que Deus queira que não acabe por te devorar um dia.

Margarida desviou os olhos da vista fixa e penetrante do velho, e respondeu, fingindo sorrir.
— Pois então, dessa vez, meu bom amigo, era bem sem razão que se entristecia.
— Prouvera a Deus que o fosse... que o seja. Mas, bem veem, havia em mim muita amargura, para me ser suportável a vida. Se o pavor nos está nos lábios, não há doçura de mel que o disfarce. Vergava pois o peso da existência. Pedia fervorosamente a Deus que me tirasse deste martírio, e era sincera a prece, era! Persuadi-me eu que, ao ouvir bater a minha última hora, a saudaria com júbilo; e agora que bem sinto que chegou... e chamam-me forte ainda! agora ou ouvi-la, assusto-me, estremeço... Está próximo a revelar-se o mistério... e que segredos me descobrirá? Que verá minha alma ao rasgar-se a nuvem que caminha diante dela? Que verá minha alma depois do túmulo? Que verá minha alma no dia de amanhã?
— A glória eterna, a bem-aventurança do Céu; respondeu o reitor com a firme convicção da fé. O velho Álvaro fitou nele um olhar demorado e perscrutador, e depois, escondendo o rosto entre as mãos, exclamou quase soluçando: — Senhor! Senhor! por que me negais o bálsamo de uma crença como esta!

O reitor contemplava com olhos de piedade. Para a sua alma, ingênua e sinceramente cristã, era desconhecida e quase inconcebível esta excitação febril, a que certa ordem de meditações arrebata alguns espíritos ilustrados. A dúvida, esse demônio inquietador, nunca dirigira às suas crenças piedosas a interrogação fria e implacável, que as faz estremecer. Elas protegiam-lhe ainda, como dantes, a cabeceira do leito contra os maus sonhos dos filósofos, e, alumiado pela sua luz, achava-se também o bondoso pároco no fim da viagem da vida, sem se lembrar de perguntar a que porto chegaria. Sabia-o de pequeno; desde então lhe repetia o nome de contínuo. Como que já aspirava as auras desses país e às vezes quase se iludia a ponto de o julgar entrever. Era feliz na sua fé.

Contudo o reitor era destes homens que têm coração para se compadecer de todos os infortúnios, daqueles mesmos que a sua inteligência não compreende bem. A solicitude, com que se aproximava dos infelizes, não podia se comparar à do médico, que procura sondar e conhecer o mal, para o debelar apropriadamente; era antes como a da mãe, que responde a todos os gritos do filho estremecido com beijos e lágrimas, e, se não cura assim a causa da dor, porque a desconhece a mitiga, por as simpatias que revela.

As palavras cheias de resignação cristã, que o reitor dirigiu ao atribulado enfermo, serenaram a este um pouco as amarguras do espírito, que o espinho da dúvida pungia; e foi com verdadeira gratidão, que apertou as mãos do padre, quando este se preparava para retirar-se. Uma das razões, que o levaram a resumir sua visita, foi o parecer-lhe ter ouvido o rumor de altercação um pouco viva, travada à porta da casa, entre Margarida, que momentos antes deixara a sala, e outra pessoa, cuja voz parecia vir da rua.

Ao aproximar-se, o reitor percebeu melhor que sua pupila falava em tom suplicante, e o interlocutor, se não com aspereza, com menos cordura, do que o pároco desejaria. Isto o obrigou a apressar o passo.
— Mas, por amor de Deus, fale mais baixo que não vá ele ouvir. Eu lhe prometo que tudo se lhe pagará, dizia Margarida, quando o reitor chegava junto deles.
— Que é? Perguntou este com modo desabrido, saindo para a rua e fechando atrás de si as portas da casa.

O personagem que falava com Margarida baixou logo de tom ao reconhecer o reitor, e respondeu com certa timidez: — Era uma continha que trazia; mas uma vez que aqui a menina se responsabiliza... Eu sou o senhorio. Sim, porque V.S.ª bem vê que se eu estivesse no seu caso de poder fazer esmola de boa vontade...
— Quem lhes pede? Disse asperamente o velho padre, tomando o papel das mãos do credor, que falara assim.  Para pagar aos vampiros como você, é que se pedem esmolas aos outros; aos que tem coração. Aluguer de dois meses. Olham a grande coisa! Então é o que se lhe deve? Ai tem, acrescentou, contando-lhe o dinheiro.  Não repare o ir quase todo em cobre; mas é dinheiro de esmolas, e poucas se realizam em prata cá na terra.
— Mas, Sr. Reitor, eu não exijo de V.S.ª... eu confio...
— Leve isso daqui, homem! e saia você também que me está inquietando o espírito.

O senhorio foi embolsando o dinheiro, insignificante preço de dois meses de aluguer daquele miserável casebre, e retirou-se com uma alegria profunda.
— Restam cento e dez; disse o pároco, vendo o dinheiro que lhe ficara. Chegará para os remédios? Perguntou olhando para Margarida. Esta fez um gesto de dúvida.
— Nesse caso, eu vou falar com o boticário, que não é mau sujeito afinal, e hei de resolvê-lo esperar até amanhã; E de caminho, irei também visitar o filho e José das Dornas, que deve já ter chegado. Estas últimas palavras não foram escutadas com indiferença por Margarida.
— O Sr... Daniel chega hoje? Perguntou ela.
— Pelo menos o pai o espera. E acrescentou como para consigo.
— Agora para aí vem se estabelecer o rapaz. Deus queira que ele sossegue aquela cabeça, que, segundo me informam, não tem sido lá das mais assentes. Vai tu para casa também, Margarida. O teu mestre fica mais sossegado e espero que dormirá.

O que é preciso é mandar recado ao João da Semana que o venha vir. Acho-o muito abatido e mudado nos modos. Aquilo não está bom. não. Adeus. Eu vou avisar a Maria do Caleiro que venha tratar do doente. É uma esmola que se faz também à pobre mulher. E o reitor saiu para realizar estes diversos intentos; Margarida, depois de se despedir do seu velho mestre, que de fato parecia mais sossegado, partiu também para casa.

Entre os pensamentos que a dominavam na volta, um dos mais persistentes era o que a anunciada vinda de Daniel lhe sugerira; e contudo nada de extraordinário havia no fato. Se quiséssemos dizer quanto lhe ocorria a este respeito, ver-nos-íamos embaraçados. São tão vagas, tão difíceis de apreender, as ideias que evocam em nós a lembrança de uma pessoa querida!

Capítulo XIV

O grande acontecimento do dia realizava-se enfim. Pelas cinco horas da tarde, parava à porta de José das Dornas a mais vigorosa e anafada das suas éguas, e dela se desmontava Daniel, em trajos de jornada e com a clássica caixa de lata ao tiracolo, sinal evidente de formatura completa.

A vizinhança toda afluiu curiosa às portas e às janelas para ver o facultativo novo e julgar dele pelas primeiras impressões. Era uma coleção de olhos arregalados e bocas abertas, a convidar o lápis de um artista.
— Ainda é tão novinho! dizia uma mulher.
— Não sei o que me parece um cirurgião sem barba observava um velho filosoficamente. Parece um estrangeiro.
— Lá bonito é ele notava uma rapariga.
— Olhem que boniteza! Um homem quer-se um homem arguiu um alentado rapagão ao ouvi-la.

Neste tempo, porém, já Daniel estava rodeado pelo pai, irmão e criados de um e de outro sexo, em cujos semblantes luziam naquela ocasião sorrisos de júbilo não afetado. Daniel era agora um esbelto rapaz de vinte e três anos, de aspecto mais varonil, mas conservando ainda a mesma delicadeza de organização, que o caracterizara na infância, e que tantas apreensões fizera conceber ao pai.

No meio daqueles homens do campo distinguia-se singularmente o seu tipo quase setentrional, e com grande vantagem para ele no conceito das mulheres, que umas às outras faziam baixinho esta observação, traída, porém, pelos olhares que lhe lançavam. Trocaram-se cordiais abraços, baratearam-se parabéns e cruzaram-se perguntas, às quais era quase impossível responder de pronto, tantas e tão simultaneamente se faziam.

Enfim entraram para a sala. O leitor concordará comigo, decerto, que será melhor deixar passar estes momentos de expansões e retirarmo-nos discretamente, como hóspedes importunos sempre nestas cenas de tanta alegria doméstica. Deixemos Daniel gozar-se à vontade dos abraços da família, e preparar-se para sofrer, como puder, os apertos de mãos oficiosos de amigos e conhecidos, que não tardarão a vir cumprimentar o zelador de suas importantíssimas saúdes.

Entremos, pois, com estes. que é a companhia que melhor nos convém. Entre os primeiros encontramos logo o reitor. O bom pároco caminhou para Daniel com os braços abertos e lágrimas de alegria a bailarem-lhe nos olhos, Ficara com afeição ai rapaz, desde que o tivera por discípulo. Falou-lhe desses tempos com saudades e perguntou-lhe se ainda se lembrava do latim.

Daniel, em resposta, declinou-lhe, sorrindo, hora, hora, e até ao ablativo do singular, com grande satisfação do velho que, em paga... terminou com uma prática sobre os deveres do médico na sociedade, recheada de preceitos de excelente moral. Daniel escutou-o com fisionomia atenta; mas, diga-se o que é verdade, com o espírito um tanto distraído.

Veio também João Semana. João Semana, o velho cirurgião, de quem já temos falado, homem rude, franco, jovial, que apertou a mão de Daniel, pondo em exercício uns músculos de oitenta anos, que fariam a vergonha dos nossos rapazes de vinte. Apesar dos seus muitos anos, tinha ainda João Semana hábitos de atividade, a que não sabia fugir.

Erguia-se com estrelas, almoçava com luz e montava a cavalo, para começar o giro clínico, que lhe tomava o dia quase todo, e nunca reprimia a velocidade de sua pacífica e bem-intencionada azêmola, para gozar por mais tempo de um ponto de vista pitoresco, para escutar o gorjeio de alguma ave oculta na folhagem, nem para cortar a flor desabrochada à borda dos caminhos, ou de entre a relva dos campos. Nada disso; se abrandava o trote da égua, era nos sítios mais azados a quedas, se parava, era à porta dos doentes ou a ouvir alguma consulta, à qual, até a cavalo, respondia, e nos mais lacônicos termos possíveis.

Dava-se nele uma necessidade de movimento e de agitação, à qual em vão fora resistir. Quem o quisesse ver morto, era condená-lo à inação, privá-lo daqueles sóis ardentíssimos e chuvas excessivas a que, havia mais de meio século, andava sujeito. Viam-no sempre alegre, da mesma alegria de José das Dornas, a alegria sem sombras. Era perdido por anedotas, das quais podia dizer-se um repositório vivo. Os frades era ordinariamente os seus heróis preferidos; contra eles tinha sempre um gracejo aparelhado e pronto a correr caminho.

Esta bossa anedótica é sempre de grande valor para o facultativo que aspira à vida clínica. Uma história contada a tempo, e com graça, vale bem três récipes, pelo menos. Cirurgião dos pobres, por encargo oficial, era-o João Semana também, e sê-lo-ia sempre, por impulsos do coração, que lhe não deixava presenciar um infortúnio qualquer, sem simpatizar com o que sofria, e sem empregar os meios para o aliviar. Muitas vezes, na mão, que estendia ao pulso dos seus doentes, ia escondida a esmola, que manifestamente se envergonhava de dar, por aquela repugnância a ostentações de todo o gênero, que constituía um dos distintivos do seu caráter.

A conversa de João Semana com Daniel, não entendida, e por isso admirada pelos circunstantes, versou sobre medicina. As exaltadas crenças teóricas de Daniel, e a casuística inflexível e fria do velho prático acharam-se em conflito. João Semana era céptico em relação à ciência moderna. Quando Daniel lhe citava um autor em voga, ou se referia a uma descoberta notável, a um medicamento novo, João Semana encolhia os ombros, sorrindo.

— Tudo isso é muito bonito, dizia ele, com poucas contemplações para com a impaciência do seu jovem colega – mas não me serve para nada. Era o que me faltava se eu, que não tenho tempo para dormir, me punha agora a ler essas coisas todas. Que nomes! que moléstias que eu nunca vi, em sessenta anos de prática! Sabe você, Daniel? Eu penso que lá por fora, nessas terras grandes, há fábricas de moléstias novas, que felizmente por lá se gastam também; cá à aldeia não chegam; é o que sei lhe dizer. Você para cá virá, você para cá virá, há de ver que na prática a coisa reduz-se a muito pouco, mais gástricas, menos gástricas e disse.

Daniel falou em mil assuntos: nos aperfeiçoamentos da análise médica, no microscópio, na eletricidade, na química, na anatomia patológica, com um ardor de proselitismo, próprio da idade; chegou a persuadir-se que sua eloquência conseguiria, enfim, vencer o indiferentismo teórico do clínico. Recebeu, portanto, uma impressão desagradável, quando ao terminar um bem elaborado período em honra da ciência moderna, obteve em resposta a frase do costume: — Isso é tudo muito bonito, mas você para cá virá, você para cá virá, e então falaremos. Nesta parte, tornava-se, pois, impossível a conciliação. Era o antagonismo permanente entre a teoria e a prática, revelado em uma das suas multiplicadíssimas manifestações. Mais arrojado do que o empirismo de João Semana, era, sem dúvida, o sistema médico do barbeiro, que também tinha uma clínica na aldeia, à qual, para maior exemplo de observância à lei, pertenciam duas autoridades: o regedor e o presidente da câmara.

O barbeiro entrou risonho, cerimoniático, afável, modesto, penteado, felino; perfeita personificação do ideal do barbeiro, todo mesuras, todo senhorias, todo humildades, todas delicadezas velhacas. E quantos estavam na sala o rodearam de atenções, e o próprio João Semana, com grande espanto de Daniel, o interrogou com referência a uma doente, de quem tratavam juntos. Com audácia, mal encoberta por transparente modéstia, o barbeiro expôs assim a sua opinião.

— Enquanto a mim, e até onde chegam as minhas fracas luzes, aquilo é o flato que lhe subiu ao coração. Por isso a doentinha tem aqueles pasmos, que se veem. Ora os sinapismos, puxando-lhe os humores para os pés, algum bem lhe podem fazer. Mas eu por mim, Sr. João Semana, penso que nestas doenças de retrocesso a matéria reimosa não sai sem sedenho. E que ali há matéria reimosa, e fel, que é ainda pior, isso é que há. Já vê então... mas isto digo eu; agora lá os senhores que estudaram... acrescentou humildemente, mas obliquando para Daniel um olhar, de quem estava satisfeito de si.

Daniel tratou senhorilmente este colega de contrabando, e na ocasião em que ele se entranhava, mais entusiasmado, na exposição de uma teoria sua, na qual ferviam os humores, os flatos, as matérias reimosas, os postemas e não sei que mais, em indigesta caldeirada, interrompeu-o, perguntando-lhe secamente: — Teve hoje muito que fazer, mestre? O barbeiro acolheu a pergunta com um sorriso e uma mesura.
— Está feito. Apenas fiz três visitas.
— E quantas barbas?

O mestre mordeu os beiços antes de responder: — Nenhuma. Este colega do célebre Oliveira, o gamo, não gostava que lhe falassem na única das coisas em que era eminente. É uma fraqueza, esta mais comum à humanidade, do que talvez se julga.

João Semana reparar nesta curta cena, e tomando de parte Daniel, aconselhou-o a que poupasse o barbeiro, e o aceitasse como colega, sob pena de indispor contra si a mesma gente da terra.
— Meu caro amigo, concluía ele; quem quiser viver bem neste mundo, faz vista grossa a muita coisa. Está bom, está!

E, como para não perder um hábito antigo, acrescentou: — Você quer saber? Quando eu andei no Porto, conheci um frade, que era pregador de nomeada. Pois não havia outro passa-culpas como aquele; não gostava de meter medo a ninguém com as penas do inferno. O prior do convento chegou um dia a dizer-lhe que ralhasse mais contra o pecado, que não fosse tão bom de contentar; respondeu-lhe o frade: "Não que, reverendíssimo padre, é preciso tento; nem o diabo se deve tratar muito mal, porque ele tem por aí muitos amigos". Ora pense nisto, e adeus, que vou à minha vida. E saiu.

O resultado de tudo foi uma grande depressão no entusiasmo de Daniel, pelo modo de vida que adotara. Finalmente retiraram-se as visitas. São quase trindades; a família toda, incluindo os criados, que na aldeia fazem quase parte dela, está reunida em conclave na eira, a experimentar cada qual, como à porfia, a sagacidade e ciência do novo facultativo, interrogando-o sobre todos os pequenos incômodos sentidos, de que a memória lhes pode sugerir ainda notícia. É esta a prova tremenda, que espera o estudante de medicina em tempo de férias, ou ao terminar a formatura; prova mil vezes mais decisiva para o seu futuro, de quantos diplomas lhe possa dispensar a douta corporação, da qual recebe os títulos profissionais.

Um perguntava a Daniel se a grama era mais fresca do que a cevada; outro qual a razão porque os pigmentos da conserva nunca lhe faziam mal enquanto a salada de alface lhe causava uma irritação no estômago infalível; vinha outro que desejava saber se seria melhor se purgar no quarto crescente, se no minguante da lua; queixava-se um de arrepios, que sentia ao se deitar na cama, e principalmente no inverno; outro do muito que suava no verão; um velho criado da casa, viúvo inconsolável, fez-lhe a história circunstanciada da doença de que morrera a mulher, havia dez anos, pedindo a Daniel que a diagnosticasse, e lhe expusesse o tratamento que a devia ter salvo; em contraste com esta medicina retrospectiva, vinha uma rapariga perguntar, muito ingenuamente, se lhe poderia fazer mal ir a uma romaria de aí a oito dias: José das Dornas também quis saber se o caldo de abóbora era melhor para a saúde do que o de nabos. Uma velha interrogou Daniel sobre a doença das galinhas, e o próprio Pedro, tentado por este exemplo, fez algumas perguntas sobre a dos perdigueiros.

Daniel via-se em talas para satisfazer a tantas exigências, que não timbravam de racionais, e procurava deslindar-se airosamente delas com aquele desculpável grau de charlatanismo, mais ou menos correto e disfarçado, que todas as sociedades do mundo, rústicas e urbanas, são as primeiras a exigir aos médicos. Querem elas que se lhes responda sempre, e com desaforada segurança, às suas interrogações absurdas, preferindo serem iludidas, a ficarem sem resposta, a qual muitas vezes, em consciência, medicina alguma do mundo lhes poderia dar. Peço, portanto, um bill de indenidade para Daniel.

Capítulo XV

Pedro foi quem, ao cerrar da noite, pôs fim a este interrogatório, que levava jeito de eternizar-se.
— Vem daí dar um passeio, Daniel; e de caminho hei de mostrar-te a minha mulher... a que há de ser.
— Ah! é verdade que estás para casar. Estimo que ma dês ocasião de tomar desde já conhecimento com a que dentro em pouco chamarei irmã. Espero encontrá-la digna de ti. Vamos lá.
— Ide, ide, rapazes, observou José das Dornas; Vais ver uma guapa cachopa, Daniel. Mas tu conhecê-la... É uma filha dos Meadas.
— Ah! sim... tenho uma ideia.

Cumpre-me confessar que Daniel não tinha tal ideia das filhas do Meadas. Enquanto esteve no Porto e até nos curtos intervalos de férias que passara na terra, vivera ele muito estranho à vida do campo, para se recordar ainda das alcunhas, pelas quais, na aldeia, mais geralmente são conhecidas as famílias, do que ainda pelos verdadeiros nomes e sobrenomes. José das Dornas é que tinha uma ideia ao dizer aquilo; era a de fazer lembrar ao filho o episódio da infância, que decidira da sua vida inteira.

Mas, ainda sob o risco de indispor o ânimo das leitoras contra uma das principais personagens desta singelíssima história, farei aqui a desagradável, mas conscenciosa declaração, de que a imagem de Margarida andava, por aquele tempo, tão desvanecida já na memória de Daniel, que nem o nome, pelo qual fora sempre designada na terra a família de Margarida, lhe pôde avivar os traços.

Havia muitos anos que Daniel observava um sistema de vida, que de todo o trazia desafeito dos hábitos campestres e indiferente ás coisas e pessoas da localidade que o vira nascer. Encarnara-se intimamente nele o espírito das cidades. As momentosas questões que ocupavam as cabeças sérias da aldeia, faziam-no sorrir: as distrações que entretinham as mais levianas, obrigavam-no a bocejar.

Daniel não deixara mentir o prognóstico que aquelas duas boas velhas, das quais não sei se o leitor ainda se lembrará, tinham feito do jovem estudante de latim ao verem-no passar, sobraçando os livros, para a casa do reitor. Durante os seus anos de estudo fora efetivamente o filho de José das Dornas herói de numerosas aventuras de amor, de mui diverso caráter.

Deixando-se impressionar de circunstâncias insignificantes, que outro espírito, menos exaltado, receberia com indiferença, andava ele quase de contínuo sob o império, fértil em deleitosas sensações, de uma paixão nascente. Este coração, eminentemente acessível e irritável, não tivera quase, até final, um instante de sossego. Eu disse este coração, quase me estou arrependendo de me ter servido da palavra.

Entraria de fato, como elemento destas paixões efêmeras, tão instantâneas como a combustão da pólvora, essa víscera simpática que, a despeito dos médicos e da medicina, eu julgo o sacrário augusto dos sublimes e duradouros sentimentos que constituem o dote mais valioso do nosso patrimônio moral? Não sei; antes me quer parecer que não. Daniel amava de imaginação; nem eu vejo bem como pudesse amar de outra maneira quem, por vezes, se deixou levar por futilidades quase ridículas. O coração não é tão sujeito a fraquezas desta ordem; ou eu ando muito enganado.

Houve, por exemplo, uma mulher que, durante alguns meses, conseguiu assenhorar-se dos pensamentos do nosso herói pela maneira individualíssima e inimitável, com que sabia dizer aquele gracioso agora minhoto, tão levianamente criticado pela gente da capital. Ora me diga se é este um fenômeno do coração, e não antes um como desvario da cabeça, mais azada a tais singularidades.

Mas o que é certo que, fosse pela cabeça, fosse pelo coração, Daniel achara-se, em todas as ocasiões que viera a férias, suficientemente apaixonado para escapar a influências das formosas da sua terra. Envolvia-o uma como que atmosfera de isolamento para me servir de uma frase da língua científica e nesse ambiente não floresciam os amores bucólicos. Raras vezes mostrou recordar-se daquelas suas afeições de criança, que tantas lágrimas lhe tinham já feito verter.

Só um dia em que, passeando nos campos, chegara por acaso ao pequeno outeiro, onde sucedera a inocente cena de idílio, tão mal-encarada pelo reitor, foi que lhe veio à ideia essa passagem da infância, já quase esquecida; e a imaginação lhe apresentou então o vulto, suave e meigo da pequena Guida, como uma visão momentânea, rodeada pelo branco perfume da poesia e da saudade. Lembrou-se dessa vez de perguntar por ela. Disseram-lhe que tendo ficado órfã de pai e mãe, vivia só com a irmã e que ensinava meninas – tarefa que raras vezes lhe permitia sair de casa. Daniel nunca mais renovou a pergunta.

Fora isto talvez dois anos antes da sua vinda definitiva para aldeia. Não admira, pois, que com estas disposições mentais estivesse muito longe de pensar em Margarida, quando, com segunda intenção, o pai pronunciou o apelido da família da noiva de seu irmão. Foi como por demais que Daniel disse ter uma ideia desse apelido, o qual lhe soara quase como novo.

Acompanhando Pedro, ele levava, portanto, o espírito inteiramente despreocupado, e somente um pouco movido pela curiosidade de ver a destinada esposa de seu irmão mais velho. Tinha-se por conhecedor em belezas femininas, e agradava-lhe sempre a análise, aplicada a esta especialidade estética. Àquela hora do dia são os caminhos a aldeia muito frequentados pela gente que regressa do trabalho a casa.

Os dois irmãos a cada passo se encontravam com vários grupos de aldeões: homens, mulheres e crianças  que todos os saudavam com as fórmulas sabidas; "guarde-os Deus" e "louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo", às quais ambos correspondiam com outras análogas.

Subiam eles a encosta de uma pequena colina, no alto da qual, sob o fundo magnífico do céu ainda iluminado pelos últimos rubores do crepúsculo, se delineava o vulto negro de uma cruz de granito, quando lhes chegou aos ouvidos o som de vozes longínquas, cantando concertadas; simultaneamente pararam a escutá-las.

Pouco a pouco, a música tornava-se mais distinta, e cedo, ao lado do cruzeiro, desenharam-se também as figuras graciosas de um bando de raparigas, que voltavam à aldeia, entoando em coro uma saudação à Virgem Maria a predileta da piedade popular. Harmonizavam-se tão bem aquelas vozes frescas e juvenis; combinava-se tão admiravelmente a poética melancolia do lugar e da hora com a daquela toada singelíssima, que Daniel se sentiu comovido.

Os dois irmãos puseram-se de lado para deixar passar as raparigas; e nem o mais estouvado deles teve coragem de interromper com a menor frase de galanteio o coro piedoso que elas, sem interrupção, continuaram cantando; e até de todo se perderem as vozes pela distância, conservaram-se ambos silenciosos e imóveis. Como se esta cena reconciliasse Daniel com a vida do campo, logo que prosseguiram o caminho, ele exclamou, mais para si talvez do que para o irmão.
— Digam o que quiserem, há na aldeia belezas magníficas. A cena é inexcedível e isto dizia, correndo com a vista o horizonte vasto que o rodeava e as personagens, às vezes, são bem dignas de atenção!

As raparigas do coro tinham-lhe ensinado a apreciar um gênero de beleza, a que, até então fora indiferente. Preciso é também que se diga desta vez, trazia Daniel, por exceção, o coração, ou como quiserem, a cabeça em disponibilidade; circunstância que não pouco concorreu para o efeito produzido. Chegaram enfim a casa das irmãs. Era uma pequena, modesta, mas graciosa habitação, um pouco fora já do centro do povoado.

A solidão em que ela ficava, própria a fomentar saudades, sem quebrantar com desalentos, agradaria aos menos poetas. Havia tanto sussurrar de folhagem, tanta pureza de ares, tanto desafogo de horizontes em volta dela, que uma íntima serenidade se insinuava na alma do que parava ali. A tênue claridade daquela ameníssima noite de estio mais realçava ainda a poesia do lugar.

A casa era toda caiada de branco; abria para a rua duas largas janelas envidraçadas que alguns pequenos vasos de flores adornavam. De um e de outro lado se prolongava um lanço de muro de sólida alvenaria, igualmente caiado, e que a folhagem do pomar interior sobrepujava, caindo para o caminho as balsâminas em festões verdes e floridos.

Foi à porta deste muro que Pedro bateu familiarmente, dizendo para Daniel que estava saboreando o prazer daquela perspectiva.
— É aqui. Uma voz e mulher correspondeu ao sinal de Pedro. Era a de Margarida.
— Sou eu, Margarida, abre – disse Pedro. Sou eu e uma visita. Passados alguns momentos, a porta girou nos gonzos, abrindo passagem para um vasto pátio ou quinteiro, assombrado de ramadas, o qual, naquele momento, atravessavam ainda algumas aves domésticas, retardadas, a procurarem o abrigo das capoeiras. Margarida que fora a que abrira a porta, ao ver Daniel, retirou-se sobressaltada para a quase obscuridade, que interiormente projetava a ombreira.

— Não se assuste, Margarida, disse Pedro sorrindo ao perceber-lhe o movimento. Não se assuste; é tudo gente da casa. Este é o meu irmão, Daniel, o nosso cirurgião novo. Esta é a minha cunhada, que já assim lhe posso chamar, acrescentou, voltando-se para o irmão, é muito acanhada, e por isso não repares... Daniel dirigiu um cumprimento distraído a Margarida, cujas feições não pôde distinguir pela pouca luz que as iluminava. Demais eram estas feições, como já atrás dissemos, daquelas que exigem um exame mais demorado para se lhes sentir toda a sua beleza.

Podia dizer-se delas o mesmo que destas óperas, privadas de combinações brilhantes, que não deixam impressão em quem uma só vez a escuta; mas acabam por patentear segredos em harmonia aos ouvidos que repetidamente as recebem, segredos que nunca se esquecem.
— Onde está a Clara? Perguntou Pedro, entrando, seguido do irmão. No poço, julgo eu; respondeu Margarida, com a voz ainda trêmula de comoção.

E, muito tempo depois de os ver passar, ali se conservou imóvel, com o olhar vago, a fronte inclinada e o seio inquieto. O que ia neste momento por o coração da pobre rapariga? Adivinha-o decerto a leitora, se já pensou na delicada sensibilidade deste caráter de mulher. A indiferença, com que Daniel passara por ela, o modo por que a saudara, a frieza com que lhe ouvira o nome... tudo lhe mostrou que a não conhecia já.

Dolorosa descoberta para aquela alma, tanto mais amorável, quanto mais se encobria de manifestar os seus tesouros de afetos! Foi com certa revolta de delicadeza feminina, com uma quase má vontade contra si própria, que ela, sondando o íntimo do coração, reconheceu o sentimento que o inquietava assim. Como que se interrogava com a severidade do mentor para com o discípulo mal encaminhado.

— Que loucura é esta, mulher? Pois ainda tens dessas criancices, doida? Que pensavas tu? Que esperavas? Era acaso possível que ele se lembrasse de ti? E para quê? Não foi melhor que se esquecesse? Dize. Em situações como esta, opera-se em nós uma espécie de separação em duas entidades de sentir contrário.

Arvora-se uma em juiz, interroga da maneira que vimos, fala em nome da razão, julga, repreende, condena a outra quando, sob o severo exame da primeira, mais subjugada parece, conserva, na sua humilhação, intato o espírito de independência; assim como, curvada a cabeça às admoestações da preceptora, a pequena discípula sente em si o instinto de rebelião, que mal pode reprimir. Em Margarida também se dava este antagonismo. Faltava-lhe a razão, como dissemos; mais baixo, como a medo, murmurava-lhe outra coisa não sei que voz mais atendida por ela.
— Podias, segredava-lhe essa voz; podias e devias esperar que ele se lembrasse, sim. Acaso o esqueceste, tu?

Diga-se a verdade. Até aquele momento, Margarida conservava uma ilusão, muito escondida dos outros e de si, mas nunca mais de todo extinta. Avaliando, por os seus, os sentimentos dos mais, não podia se convencer de que, em Daniel, estivessem inteiramente apagados os vestígios daquela infância, gozada em comum por ambos. Pensava que ele a reconheceria logo, ao vê-la, que lhe não ouviria pronunciar o nome, sem que a memória o repetisse; que o primeiro olhar seria fértil em recordações, que bastariam só para ressuscitar o passado inteiro.

Enganara-se; conheceu que se enganara, agora que o vira lhe passar assim; e apesar de toda a força de sua razão, Margarida sentiu enevoarem-se-lhe os olhos de lágrimas, e a alma de melancolias. Afinal de contas a boa da rapariga tinha um coração de mulher. Perdoem-lhe esta fraqueza. Não há caráter humano que as não tenha iguais; assim fora possível sujeitá-las à rigorosa análise dos seus recônditos mistérios.

Capítulo XVI

Os dois irmãos dirigiram-se ao lugar onde, segundo as indicações de Margarida, deviam encontrar Clara. O ranger da bomba do poço, e a voz da alegre rapariga, que cantava, pois nela dir-se-ia ser o canto, como nas aves, a mais natural expressão, serviam-lhes de guia. Tomando por uma rua extensa, revestida de limoeiros, através de cuja espessura coava já, a custo, a claridade nascente do luar, conseguiram aproximar-se, sem que fossem percebidos.

Clara cantava:

Vem livrar-me com teus olhos,
Que eu por eles me perdi;
Dá-me a vida com teus beijos,

Já que por beijos morri. Porém, ao voltar naturalmente a cabeça, descobriu Pedro na companhia do irmão; vendo-se surpreendida assim, interrompeu de súbito o trabalho e o canto, e meia confusa, saudou-os com os olhos baixos e a voz embaraçada. Foi curta a apresentação, e em nada cerimoniática. Pedro odiava etiquetas, ou antes, ignorava-as.

A figura de Clara, inundada pelos raios de lua, que já se levantava esplêndida no horizonte, fez conceber a Daniel uma subida opinião do bom gosto do seu irmão. Não era Daniel homem para se coibir, por acanhamentos, em observação, que tanto o deleitava. Sem disfarces, nem precauções, analisava, feição por feição, aquela fisionomia simpática, e como que lhe delineava com a vista o perfil, onde se continuavam graciosamente, por suaves inflexões, as mais elegantes curvas.

Clara, adivinhando-se objeto daquela inspeção minuciosa de conhecedor e entusiasta, não ousava erguer os olhos. Dir-se-ia que, magnificamente condensados, os raios visuais, que a envolviam daquela maneira, lhe tomavam os movimentos até mal a deixarem respirar.

Pedro sentia certo desvanecimento, lendo a tácita aprovação da sua escolha, na expressão do olhar do irmão. Clara conseguiu afinar dominar o enleio dos primeiros instantes, dirigindo-se a Pedro: — Então isto se faz? Disse ela, ainda não de todo serenada da primeira confusão, e descendo e apertando nos punhos as mangas da camisa, que tinha arregaçadas. Trazer assim uma visita, sem dizer nada à gente.
— É meu irmão, dizia Pedro sorrindo.
— Que tem que seja? Não é para assim vir ter com uma pessoa, que anda cá no seu trabalho. E sem fazer barulho, então! Ora sempre! Ora sempre! E ao dizer isto, lançava para o noivo um olhar que, tentando ser de repreensão, só conseguiu enlevá-lo.

— Olhe, Clarinha, disse Daniel, adiantando-se e dando às palavras o tom de amigável familiaridade. O culpado fui eu. Mas que quer? É costume antigo que tomei. Quando era rapaz, gostava já muito de ouvir os rouxinóis que cantavam nos laranjais da nossa casa; mas eles, percebendo-me, calavam-se. Sabe o que eu fazia então? Ia-me devagarinho, pé ante pé, onde eles estavam, e lá me ficava a ouvi-los cantar horas e horas. Foi o que fiz agora.

A lisonja não desagradou de todo a Clara, que respondeu gracejando: — Os rouxinóis já não cantam neste tempo.
— Mas cantam outras vozes sonoras como as deles e mais felizes ainda; pois nem as fazem calar as neves do inverno, nem os ardores do estio. Era uma dessas que nós paramos para ouvir. Clara, sentindo-se pouco à vontade para responder ao galanteio, disfarçou-se, afastando-se como para regar as flores de um alegrete vizinho. Pedro aproximou-se dela.

— Nunca mais, murmurou-lhe a rapariga ao ouvido; tornes a fazer uma destas, Pedro. Também não sei como a Guida vos deixou entrar assim. Eu lho direi.
— Ora vamos, Clara, disse Pedro, auxiliando-a na tarefa da rega, não vás agora ralhar com a Margarida, que mais embaraçada ficou ela do que tu.
— Sim? Pois ai está, vês? Não tinha razão para isso. A Margarida é outra coisa. O Sr. Daniel não falou ainda com a Margarida? Continuou Clara, já mais senhora sua, e fazendo uso desimpedido do olhar, que fitou no interpelado. Ela é que saberia responder bem. Quando quer, sabe dizer coisas... Até o Sr. Reitor, muitas vezes, não tem que lhe responda. O Pedro que o diga. Pedro fez um sinal de assentimento.

Este duo em honra de Margarida não causou grande impressão em Daniel, que continuava a fitar Clara com persistente atenção, encantado pelo timbre daquela voz, por aqueles movimentos, cheios de graça e de vida, e pela inimitável expressão do olhar, meio de bondade e meio de malícia, que ainda a branca claridade da lua fazia realçar o seu fulgor.

A conversa tomou, pouco a pouco, familiar e jovial caráter de intimidade. Só, alguma vez, uma frase mais cortesã de Daniel vinha tirar a Clara a frieza de ânimo necessária à resposta; isto com grande estranheza sua, pois não se tinha por demasiado tímida.
— Pobre João Semana! dizia Clara em um dos seus momentos de malícia. Quem mais o chamará agora, depois de haver na terra médico novo?
— Está enganada; - respondeu Daniel, quando mais ninguém o chamasse, teria por si a melhor de todas as freguesias, a das raparigas.
— Agora? E então por que o haviam de querer?
— Porque os médicos novos tem o mau costume de desejarem saber das doenças do coração, e dessas não querem elas tratar.
— Não sei por que não; pois não são tão perigosas? Eu sempre ouvi dizer que se morria disso.
— Se se morre? Morre-se a todo momento até. Mas, pelos modos, é um morrer de que se gosta.
— Deixe lá; sempre é morte, não pode ser muito boa.
— Ora! Morre-se a cantar: Dá-me a vida com teus beijos. Já que por beijos morri, Não era assim que se dizia? Clara não pode suster o riso, e Pedro fez coro com ela.
— Ora, responda: se o médico tomasse a receita a sério, e quisesse dar vida à sua doente?
— Isso mais devagar.

— Aí tem: é por esse motivo que não é bom consultar os médicos novos. O João Semana é que não é capaz dessas atenções, julgo eu... E que as tivesse...Tal foi a feição predominante do resto do diálogo, que só terminou quando a lua ia já alta no firmamento, com toda a pompa de um desanuviado plenilúnio.

— Sabes tu, dizia Daniel ao irmão quando juntos se retiravam; que não podia escolher mais galante noiva? Em toda a aldeia não há outra decerto que se lhe ponha a par. Isto foi dito já na rua, mas próximo da porta do quintal onde se demorara Clara, a cujos ouvidos chegaram distintamente estas palavras de Daniel.

Se elas lhe poderiam ser indiferentes, pergunto eu às leitoras bonitas. Sendo sinceras comigo, não se atreverão a condenar este sentimento de vaidade, que moveu o coração de Clara. Se a vaidade constituísse pecado capital, talvez que certa particularidade do paraíso muçulmano tivesse sua razão de ser. Clara era pouco reservada.

Tudo quanto sentia, fossem tristezas, fossem alegrias, vinha-lhe do coração aos lábios, por um movimento de expansão irreprimível. Procurando, pois, a irmã, contou-lhe tudo quanto lhe dissera Daniel, o que ela lhe respondera, e, finalmente, as últimas palavras, que lhe havia escutado.

Margarida não foi senhora de seu coração a ponto de não sentir certa amargura, ao comparar a intensidade da impressão produzida por sua irmã no ânimo de Daniel, que péla primeira vez a via, à indiferença, com que ela fora desatendida, ela por quem deviam falar tantas memórias do passado.

Eu já disse que Margarida não era de natureza tão superior, que não tivesse dessas desculpáveis fraquezas. Muito para apreciar é já a placidez nas ações, se como ela, se não desmente nunca; seria exigência demasiada e um excessivo querer apurar a natureza humana ao grau da perfeição quase divina, pretender que, no mundo oculto dos pensamentos e dos afetos, reine também a inalterável serenidade, que só pode ser de anjos, e nunca de criaturas, a quem de contínuo os vendavais das paixões salteiam.

O que posso assegurar a respeito de Margarida e já não é pouco assegurar é que este movimento de ciúme, nem eu sei se tal nome lhe posso dar, se envenenou, convertendo-se em má vontade contra o objeto, que lho desafiara. Margarida não sentiu, para com a irmã, nenhum desses odiozinhos feminis, que em tantas tempestades se desencadeiam às vezes. Calou-se, sorriu até, e pensou consigo: — E de que me serviria se fosse de outra sorte? Melhor é que a memória lhe seja sempre infiel; melhor, muito melhor para o sossego do meu espírito. Ainda bem. Era ainda a razão que falava; mas o coração? Aí, o coração! É inevitável a luta, sempre que a um espírito vigoroso e lúcido anda associado um coração que sente, que se comove sob a influência dos estímulos naturais dos afetos humanos.

Quando o coração é de gelo, a razão dirige desafogada, imperturbável, em linha reta, o caminho da vida; quando a razão abdica e o coração domina, o movimento é irregular, mas livre; caprichoso, mas resoluto; funesto, mas incessante; porém se o coração e a cabeça medem forças iguais, a cada momento param para lutar, como atletas destemidos. De qualquer lado que tenha de se decidira vitória, será disputada, até o último instante, pelo contendor vencido; a pausa terá sido inevitável; a reação enérgica; e a crise violenta.

Podem passar ignoradas de todo as peripécias desse combate íntimo; mas a aparente tranquilidade exterior mais lhe exacerbará a crueza. Margarida escutou por muito tempo a irmã, sem saber como acolher aquelas ingênuas confidências; afinal, lembrou-lhe, sorrindo, que devia ser menos sensível à opinião de estranhos quem, dentro em tão pouco tempo, ia ligar o seu destino ao destino de outro.

Clara possuía um gênio, com o qual não se davam as apreensões. Não calculava consequências. A vida para ela era o presente. Raras vezes lhe lembrava o passado; o futuro não lhe tomava muitos momentos de meditação também. As palavras e os atos irrefletidos eram nela frequentes. De nada suspeitava. A sua confiança em todos e em tudo chegava a ser perigosa. Um inesgotável fundo de generosidade, elemento principal daquele caráter simpático, levava-a ao cepticismo em relação à malevolência e à má fé que outros possuíssem. Parecia muitas vezes afrontar a opinião do mundo, e não era por a desprezar, mas porque não pensava nela.

Quem possui um caráter assim, se se não perde, se se não perde inocentemente, é porque tem a defendê-lo a Providência, porque o abrigam as asas do seu anjo da guarda. Ouvindo depois a observação da irmã, Clara desatou a rir.
— Que me estás aí a dizer, Guida? Que me estás tu a dizer? Então, por eu me casar, devo deixar de fazer gosto de mim? Olha, eu não me quero com gente muito sisuda. A ti perdoo-te, porque enfim... és muito boa também, mas ainda assim não perdias se... E, mudando subitamente de tom, acrescentou com um pouco de malícia na voz e no olhar: Ora me diz cá uma coisa, Guida, com toda essa tua seriedade, não gostarias também que um rapaz, assim como Daniel, dissesse de ti o mesmo? Anda, confessa.
— Doida!

— Tu és mais velha, bem sei, mas eu sou dentro em pouco mulher casada e por isso posso te fazer destas perguntas já. Anda, responde. Esta jovialidade de Clara não foi recebida pela irmã sem confusão. Em vez de responder, limitou-se a apertá-la nos braços, dizendo-lhe quase ao ouvido: — Então, Clara! É preciso ser menos criança. Quem está para tão cedo tomar canseiras de família... A falar a verdade...

— E cuidas tu que me hão de tirar esta alegria as tais canseiras? Ai. Guida isso é que não. Como assim? Olha, eu já não nasci para tristezas.
— E talvez seja melhor, disse Margarida, respondendo a Clara, e pode ser que, em parte, a seus próprios pensamentos.

Capítulo XVII

Era meio dia, um meio dia de verão ardente, asfixiante, calcinador, a hora em que tudo repousa, em que as aves se escondem na folhagem, as plantas inclinam as sumidades, desfalecidas de seiva, e os ribeiros quase nem murmuram, de débeis e exaustos que vão. Nem uma tênue viração fazia sussurrar as alamedas e os soutos nos vales ou os pinheiros dos montes.

Apenas pelas sarças volteavam, como em danças caprichosas, enxames de insetos alados, sendo o seu zumbido importuno, ou o cantar longínquo dos galos, os únicos sons a interromperem o silêncio daquela hora. Os caminhos e os campos estavam desertos; povoadas e fumegantes as cozinhas, onde a família do lavrador se reúne para a refeição principal do dia.

Mas quem estendesse a vista pelo extenso lanço de estrada a macadame, que corta em linha reta a povoação, e onde, naquele momento, o sol batia em cheio sem ser impedido por a menor folha de árvore, ou beira de telhado, descobriria o vulto de um cavaleiro, caminhando a trote e envolto na densa nuvem de poeira, levantada pelos pés da cavalgadura. Este cavaleiro era João Semana.

Trajava com toda singeleza o velho cirurgião. Um fato completo de linho cru, botas amarelas de solidez de construção, à prova de todo o tempo, chapéu de palha, de abas descomunais, tudo abrigado daquele sol canicular por uma enorme umbela de paninho vermelho, rival em dimensões de uma tenda de campanha, eis o vestido característico do nosso homem. As rédeas flutuavam à solta, sinal evidente da distração do cavaleiro e dos admiráveis instintos e superior discrição da alimária, que mostrava conhecer a palmos o caminho de casa e para ela se dirigia mais apressada que de costume.

Causava dó olhar para a fisionomia de João da Semana naquela ocasião. As faces de vermelhas, que naturalmente eram, quase se lhe haviam feito negras; o suor corria-lhe, como lágrimas pelas faces abaixo. Mas o heroico octogenário não desanimava. Sorvia filosoficamente a sua pitada, assoava-se com ruído, e soltando depois um desses ahns, bem guturais, eloquentíssima expressão das delícias que o olfato pode proporcionar a um mortal, dava mostras de consolado. De caminho, ia João Semana lançando um olhar de comiseração para os milhos dos campos adjacentes à estrada, algum do qual o calor e a escassez das águas tinha definhado; e ao contemplá-lo parecia mais sentir por ele, do que por si, a insuportável temperatura daquele ambiente.

João Semana era também proprietário rural, e portanto, apaixonado pela lavoura, conhecedor das leis de cultura, e experiente prognosticador do futuro das novidades agrícolas; por isso, examinando com profunda curiosidade o aspecto dos campos, cujos donos pela maior parte conhecia, quase chegara a se esquecer de que um ardentíssimo sol lhe dardejava sobre a cabeça raios ameaçadores, tentando em vão exercer naquela robusta constituição a sua influência maligna.

A égua é que não se esquecia assim facilmente disso, e, cada vez mais rápida, procurava furtar-se a tão incômodo calor, e ao seu inevitável cortejo de moscas, que a traziam impacientemente, não obstante os folhudos ramos de carvalho, com os quais João Semana lhe enfeitara o pescoço. Depois de cinco minutos mais de trote acelerado, tomou o pobre animal, com manifesta ansiedade e sem esperar sinal do cavaleiro, por uma rua estreita, que se abrindo ao lado esquerdo da estrada, seguia, sob espesso toldo de verdura por entre duas quintas fronteiras. Era um oásis, depois do deserto.

João Semana, porém, parecia tão indiferente ao vantajoso da mudança, como o fora à desagradabilíssima influência dos raios do sol, em campo descoberto. Daí por diante começavam a ser mais frequentes as habitações, e, ao barulho que fazia a égua sobre o terreno sólido e nas pedras soltas do caminho, assomava a cada janela uma cabeça. E João Semana recebia um cumprimento e um convite para jantar, a ambos os quais ele correspondia com benevolente familiaridade e às vezes com gracejos sempre bem recebidos e festejados. Logo ao princípio, foi um velho, em mangas de camisa, e de cabeça já despovoada de cãs, que segurando uma enorme tigela de caldo de tronchuda e vagens coroado por uma pirâmide de boroa esmigalhada, apareceu à porta da cozinha, e disse com a boca meio ocupada por mantimentos, e sorrindo: — É servido do meu jantar, Sr. João Semana? É pobre, sim, mas dado com a melhor vontade.
— Obrigado, tio José das Bicas, vou ver se lá em casa a Joana tem também o meu caldo em bom andamento.

— Então vá com a graça do Senhor, vá, que o calor não se sofre.
— Está picante, está. E, andando sempre e falando, já com as costas voltadas, perguntou: "E como vão os seus milhos, Sr. José?"
— Ora! nem me fales nisso! A sequeira é muita.
— Veremos se para a lua nova haverá mudança de tempo.
— Deus o queira.
— Há de querer. E prosseguiu no seu caminho. Mais adiante, foi uma mulher idosa que espreitou do postigo de uma casa meio arruinada. João Semana desta vez foi o primeiro a saudar.
— Bons dias, tia Rosa. Então como vai lá o seu velho? Fero e rijo, hein?
— Muito agradecida a V.S.ª. Está fraquinho ainda, e por isso...
— Pois que saia, que saia. É preciso também trabalhar para deitar foras as moléstias; nós não podemos fazer tudo. Que passeie, diga-lhe que passeie. O mais que lhe pode acontecer, é que deem com ele as moças, mas disso não se morre.
— Já não está em idade para tanto, Sr. Doutor.
— Fie-se nele, fie-se nele; olhe que são os piores. E, dando uma gargalhada, dobrou a esquina e tomou por outra rua.

Do interior de um pardieiro saiu-lhe ao encontro uma rapariga do povo, magra, remendada, e como rosto que denotava aflição.
— Muito boas tardes, Sr. João Semana – disse a pobre rapariga com voz chorosa.
— Que temos lá, Maria? Alguma novidade?
— É que... dizia ela, hesitando e baixando os olhos.
— Fala; despacha-te, que vou com pressa.
— É que me esqueci do que me disse daquele remédio para minha mãe...

— Então onde diabos tinhas tu o juízo, galo doido? Ai que vocês me andam com essas cabecinhas não sei por que terras, e eu que vos ature depois. Aposto que te lembras melhor do que te disse ontem o teu conversado? — Ora, o Sr. João Semana tem coisas! É que não sei se o remédio era todo para uma vez, ou...
— É o que eu digo; é o que eu digo. estouvada! Cabeça no ar! Quantas vezes te repeti que era para três porções! Cuidas que eu não tenho mais que fazer, do que andar sempre a cantar a mesma cantiga por este mundo de Cristo? Ora vamos!
— E há de ser distantes da comida, que?
— Que diabo aprendeste tu então de tudo o que eu te recomendei, fazes favor de me dizer? Pois não te expliquei, cabeça de bogalho, que era para dares meia hora depois das comidas? Que tinhas tu nos ouvidos? — Muito agradecida, Sr. João Semana; e perdoe por as almas, mas... a gente tem tanta coisa na cabeça...
— Valha-te uma figa. E quando a rapariga se ia já a retirar, ele acrescentou, mudando e tom: — Olha cá, ó Maria, ouves? A rapariga voltou-se. Levava os olhos vermelhos de chorar.
— Então que diabo é isso? Por que choras tu?
— Nada, Sr. João Semana: é cá de nossa vida.
— Quanto te levou o boticário pelo remédio?
— E... dize-me... E mataste hoje a galinha para tua mãe?
— Dei-lhe o resto de ontem.
— E para amanhã? E a rapariga calava-se, embaraçada e triste.

oão Semana tossiu para desimpedir a laringe de um pigarro importuno, e pôs-se a olhar atentamente para um troco de árvore que lhe ficava à direita, como se lhe achasse o que quer que fosse extravagante. Durante esse tempo, mexia nos bolsos do colete e depois nas algibeiras das calças; em seguida, olhando em roda, como se receasse ser observado, curvou-se sobre o pescoço da égua e introduziu uma moeda de prata na mão da pobre rapariga, dizendo-lhe como modo rápido e desabrido: — Toma lá. Olha agora se te pões por aí a dar à língua, como costumas. Aflige bem tua mãe, aflige!

A rapariga não teve uma só palavra com que lhe agradecer. Quis lhe tomar as mãos para beijá-las; João Semana furtou-lhes rapidamente, dizendo-lhe com simulada aspereza: — Larga, larga. Não me venhas cá com essas imposturas, que eu não sou para isso.

O melhor dos agradecimentos, tinha-o ele nas lágrimas, que desciam pelas faces da pobre, na expressão de entranhado afeto, que lhe animava o olhar. O velho cirurgião sabia compreender estas coisas, apesar das aparências de homem endurecido de que fazia ostentação. Ao afastar-se do lugar da cena que descrevemos, dizia ele para si.

— Excelente vida! Lucrativa clínica! rendeu-me esta consulta, na verdade! Quem não há de fazer casa assim? Estava o bom homem a fingir de interesseiro consigo mesmo! Dentro em pouco, tinha se esquecido do que praticara. Mais adiante, esperava um lavrador robusto, sentado na soleira da porta, a comer um fêvera de bacalhau. Assim que João Semana se aproximou levantou-se o homem e tirando o barrete: — Nosso Senhor venha em sua companhia.
— Bons dias; então que há?
— Queria que vossemecê me dissesse se minha mulher pode comer uma sardinha assada.
— Pode, mas de caminho avisa o padre que a venha sacramentar.
— Credo! mas então...

— Adeus, minhas encomendas. As perguntas tolas não se dá respostas. Forte descoco! E, sem mais palavras, estimulou o passo da égua. O consultante sentou-se de novo, e voltando-se para dentro, disse: — Ouviste-o? Ora aí tens. Respondeu-lhe um suspiro.

Ainda não pararam aqui as consultas. Ao passar por uma azenha, o moleiro, vindo à porta, anunciou ao velho facultativo que a mulher não queria tomar remédio algum.
— Está no seu direito; respondeu João Semana e que queres que eu lhe faça?
— Mas, sendo precisos?
— Sabes que mais, Francisco? Eu, se me não casei, não foi para agora andar a aturar as impertinências das mulheres do meu próximo. Atura-a, atura-a, rapaz, que são ossos do ofício.

E continuou cavalgando, e deixou o moleiro embasbacado. Depois de se ter afastado, acrescentou, elevando a voz, mas sem se voltar para trás.
— Olha lá: sempre lhe vai dizendo que se amanhã não a encontrar melhor, prego-lhe um cáustico nas costas, que lhe dá de fazer ver estrelas ao meio dia. Ora anda.

Enfim, em um largo assombrado de castanheiros, foram duas crianças as que lhe interromperam a passagem; assim que o avistaram, ergueram-se do chão, onde estavam sentadas, tirando chapéu, e pondo-se a coçar na cabeça.
— Que temos nós, pequenada? perguntou João Semana. Um dos pequenos foi o relator da comissão.
— O nosso Luís está doente, e a mãe manda pedir ao Sr. Doutor para o ir ver.
— Está bem; lá irei de tarde; e como está tua mãe?
— A mãe diz que está melhor, mas ela chora tanto!
— Tens razão, Manuel, em duvidar da saúde do que chora. Pois eu verei isso. Vá; ide jantar e fazer rir vossa mãe, que é meia cura já.

Por tal forma ia sendo o bondoso João Semana cumprimentado, interrogado e consultado, e ele a responder a tudo com a máxima expedição possível, que já lhe não sofreiam delongas as reclamações imperiosas do estômago. Chegou assim ao largo da igreja da freguesia, e atravessou-o por diante da residência do reitor. Deitou de soslaio os olhos para as janelas da casa paroquial, e, como as visse fechada, picou a égua, para ver se escapava sem vir à fala, e evitava novo empecilhos. Não conseguiu, porém, o seu intento.

Uma das vidraças correu-se repentinamente e o reitor apareceu à janela, animado de sorrisos, e com um guardanapo na mão...
— Ó João Semana! Ó homem! Ó velhote! Pschiu! bradava ele. João Semana foi obrigado a voltar-se.
— Que é lá?
— Espera; fala à gente.
— Vou com pressa.
— Então andas por fora com um calor desses? Isso é criar malignas, homem.
— Que queres tu, abade? Meu pai caiu na patetice de me arranjar este modo de vida. Se lhe tivesse dado na mania fazer-me padre, outro galo me cantara.
— Cuidas então que não tenho canseiras.
— Aí, dão-te muito que fazer as tuas ovelhas; estou vendo.
— E não dão pouco.
— Só a cardá-las com as côngruas e derramas! Por isso estás magro. Para vos sustentar suamos nós outros. O reitor sorria sem a menor sombra de ofensa.
— Vamos a saber: queres provar meu arroz?
— Eu? Já não tenho estômago criado para comidas de padres. Padre, abade e egresso de mais a mais! Safa! Morria de indigestão esta noite.
— Anda lá, anda lá; ainda não perdoaste aos frades. Morres impenitente.
— Como queres tu que eu lhes perdoe o terem gozado sem mim aquela santa vida de convento?
— Santa sim; porém sem mortificações, não.

— Oh! Decerto que não. Os melhores cozinheiros têm às vezes os seus descuidos, e os paladares de V. Rev.mas, lá de quando em quando, aturam o esturro no arroz, sal de mais na sopa, pimenta de menos no guisado, ou outra coisa assim, lá isso...
— Valha-te não sei que-diga. A vida é para ti, homem, que, com oitenta, estás fero e robusto, e levas jeito de assistir ao nascimento do século vinte.
— É para veres que fêveras eu sou. Se tivesse a tua vida viveria como Noé. Mas tu estás a palanque e à fresca e eu aqui estatelado a lhe dar trela. Adeus, meu amigo.

— Olha cá, espera, homem. Então nem um cálice do meu bastardo, hein? Olha que é do que tu gostas.
— Prefiro uma garrafa em minha casa.
— Lá franco no pedir és tu! Mas do que ninguém se gaba é de saber o gosto do teu moscatel.
— Querias talvez que eu te mandasse um presente de vinho? Era o que me faltava! Presentes de vinho! E a um frade! E dizendo isto, pôs-se a caminho, achando-se, dentro em pouco, a distância já considerável das residências. De repente, como se lhe ocorresse uma lembrança cuja comunicação não podia sofrer demoras, voltou de novo atrás, e elevando a voz: — Ó abade, tu não sabes a história daquele frade franciscano que?
— Não sei, não; ora conta lá, João Semana, conta, disse o reitor, debruçando-se no peitoril da janela, e já com aspecto risonho.

— Havia lá no convento, principiou João Semana; uma pintura muito grande representando a ceia de Cristo; e era pintura a que mais atraía as meditações piedosas do tal reverendo, o qual, de olhos fitos naquele quadro, passava horas e horas esquecido de tudo o mais. Outro farde, que tinha notado isto, não pôde ter mão em si que lhe não perguntasse com aquela voz de lamúria de franciscano manhoso: "Em que pensais vós, irmão, quando com tanta atenção olhais para este quadro?" "Nos tormentos que por nós padeceu o Salvador" - respondeu o tal. "E longos foram na verdade!" continuou o primeiro. "Mas por que esta pintura mais do que as outras, vos traz tão santas ideias? Não tendes na sacristia a do Descimento da Cruz e aquela do Senhor preso à coluna?" "É verdade, irmão! diz-lhe então o franciscano com cara de mortificação "é verdade, mas olhai que não menor tormento era este de ter doze pessoas à mesa, e tão pouco de comer em cima dela".

E João Semana, dizendo isto, roçou as esporas pela barriga da égua, e partiu, acompanhado de uma grande gargalhada do reitor, que era perdido por as anedotas de João Semana.
— Onde diabo vai este homem buscar estas coisas? Dizia o reitor chorando de tanto que se riu. E João Semana ia quase a dobrar a esquina quando de novo o suspendeu a voz do padre, bradando-lhe: — Ó João Semana, olha lá.
— Que é? Respondeu o facultativo, já com certo mau humor. Tu queres que eu fique hoje sem jantar?
— É só uma pergunta.
— Dize.
— Não sabes que chegou ontem o Danielzinho do Dornas?
— Como não sei? Pois não estive eu já com ele?
— Ah, sim? E então que te perece o homem?
— Que me há de parecer? Bem. e depois acrescentou: Bem e mal.
— Como é isso? Bem e mal?
— Sim, o rapaz é talentoso, e nas cidades talvez fizesse figura; para aqui não serve.
— Ah! João Semana! Ciúmes...

— Estás doido? Tomara eu que ele me descarregasse de parte desta tarefa, mas... dize-me lá tu se aquele corpo franzino, aquela pele de mulher pode aturar metade, a quarta parte, a décima parte do que eu tenho aturado.
— Lá isso. E dizendo isto, sempre conseguiu dobrar a esquina. O reitor fechou a janela e foi jantar. Sentado à mesa ainda sorria de quando em quando, repetindo à meia voz: — Doze pessoas à mesa, e tão pouco de comer em cima dela! Ora o diabo do homem...

Capítulo XVIII

Enfim, chegou João Semana ao lugar, onde se erguiam os seus solares. A égua saudou a aparição dos telhados domésticos com a mais melodiosa das suas emissões de voz. O próprio João Semana não foi insensível à perspectiva, que o dobrar do último cotovelo de uma rua tortuosa lhe patenteou, porque o seu estômago tinha também necessidades que, como todos os outros, manifestava. Ao aproximar-se, recebeu, porém, uma desagradável impressão.

Avistou encostado à porta da casa o criado de uma freguesa sua, o qual provavelmente vinha requisitar-lhe a assistência e talvez com toda pressa. Tais estorvos, à hora do jantar, eram da maior impertinência para João Semana. Doente que lhe quisesse fazer a vontade, não devia adoecer a hora tão crítica.

O seu pressentimento saiu verdadeiro. Ainda ele se não desmontara, e já o criado que o esperava, lhe dizia, com grande impaciência do facultativo: — A Sr.ª D. Leocádia mandou-me esperar por V.S.ª para lhe pedir o favor de ir, logo que chegasse, à casa dela.
— Quem está lá doente?
— Não sei dizer a V.S.ª
— Pelo costume é toda a gente. Todos se queixam, pelo menos, quando eu lá vou. E... vamos a saber, e é de pressa?
— Julgo que sim, senhor, visto que me mandaram esperar.
— Isso não tira. Seria para se verem livres de ti, e parece-me que têm razão.
— Ora, isso é graça.

— É graça, é, mas... Vamos lá ver o que me quer a Sr.ª D. Leocádia. A falar a verdade... a esta hora... Valha-me Deus, valha. E voltando-se para o criado pequeno, que viera ajudá-lo a desmontar, continuou suspirando: — Deixa estar, Miguel, deixa estar. Eu...como assim, não me desmonto. Torno a sair.

Mal acabara de dizer estas palavras, correu-se uma vidraça do andar superior, e a cabeça de uma velha criada, convenientemente armada de largo pente de tartaruga, assomou à janela. esta aparição foi logo seguida das seguintes palavras, muito açucaradas: — Ouviu, Sr. João Semana? Não vá, sem primeiro subir.
— Pois que há?
— Tenho que lhe dizer.
— Diga então daí.
— Ora essa! Não é maneira de falar a que diz. Suba, se faz favor, suba primeiro.
— Mas essa senhora que espera?
— É um instante só.

— Valha-a Deus! disse João Semana, apeando-se e preparando-se para obedecer à criada. Já do portal, voltou-se para o mensageiro do recado, dizendo-lhe. Espere um bocadinho, que eu vou já.
— Nada, nada, acudiu de cima a criada. Pode estar fazendo falta às senhoras. É melhor ir, que o Sr. João Semana vai já também.
— Mas... quis objetar o criado.

— Vá, vá. Basta o tempo que se demorou já aqui, e sem precisão, porque eu cá daria o recado. Diga em casa que já o Sr. João está lá num momento. Isto foi dito com certo tom intimativo, ao qual o criado, habituado a obedecer, não pôde resistir. Partiu.

Logo em seguida, a expedita velha disse, em tom mais baixo, mas não menos imperioso, para o rapaz, que ficou a segurar as rédeas da égua: — Miguel, avia-te, meu pasmado; mete essa cavalgadura na cavalariça, e anda por cima.
— Mas o patrão...
— Anda, papalvo, faze o que eu te digo. E Miguel assim o fez.

Quando João Semana entrou na sala, onde era esperado pela criada, e ia perguntar a notícia prometida, ficou surpreendido, achando a mesa posta e uma enorme malga de sopa, exalando odoríferos e apetitosos vapores. — Que é isto? Que foi fazer? Disse o velho cirurgião, olhando para a criada, a qual procedia azafamada aos mais preparativos para o jantar. Então tirou a sopa, e eu tenho de sair ainda.
— Que sair? que sair? Era o que faltava. Não basta o calor que tem apanhado já? Ande lá, ande lá, que, enquanto não cair deveras doente, não há de escarmentar, já vejo.
— Mas, mulher, não viu o que eu disse àquele criado?

— Deixe lá. Daqui até a casa tem ele de parar em mais de quatro tabernas e de se demorar meia hora em cada uma, pelo menos. Verá que há de ainda chegar primeiro do que ele. Vamos, vamos. É jantar.
— Se eu nem mandei desaparelhar a égua!
— Alguém teve esse cuidado. Ande, que o caldo arrefece.
— E aquelas senhoras que tem pressa?

— Ora adeus! Ainda não conheces aquela gente? Fervem em pouca água. Sempre assim foram. Afinal verá que há de passar de alguma enxaqueca de D. Leocádia, algum flato de pequena, ou uma indigestão do procurador; e ainda acredita naquilo! Evidentemente João Semana ia-se deixando convencer. Aproximara-se pouco a pouco da cadeira, hesitando ainda na aparência, mas no íntimo resolvido já.

Ia enfim a se sentar, quando a criada o interpelou de novo, exclamando: — Então que é isso? Assim mesmo como está? Nem muda e fato?
— Para quê? Não estou com tantos vagares...
— Não, então, se é para comer de afogadilho, mais vale fazer primeiro a visita. Assim nem lhe presta o que come. Eu guardo o jantar então, visto isso.

Joana era o nome a criada; bem sabia que tal proposta não podia já ser recebida por João Semana, cujo apetite se irritara com as exalações da sopa; foi a razão pela qual ela se mostrou tão pronta em reunir a ação às palavras, retirando da mesa o serviço. O êxito desta tática foi completo.

João Semana impediu-a, dizendo: — Deixe ficar, já agora deixe ficar. Também para me vestir não é preciso muito tempo. E, depois destas palavras, descalçou-se, enfim, os pés em umas chinelas, que tinham sido botas, pôs-se sem cerimônia em mangas de camisa, sentou-se à mesa, e rompeu um ataque em forma contra a volumosa e apetrechada tigela, que tinha defronte de si.

A cozinha de João Semana era de um caráter portuguesíssimo, e eu, ainda que me valha a confissão os desagrados de alguma leitora elegante, francamente declaro aqui que, para mim, a cozinha portuguesa é das melhores cozinhas do mundo. Dou razão nisto a João semana. As combinações extravagantes das cozinhas estrangeiras galicismos culinários, por exemplo: repugnavam-lhe tanto ao estômago, como aos ouvidos, mais pechosamente sensíveis dos nossos severos puritanos, a outra qualidade de galicismos.

Queria-se ele com a carne de porco bem assada e o arroz do forno açafroado, esses dois importantes elementos de gozo para os paladares portugueses; queria-se com o prato clássico da orelheira de porco, e até com aquele outro prato tão castiço como qualquer período de Fr. Luís de Souza, prato que valeu aos portuenses um epíteto gloriosamente burlesco; queria-se com todas estas iguarias, quase desterradas das mesas modernas, de preferência aos manjares exóticos, cuja nomenclatura tem a propriedade de fazer ignorar ao conviva o que lhe dão a comer. Por isso, João Semana, nas raras vezes que vinha ao Porto, era freguês certo das mesas do Rainha, as únicas que mantêm, sem mescla de estrangeirices, as velhas tradições nacionais. Em Portugal, terra de lhaneza um tanto rude, mas não afetada, o dono da casa não costumava dantes experimentar a imaginação dos seus convivas com enigmas culinários.

Não havia cá a usança de se dar a qualquer pastel ou empada o nome de um general do exército; a qualquer açorda o de um ministro célebre; a qualquer doce balofo e insípido o de um poeta da moda. Este costume, graças ao qual parece que os modernos Vatéis misturam às vezes aos ingredientes dos seus tachos e caçarolas um pouco de sal da sátira, era desconhecido entre nós. Menos espirituosa, porém mais filosófica do que a nomenclatura culinária da moda, a nossa, a tradicional, realizava o desideratum a que todas as nomenclaturas aspiram, o de valerem por definições.

Se um conviva tinha a curiosidade de perguntar ao seu Anfitrião o que continha este ou aquele prato, uma só resposta o satisfazia; era um frango guisado, um peru recheado, uma língua de vaca afogada... coisas que toda a gente entendia logo. Hoje, a primeira resposta é um nome francês bárbaro, absurdo, que, contra as promessas da gramática, não dá a conhecer a coisa, nem as suas propriedades; e por isso uma segunda pergunta é inevitável; a não querer cada qual resignar-se a comer o que não sabe o que é tormento insuportável. Hoje, época de programas, inventaram-se os programas dos jantares à imitação dos concertos, dos deputados e dos ministros. Com oito dias de antecipação publica-se o elenco de um banquete, para que cada qual procure decifrar o que vai comer, e estude a maneira como se come. João Semana é que nisto, como em tudo mais, não queria saber de modas.

E senão vejam-no desta vez esgotar a tigela avolumada de substancial caldo de abóbora, aviar a formidável posta de carne cozida, com presunto, acompanhando-a com o indispensável arroz, salada de alface e azeitonas; atacar com igual denodo, uma porção de roast-beef, não revendo sangue sob a faca, à moda inglesa, mas portuguesmente assado, e como estou convencido assavam os seus carneiros aqueles heróis da Ilíada; tudo isto acompanhado de excelente vinho palhete, o qual ele ingeria aos copos de meio quartilho; em seguida uma carregação de peras de amorim, sem conta peso, nem medida...

Durante o jantar não estivera calado João Santana. Cada prato sustentara-lhe uma reflexão crítica, um discurso laudatório, ou uma anedota, que fazia rebentar de riso a Sr.ª Joana. Ao descobrir o prato de carne assada, exclamou João Semana em tom de satisfação manifesta: — Que tentação me desperta este terceiro inimigo da alma! A criada riu-se, mas observou: — Não diga isso; Santo Antônio?

— O quê? Então você não sabe o que disse aquele frade, quando estavam a jantar? Nos conventos era costume, enquanto se comia... Ó Joana, deixe-me ver esse limão, ocupar-se algum frade com leituras devotas. E me vá deitando aí mais vinho. Um dia, a comunidade escutava um desses reverendo... O diabo desta faca não corta nada... um sermão sobre os perigos aos quais os viventes andam sujeitos, neste vale de lágrimas. Olhe, chegue para aqui essas azeitonas. Vede, irmão, dizia o tal frade... Este ano as batatas não foram grande coisa... vede como é difícil fugirmos às tentações dos três grandes inimigos da alma. Ó Joana, o padeiro está servindo mal: não tem senão côdea o pão. O mundo e seus encantos perigosos; o diabo e seus poderes maléficos, e a carne, ai meus irmãos... e a carne e as suas tentações mágicas. Chegando a este ponto, o frade pousa o livro, suspira, estende o prato ao seu vizinho fronteiro, dizendo: "Tão fortes são, que nem lhes resisto eu, pobre pecador; uma posta desse terceiro inimigo, que tão bem assado está". Gargalhada da criada, e vitória formal de João Semana sobre o inimigo em questão. À sobremesa o mesmo sistema. A pera de amorim atraiu um elogio do facultativo e mereceu as honras de um caso.

— Excelente fruta! disse João Semana, ao comer a duodécima. Tinha razão aquele frade, que do púlpito dizia: "Ó meus amados ouvintes, que miserável é a condição humana! Vede como a desgraça do mundo veio de uma má tentação. Eva perdeu-nos por uma maçã! Se ao menos fosse por uma pera, meus fiéis ouvintes, ainda se poderia desculpar, mas por uma maçã!"

— Ora! Essa é sua, Sr. João Semana, disse Joana rindo. O frade havia de dizer semelhante coisa! Pois olhe, aqui está quem se perderia mais depressa por uma maçã, acrescentou ela, pouco depois, e preparando o café. — Bem! disse João Semana, ao concluir a sua refeição. Estou como um abade! O pior é ter agora de sair para ir visitar a Sr.ª Leocádia.
— Sair, já! Isso tem tempo – acudiu a criada.
— Como? Pois ainda havia de as fazer esperar mais?
— Descanse ao menos um bocado. Está costumado a passar pelo sono, e, se o não faz, fica doente para todo dia.
— Que remédio senão ter paciência!
— É um bocadito mais.

— Nada, nada, não pode ser. Vou sair já, insistiu João Semana, procurando porém uma posição mais cômoda, com grave risco da resolução que exprimia. Joana percebeu este movimento e previu o que sucederia, se conseguisse entreter o amo cinco minutos mais. Não hesitou.

— Ainda se fosse para outra parte, não digo que não; mas para casa da D. Leocádia!... Eu já sei o que querem dizer aquelas pressas. A D. Leocádia esta manhã, provavelmente, abriu a boca três vezes ou espirrou duas, e por isso imagina já que está a morrer. Louvado seja Deus, nunca vi quem tenha mais medo de adoecer; uma coisa assim! Não é senhora de meter um bocado de pão na boca, sem perguntar ao cirurgião se lhe poderá fazer mal. Pois não se lembra daquela vez que o mandou chamar, porque tinha deixado de noite, por esquecimento, uma açucena no quarto e pela manhã julgou que estava envenenada?

— É verdade, dizia João Semana, fechando os olhos e bocejando. Não era açucena, era uma bela... há! há! há! isto foi um bocejo que o interrompeu, e com voz já mal percebida concluiu depois: era uma beladona.
— Ou isso. Joana, espiando como médico atento, estes sintomas, prosseguiu.
— Esta gente parece de vidro. A filozinha da pequena é outra que tal. É uma pena que tal. É uma pena, que qualquer ventinho leva. E dizem bonita aquilo! Lá na minha terra chamava-se bonito quem era sadio e tinha boas cores.
— Você está agora como... aquele frade que.... tentou dizer João Semana mas não concluiu. Tomou-o sono profundo, denunciado dentro em de pouco tempo, por um ruidoso ressonar. Joana escutando-o, aproximou-se nos bicos dos pés, examinou-lhes os olhos, e vendo-os cerrados, sorriu, e dizendo a meia voz: — Sempre caiu! Agora tem para uma hora pelo menos. E fechando as janelas, deixou o amo ressonando na mesma cadeira de braços que adormecera.

Capítulo XIX

Quando a Sr.ª Joana chegou à sala imediata, achou-se na presença de uma visita inesperada. Era Daniel, que de braços abertos, caminhou para ela, chamando-lhe "a sua boa Joana". Por muito tempo fora Daniel o querido da velha criada do cirurgião, a qual não se cansava de apregoar por toda a parte que não havia aí menino de rosto mais galante e de modos mais bonitos, do que o filho mais novo de José das Dornas. Quando a idade veio imprimir cunho mais varonil àquela beleza, Joana, como mulher que era afinal, não foi insensível à perfeição do tipo masculino que tantas atenções tinha já merecido ao seu afeiçoado, durante a vida de cidade.

Ultimamente, porém, um pequeno azedume de má vontade viera misturar-se à simpatia da boa mulher. Em Daniel via um futuro rival de João Semana, e a dedicação fanática, que votava ao amo, não a deixava encarar desassombrada a probabilidade dessa luta e, sem algum despeito, o novo atleta, que aparecia na arena, de encontro ao velho colosso.

Joana bem se fingia tranquila, dizendo às suas conhecidas e comadres que enquanto João Semana fosse vivo, ninguém havia de poder fazer-lhe sombra; mas lá no fundo, não estava muito satisfeita. Ainda assim; tal é o poder das antigas afeições ao ver Daniel vir para ela tão abertamente amável, esqueceram-lhe todas as más prevenções, que contra ele tinha, e recebeu-o nos braços com expansão igual.

— Jesus! que mocetão! Ora quem há de dizer que é este o menino a quem eu dava biscoitos, e que trepava, como um gato, pela pereira do quintal acima? E então como gostava daquelas peras.
— E quando o seu patrão tinha uns quatro pêssegos muito grandes, que destinava para o vigário da vara, e eu lhos furtei, inventando depois nós ambos uma história muito comprida de ratoneiros, a que não se deu pouco que fazer ao regedor.

— Sempre foi uma, essa! E o vigário foi quem mais se zangou com a graça. E daquela vez que o menino entornou o tinteiro por cima do livro dos assentos do Sr. José Semana?
— Aí, é verdade. Por sinal que você depois lhe disse que foi o gato.
— E, coitado, foi ele o que pagou. Levou uma sova mestra! O pobre bichano não podia imaginar por quê.
— É provável que ele não perdesse muito tempo a investigar a razão do fato. Foi bem mais razoável, fugindo. — O menino era um traquinas! Era uma coisa por maior.

— Há de lembrar-me sempre com saudades, Joana, de quando se cozia o pão em casa, e eu vinha ao sair da aula, buscar o bolo, que você me guardava no forno. Lembra-se?
— Ora, como se fosse hoje. E daquela tarde em que o menino foi beber água fria logo por cima! O meu amo parecia que me matava.
— Que bons tempos esses, Joana!
— Se eram! Agora já o menino não quer da nossa fruta, nem do nosso bolo. Quem sabe se no-lo comerá por outra forma.
— Como?
— Recebendo algumas das medidas e avenças que, até agora, eram só do Sr. João Semana, disse a criada com ciúme renascente.
— Está doida, Joana? nem seu amo tem receios de que eu lhe faça mal, nem eu vontade de lho fazer. Graças a Deus, eu não preciso para comer de andar a furtar o pão daqueles que tantas vezes e de tão boa vontade mo oferecia. Para o ajudar, isso sim, estou pronto, que não é pouco pesada a cruz que ele traz.

— Não é, não, menino! exclamou, já sensibilizada e reconciliada de todo com Daniel, a velha criada. E, suspirando, continuou: — Aquilo é um negro de trabalho. Aí, se ele faltasse o que seria dos pobres! Eu bem sei que o menino há de fazer o que poder, que tem bom coração, isso tem; mas quem lhe deu as forças dele? Aquele corpo é de ferro. Não faz ideia. desde pela manhã, até a noite, não tem aquele pobre de Cristo um momento de sossego.
— Ele está cá?
— Está agora a passar pelo sono. E mais tinha um recado com pressa. Foi preciso usar de malícia para o fazer descansar.
— Pois, Joana, eu vinha para agradecer-lhe a visita que me fez, mas deixe-o dormir.
— Ele há de gostar de o ver; que olhe que é muito seu amigo, Danielzinho. Ele tem aqueles modos assim secos, mas... Inda ontem aqui esteve a dizer que o menino há de vir a ser cosa grande.
— Não, agora já não cresço mais.
— Ora! bem sabe o que eu quero dizer. Está a rir.

— Eu lhe digo, Joana. Eu que vim me meter nesta terra, é porque tenho ambições. Lá isso tenho. A si, digo-lhe baixinho, o meu grande desejo é vir a ser...
— O quê? – perguntou Joana, com curiosidade feminina.
— Nada menos que regedor cá na aldeia.
— Ora... fala sério?
— Pois isso é coisa lá que se brinque?
— Então para que quer ser regedor?
— E não é uma posição tão bonita?
— Não lhe digo que não. Pois olhe, com o tempo isso não será difícil. O Sr. João Semana já esteve para; ele é que não quis. Mas o que é, é que o menino está aqui, está casado.
— Por que diz isso?
— Ora! o pai há de arranjar-lhe noiva rica.

— E então há por cá muito desse gênero?
— Se há? Boa! Olhe; aí tem a filha do morgado da Cova do Frade, que é uma moça bonita.
— Aí, muito bonita! Parece mesmo uma dália vermelha.
— Que está a dizer? É uma rapariga escarolada e sadia.
— Lá escarolada será, e então tem muito dinheiro?
— Para cima de vinte mil cruzados.
— Ih! que dinheirão!
— Então acha pouco?
— Está claro. Mulher com menos de quarenta contos, Joana, não me serve.
— Quarenta contos! Quanto é quarenta contos?
— São cem mil cruzados.
 
— Credo! O que aí vai! Então não casa decerto, também lhe digo.

— Se a não encontrar cá, trago mulher da cidade. Olhe que são mais bonitas. Uma senhora, que saiba tocar piano, que saiba cantar, que ande à moda.
— Some-te! Sempre as tais modas! É no que eles pensam. Ora que graça acham àquelas coisas.
— Você não sabe o que diz, Joana. Inda hei de vê-la andar à moda, a si também.
— A mim?
— A si, sim, minha senhora, e então por que não?
— Alguma estará nesse dia para suceder.
— Mas olhe cá, Joana, e quando você me vir passar de braço dado com a minha senhora, ela com o vestido de seda a arrastar pelo chão...

— Isso! Olhe que há de ficar em bom estado. Passeie pelo tojo e verá.
— Um pé muito pequenino; eu gosto dos pés muito pequeninos, Joana.
— Também muito pequenos demais não servem para andar. Querem-se em termos.
— Nada, quero-os muito pequeninos: e depois uma vozinha que mal se perceba.
— Ora essa! Então não se há de ouvir o que ela diz?
— Vocês cá não tem nada disso.

— Isso não. O pé mais pequeno que eu conheço... é um da filha do Mateus, que teve, salvo seja, um raminho em criança e ficou aleijadinha... e agora voz que não se perceba... olhe, tem a ti'Ana do regedor, que, desde que lhe caiu aquela constipação no peito, ninguém lhe entende a palavra. Neste ponto do diálogo, entrou Miguel, rapaz do serviço da casa, com um bilhete na mão.
— Sr.ª Joana, disse ele- vieram entregar este bilhete para o patrão.
— Temos mais alguma impertinência. Está bem, deixe ficar.
— É que esperam pela resposta, Sr.ª Joana.
— Pois que esperem, Miguel. O patrão está a dormir, e eu não o vou agora acordar por causa disse. Do mando de quem vem?
— Diz que das dos Meadas.
— Aí, então é a pedir por algum pobre. Não fazem outra coisa as raparigas. Têm vagar, destas fortunas é que nos aparecem. Mas a carta não vem fechada... Ó menino, então leia-a.
— Porém... ia a observar Daniel.
— Não tem dúvida, pode ler. Isto não é de segredo.

Obedecendo às instâncias de Joana, Daniel abriu a carta e leu: "Meu bom Sr. João Semana: — Isso! anotou a criada. Façam-lhe a boca doce. Daniel continuou lendo: "O nosso pobre doente está mal, muito mal. Corta o coração vê-lo padecer assim. Se não for possível salvá-lo, ao menos que se não veja desamparado ao morre. É tão compadecido o seu coração, Sr. João Semana, abre-se tão depressa à caridade, que me atrevo a pedir-lhe que venha ver este desgraçado. A consciência lho pagará. Da sua respeitosa amiga Margarida.

— Bonitas palavras, disse Joana, não tem dúvida nenhuma; o pior é que não se aduba o caldo com elas.
— De quem é esta carta? Perguntou Daniel. Eu já ouvi este nome de...
— Olhem, quem a pergunta? Pois de quem é ela, homem de Deus, senão da irmã de sua cunhada, da que há de ser?
— Ah! bem me parecia. Mas... da irmã! e ela escreve assim? Continuou Daniel, admirado da boa ortografia e singeleza de frase da carta que tinha ainda na mão, e para a qual tornou a olhar.
— Pois que julga que é essa rapariga? Bem digo eu que o menino já se esqueceu de todo da sua terra. Então saiba que não há aí quem se ponha ao lado de Margarida, em falar e escrever. Esse homem por quem elas pedem... e, interrompendo-se. É verdade, ó Miguel, disse para o criado, vai dizer que ficou entregue, anda.

Depois do Miguel se retirar, Joana continuou: — Esse homem por quem pede, foi mestre delas. Pelos modos era pessoa que teve do seu; mas hoje está quase a pedir. Para aí veio, e aí tem vivido. As raparigas dos Meadas, que são dois corações de anjos lá isso são têm-no socorrido sempre. Coitadas! Não, eu devo dizer o que é verdade, o seu Pedro leva uma mulher como se quer; mas olhe, quem levar a Margarida, não vai mais malservido. Este pobre homem lhe tem ensinado, em paga, a ler e a escrever, que é um primor, segundo dizem. A Margarida principalmente; porque pelos modos, a Clarita tem menos paciência. Mas, a Margarida? até cá o Sr. João Semana o diz, pode-se ouvir.

Agora até ela dá lição em casa. Não sabia? Pois dá. Ora, o tal pobre de Cristo está a morrer, e, segundo diz o patrão, não deita o mês fora. As raparigas então, credo! Isso é um cuidado por aí além, nem que fossem filhas. Mas o que eu não sei é se o Sr. João lá irá hoje. Fica-lhe tão longe do seu giro.
— Mas há de deixar o homem assim?
— Então? Cada um faz aquilo que pode, que a mais não é obrigado. Olhe... sabe o que me lembra? Por que não vai o menino lá? Não diz que quer ajudar o Sr. João Semana? Pois aí tem.
— Para me ficar depois com zanga.

— Credo! Zanga, não; eu só dizia que... Demais, isso não lhe rende cinco réis. Bem vê o que ela diz: A consciência é que paga. Ora, eu bem sei que as pequenas quiseram pagar, quiseram; cá o patrão é que não deixou. Não sei se fez bem, porque afinal... elas têm por onde paguem. Mas vá, vá. Além de que...
— Eu por mim vou; não me custa; mas se o seu amo se ofende?
— Não, não ofende; amanhã lá irá. Demais, as raparigas são agora quase da família do menino; é natural que o procurem primeiro.
— Pois então nem espero que ele acorde. Você diz-lhe...
— Sim, sim: não tenha dúvida; eu cá lhe digo.

E, chamando outra vez Daniel, que ia a se retirar, continuou: — E então, olhe. Também pode fazer-nos ainda outro favor. Eu tenho, desde esta manhã, um recado para o Sr. João Semana ir à casa do João da Esquina, lá do seu vizinho da tenda. Não lho dei, porque enfim... hoje lhe ficava bastante longe, e, aqui para nós, não andam muito bem em dia as contas com o tendeiro; como ao menino lhe fica perto da casa, se não lhe custasse, ia por lá.
— Também irei, o ponto está em que o homem me queira.

— Se não quiser, que mande fazer um de encomenda. Era o que faltava! Já vê que eu não tenho nenhuma má vontade contra o menino, até lhe dou freguesia. Daniel agradeceu os dois fregueses que a velha Joana lhe cedera, com poucos auspícios de lucros, e saiu sem esperar que o seu velho colega acordasse. A pressa com que Daniel saiu e a facilidade em aceder à proposta de Joana, tinha um motivo. E aí estamos nós para o explicar, e referimo-nos outra vez ao caráter do nosso herói.

A carta de Margarida falara-lhe à imaginação. Achou-a tão singular, na sua simplicidade, por ser escrita por uma rapariga da aldeia, que não pôde se eximir de fantasiar um tipo de romance, o qual logo suspirou por conhecer. Segundo as instruções de Joana, Daniel pôde, dentro de um quarto de hora, achar-se à cabeceira do enfermo, para quem se pedira o socorro de João Semana. Mas, contrariamente ao que esperava, foi Clara e não Margarida que ele encontrou ali.

Capítulo XX

A princípio, a substituição desagradou a Daniel, por lhe dissipar umas vagas fantasias, com que tinha vindo; mas Clara não era mulher junto de quem se pudesse sentir por muito tempo a falta de outra. Daniel, passados alguns minutos, achava-se conformado.
— Olhem quem nos vem! Bem dizia eu ontem; dentro em pouco, ninguém quer saber do João Semana.

— Devo lembrar-lhe Clarinha, que é à força, quase, que eu venho aqui, porque não houve quem tivesse a idéia de me mandar chamar, replicou Daniel, sorrindo. Não lhe disse eu que as raparigas seriam fiéis ao João Semana? Veja, nem a Clarinha nem a mana se lembraram de mim, sendo eu da família quase.
— Bem vê que pouco se lhe podia prometer, respondeu Clara, lançando para a humilde mobília do quarto um olhar expressivo.
— Nem a recompensa da consciência, que sua irmã prometia a João Semana?
— Com franqueza lho digo; eu por mim tinha-me lembrado de o chamar, tinha; mas Guida é que não quis.
— E por que não quis sua irmã?
— Eu sei lá? Eu já não estou acostumada a perguntar a razão por que ela diz isto ou aquilo. Para quê? Afinal de contas, não sei fazê-la mudar de tenção.
— Então é assim teimosa?
— Teimosa? Não, credo; mas é que depois de falar com ela... não sei como isto é... eu sou que mudo sempre. Mas, já que veio, entre; aqui tem o nosso doente.

E, dando ao gesto a expressão de desesperança, acrescentou, baixando a voz e suspirando: — Isto! Coitado! O doente era o velho que já conhecemos, agora de todo prostrado por uma caquexia, infalivelmente mortal. Realizara-se o seu pressentimento. Vida... só lhe restava para agradecer com o olhar, mais já do que com palavras, os cuidados quase filiais, de que as duas raparigas o rodeavam.

A idade e os padecimentos morais deste homem haviam-se tornado elementos quase invencíveis, do mal que lentamente lhe minava as forças. O único alívio, no seu leito de dor, era a vista das duas irmã. Faziam-lhe bem os sorrisos de Clara, e as lágrimas de Margarida duas expressões diversas da mesma simpatia. Daniel aproximou-se do leito do enfermo; do outro lado, ficava-lhe Clara.

A luz era escassa na alcova. As feições de Clara tinham tomado uma expressão de melancolia, a qual aquelas sombras pareciam aumentar. Junto à cabeceira de um enfermo é onde mais pronta e naturalmente se estabelece entre duas pessoas um trato familiar. A etiqueta e as reservas do costume sentem-se mal colocadas e intempestivas ali. Se é sincera a compaixão para o que padece, perde-se a frieza necessária à estrita observância das insignificantes convenções sociais. Não são possíveis as afetações nem os constrangimentos, quando a mesma generosa simpatia domina o pulsar de dois corações.

Por isso, entre Daniel, como médico, e Clara, como enfermeira, crescera, rapidamente, certa familiaridade, a qual não pouco concorrer para fazer demorado o exame do doente, cuja moléstia era de uma evidência e de uma fatalidade de êxito, que deviam facilitar a tarefa do seu estudo. Depois... nunca é tão cheia de atrativos a mulher, como ao velar, solícita, por o doente que estima. Às mais levianas revela-se-lhes então a grandeza e a sublimidade da sua missão na terra. O coração, que as vaidades podem trazer abafado, estremece e acorda ao primeiro grito de dor; o instinto feminino revive com toda a espontaneidade de abnegação, dá-lhes à voz inflexões de ternura, ao olhar requebros de meiguice, e aquela deliciosa fraqueza de ânimo que nos pedia proteção e amparo, transforma-se em coragem heroica, diante da qual nós, os que nos supúnhamos fortes, cedemos subjugados.

Um momento destes, na vida da mulher, absolve-a de todos os pequenos defeitos, que temos por costume censurar nela. Quando o império do amor e de piedade deve reger a vida, aceita então ela de nós, com sorrisos de brandura, o cetro de soberana. E nessas ocasiões bem conhece que o prestígio, que exerce, é absoluto; perde então a timidez habitual e olha-nos desassombrada.

Sucedia isto com Clara. Achava-se à vontade ali; fitava sem constrangimento, os expressivos olhos negros de Daniel, como se para nele espiar o passar das ideias, que o exame do doente lhe fosse sugerindo. Se ela soubesse que, enquanto o fitava assim, mal na doença o deixava pensar! O enleado agora era Daniel. Com os olhos no rosto cadavérico do enfermo, comprimindo-lhe ainda o pulso abatido e descarnado, quase não tinha consciência do que fazia.

Sem olhar, sentia que a vista de Clara se fixava nele, porque há fenômenos assim,  e sentindo-o  desgraçada natureza a sua!  em vez de médico impassível e atento, já não era senão o estudante de vinte anos, com toda a sua ardente imaginação. Enfim terminou aquele exame, longo, mas distraído, e, depois de algumas perguntas feitas ao doente, Daniel voltou à sala para receitar. Clara acompanhou-o e encostou-se familiarmente às costas da cadeira na qual Daniel se sentara. Era o bastante para tirar a este toda a tranquilidade. A seu pesar, a mão tremia-lhe ao escrever. Clara pôs-se a rir.
— De que se ri? Perguntou Daniel, voltando-se.
— Está-me a lembrar, ao ver tremer-lhe a mão assim, que o João Semana costuma dizer, quando assina uma receita, que assina uma sentença de morte. Daniel sorriu também, ou simulou sorrir.
— Isto é nervoso, disse ele, levantando-se.
— Nervoso? Então também é nervoso! Eu cuidei que isso era só das senhoras da cidade.
— Enganava-se.
— Então que é ser nervoso?

— É... por exemplo, não ter firmeza na mão ao escrever, quando nos seguem os movimentos com uns olhos assim como os seus Clarinha.
— Ah! Deve então ser má doença, que obriga os outros a andarem com os olhos fechados, redarguiu Clara, com certo tom de zombaria. Daniel ia replicar, quando um gemido do enfermo chamou Clara à alcova. Enfim, passados alguns segundos, Daniel muito a custo se preparava para sair.

Clara voltou, trazendo-lhe água para as mãos; ato naturalíssimo e sem significação, porém Daniel era destes homens, para quem quase não há atos sem significação. Lavando-se, e enquanto Clara sustentava a bacia, aventurou-se um olhar para a gentil rapariga, a qual o recebeu com firmeza. Como este olhar se prolongasse, Clara disse com um sorriso de ironia aparente através do gesto de ingenuidade de que o acompanhou.
— Está tão distraído, a pensar... no seu doente talvez, que nem repara que se está a lavar em seco. Daniel baixou os olhos e abreviou a operação.

Quando ia se retirar, ouviu Clara que lhe diziam gracejando: — Quando se lhe deve pela visita, Sr. Doutor? A esta pergunta, esteve iminente de sair da boca de Daniel um galanteio, que ele susteve a tempo, por não sei que pressentimento, que lhe dizia que esse jogo podia ter seus perigos. Limitou-se a responder: — Deve-se me um pouco de afeição pela boa vontade, quando mais não seja.
— Já vejo que é fácil de contentar.
— Acha então de pouco valor a afeição?
— Como não pede muita...
— É que receio que já não tenha muita para me dar.
— Tão pobre me faz disso?
— Pois não dispôs já da melhor?
— A afeição de que dispus, não lhe podia servir.
— Acha?

Esta pergunta, ou mais do que ela, a inflexão de voz com que foi dita, o olhar de que foi acompanhada, era imprudente. Clara desviou a vista diante deste olhar de Daniel.
— Ouça! disse ela, mais séria já do que até ali, A gente tem sempre no coração duas afeições diferentes, penso eu; uma, que se dá toda a uma pessoa, e julgo que uma só vez na vida; outra que se dá às porções, mais a uns menos a outros, mas que nunca se acaba. Para querer a este pobre velho, que ali está dentro e quero-lhe deveras nada tive de tirar à afeição grande, que tinha a Margarida. Conte por isso que ainda tenho afeição dessa  para lhe dar. A Guida não terá que sofrer com isso... nem os outros.

Havia uma delicada correção nestas palavras de Clara, que produziu efeito no ânimo de Daniel. Inclinou-se, e com sorriso não constrangido, replicou, estendendo-lhe a mão: — Agradecido, Clarinha. Essa mesma é a que me deve; pois não seremos dentro em pouco tempo, irmãos.? E separaram-se.
— Que diabo de homem sou eu? Dizia Daniel consigo. Pois não ia principiando me apaixonar por a mulher do meu irmão? Quando terei eu força para me vencer nestas coisas? mas é que tem uns olhos esta rapariga, e umas maneiras! E, sob o domínio destas novas impressões, a impressão que da carta de Margarida havia recebido, desvanecera-se de todo. Não era, porém, esta a única mudança que se tinha de operar nele, aquele dia.

Capítulo XXI

Cumprindo a promessa que tinha feito a Joana, foi o novo clínico fazer sua segunda visita. O leitor deve estar lembrado de que o doente era o nosso já conhecido João da Esquina, ou, pelo menos, alguém da sua respeitável família. Ao apresentar-se, em lugar de João Semana, Daniel foi recebido com uma visagem, pouco lisonjeira, do dono da casa, impressionado ainda talvez com as revolucionárias, e em nada tranquilizadoras opiniões médicas, que conhecia no seu vizinho.

— Então como é isto? É o senhor que vem? Dizia o homem, meio desconfiado, e como hesitando em se entregar aos cuidados da medicina nova.
— É verdade; sou eu, respondeu Daniel. O João Semana não podia vir hoje para estes sítios e, como me lembrou que talvez fosse de pressa a doença. Um sorriso encrespou os lábios do tendeiro.
— A doença?  Ah!  Então nós sempre temos doenças? perguntou o João da Esquina com certo ar de finura triunfante.
— Pois que dúvida? Disse Daniel, muito longe de imaginar o sentido oculto da interrogação. Não mandou chamar um médico? É provável que não seja para o consultar sobre alguma demanda. João da Esquina meneava a cabeça com ar de satisfação.

— Portanto, segue-se que temos doenças? Bem, bem.
— Mal, mal emendou Daniel, sorrindo.
— Eu cá me entendo. Afinal há de vir para o bom caminho, e no mais também, se Deus quiser.
— No mais? Repetia Daniel, sem entender o anfiguri.
— No mais sim, no mais. Ora me diga, continuou ele, tomando Daniel de parte e falando-lhe quase ao ouvido , parece-me que eu sou algum macaco? O filho de José das Dornas olhou espantado para os eu interlocutor, e principiou a suspeitar que a moléstia, que exigia os cuidados do médico, era desarranjo intelectual.
— Macaco? O Sr. João da Esquina macaco? Essa agora! Como me queres que eu suponha tal absurdo?
— Absurdo? Exclamou jubiloso o merceeiro. É o que eu digo. Assim, assim é que eu gosto de os ver.
— Esquisita monomania!  Comentava para si Daniel.

João da Esquina continuou no mesmo tom, meio irônico, meio confidencial: — E acha que me ficaria muito bem, se me pusesse a andar por aí com as mãos pelo chão? Daniel muito fora, naquele momento, das razões que motivavam estas perguntas, achava-as tão extravagantes, que sentia se agravarem cada vez mais as apreensões, relativamente ao estado intelectual do tendeiro.
— Decerto que não seria exemplo muito para tentar, respondeu Daniel, não podendo outra vez disfarçar um sorriso.
— Ah! Então parece-lhe isso?
— Acaso as íntimas convicções do Sr. João da Esquina repelirão esta maneira de pensar?
— O senhor é que parece ter mudado de ideias.

Lembrou-se então Daniel que talvez tivesse alguma vez pronunciado, diante de indiscretos, uma ou outra frase, menos favorável em relação a João da Esquina, a qual, tendo-lhe sido transmitida, desse por tal forma, motivo a esta desconfiança.
— Estou supondo que o Sr. João da Esquina tem não sei que prevenção contra mim. Pode ser que lhe viessem referir algumas palavras minhas, as quais julgue ofensivas à sua dignidade; mas creia que são menos verdadeiras. As coisas alteram-se sempre ao passar de boca em boca.
— Então, dá o dito por não dito?
— Tudo o que lhe for injurioso, creia que o não disse eu. Respondeu Daniel.

O tendeiro mais tranquilo a respeito do novo médico, o qual ele via assim abjurar solenemente as suas teorias subversivas do estado regular das coisas na sociedade e no mundo, não duvidou encetar os estiradíssimos capítulos da sua longa história mórbida. Pouparei ao leitor o ouvi-los. Imaginem uma interminável exposição de todos os incômodos sentidos há vinte anos, e cortada de variados episódios, alheios ao assunto principal, ou mantendo com eles laços imaginários.

A propósito da moléstia, veio, por exemplo, a campo a história minuciosa de uma demanda sobre uma pensão de duas frangas, o relatório das despesas feitas com os melhoramentos em uma propriedade sua, e as desavenças entre ele, tesoureiro da confraria do Sacramento, e o secretário da mesma. Daniel escutava-o distraído. No fim, fundando-se em uma outra circunstância que lhe ficara de todo o arrazoado, fez o diagnóstico, e formulou alguns preceitos médicos, mencionando, entre outros medicamentos que aconselhou, as preparações do arsênico. Lembrança imprudente! As palavras arsênico, João da Esquina estremeceu, e de novo se lhe assombrou o olhar da desconfiança.

A quarta das opiniões teóricas de Daniel, as quais lhe tinham sido referidas por José das Dornas, aparecia-lhe agora de novo com toda a sua aparência sinistra e homicida.
— Arsênico? Exclamou ele com voz quase rouca de susto e de indignação. O senhor quer que eu tome arsênico?
— Que dúvida? Respondeu Daniel. É um medicamento heroico, prodigioso em muitos casos.
— Eu tenho conhecido os prodígios que ele obra. Vale por dois gatos!
— Ora adeus! A questão está na maneira de o tomar.
— Arsênico! mas que ideia! esta não esperava eu! Arsênico!
— Está enganado. O arsênico até...
— Engorda também, não é verdade? Perguntou o tendeiro, com amarga ironia na voz.
— E ainda que lhe pareça que não.
— Para o senhor vale tanto como o toucinho. Eu já cá sabia.

— Mas ouça. Olhe... na Áustria... na Áustria, os cavalos de boa raça recebem sempre na aveia uma porção de arsênico, o qual lhes dá um aspecto luzente, elegante, vigoroso e inexcedível. O exemplo beliscou o amor-próprio do Sr. João da Esquina, que redarguiu com despeito: — Muito obrigado pela notícia. Isso talvez anime a gente da Áustria, ou certos doutores que eu conheço, que pensam que um homem é como qualquer animalejo dos tais, e que pode andar a quatro como eles também. Eu por mim...

Mas aí tem outro exemplo continuou Daniel. Em certas partes da Alemanha há povoações inteiras, nas quais o arsênico é comido com um prazer excessivo.
Pois que se regalem.
Mas olhe que é fato. São verdadeiros toxicófagos esses povos.
Eu logo vi que haviam de ser assim uma coisa; homens é que...
— E então as pessoas novas e, ainda mais, as raparigas são as que usam dele com avidez, e o que é certo é que conservam assim um ar de mocidade, uma frescura,. uma nutrição e uma força que, segundo a frase dos autores, parece que lhes permite voar.
— Para o outro mundo?
— Não senhor. É verdade isto que lhe digo.
— Eu já sei, eu já sei que, para o senhor, pão e arsênico deve ser tudo a mesma coisa. Mas eu por mim...
— Porém, sossegue, eu não quero obrigar o meu amigo a jantar arsênico; aplico-lhe apenas como medicamento e com as devidas precauções...
— Escusa de se dar a esse trabalho. Disso o dispenso eu. É coisa que me não há de entrar na boca. Arsênico! Que tal está!
— Mas esse receio é indigno de um homem de coragem, permita-me que lho diga.

Nesse tempo tinha entrado na loja, onde se passava o diálogo, a cara metade do Sr. João da Esquina, a Sr.ª Teresa de Jesus, gorda e rubicunda matrona, que saudou Daniel com sorrisos amáveis, e disse para o marido, com a voz mais melodiosa deste mundo: — Toma arsênico, menino, toma. E por que não hás de tomar arsênico? O Sr. João da Esquina fitou na mulher um olhar sombrio. Dir-se-ia que estava vendo nela uma nova Clitemnestra, de conjugicida memória.
— Toma-o tu, se gostas, foi a resposta que lhe deu, em tom de voz cheia de amargas exprobrações.
— É que me não será preciso a mim, redarguiu a senhora suspirando. Este suspiro foi o prelúdio da história dos seus complicados males.

A crônica não foi menos longa, nem menos fértil em episódios, do que a do marido. Os nervos, já se sabe, representam um papel importantíssimo na série de catástrofes, que a organização da Sr.ª Teresa vira cair sobre si durante os quarenta anos e nove anos de sua existência. Daniel foi miraculosos de paciência na atenção que lhe deu, e sublime de sisudez e compostura nos conselhos que em seguida recomendou. O pobre rapaz olhava com saudades para a porta da rua, sem ver possibilidade de a transpor tão cedo.

Enfim, quando julgava haver terminado a sua missão, e tomava jeito de retirar-se, as seguintes palavras da Sr.ª Teresa vieram a apertar-lhe o coração: — Mas não é tanto por nós que mandamos chamar facultativo. A doença principal da casa é outra. Aos nossos achaques já nos vamos acostumando. Foi por causa da pequena. Quer ter o incômodo de subir? Daniel não pôde reter um suspiro de impaciência. Se aquelas tinham sido doenças de segunda ordem, que monstruosa história patológica lhe estava reservada ainda? Os dois cônjuges fizeram-no subir adiante de si.

Pelas escadas, Daniel, apesar dos eu mau humor, não pôde deixar de sorrir, ouvindo a Sr.ª Teresa, a qual fechava o cortejo, dizer para o marido: — Toma arsênico, João. Ora não hás de tomar arsênico?
— Não me digas isso, mulher! respondia João da esquina, quase alterado. Dentro em pouco, estavam na presença da menina Francisca, filha única deste bem- talhado par.

Se os amáveis sorrisos da esposa tinham já procurado dar a Daniel compensação ao menos cordial acolhimento feito pelo tendeiro, o sobressalto e a confusão com que a menina estendeu para ele um pulso, sofrivelmente modelado, conseguiram mais eficazmente esse mesmo resultado. Era esta menina a trigueira mais trigueira de toda a aldeia. Ingrata para com esta cor maravilhosa, que, tingindo certos tipos fisionômicos como o dela, é de efeitos surpreendentes, tinha porém a fraqueza indesculpável de se afligir por não ser corada!

Era ideia fixa na menina Francisca; uma conversação de quarto de hora, que se tivesse com ela, bastava para a fazer avultar. Debalde protestava contra tal injustiça o brilho esplêndido de uns olhos que, naquela tez, realçavam como poucos. Dera-lhe para se reputar infeliz por aquilo e não havia maneira de distraí-la. A doença, que atualmente molestava esta progênie dos senhores da Esquina, era uma impertinência nervosa, dessas para as quais se receitam banhos de mar. Daniel não deixou de os aconselhar: mas não terminou as visitas com o conselho. Os tais olhos pretos sobre aquelas faces, esquisitamente trigueiras, davam-lhe deveras que pensar. Agora ele não tinha pressa de ir embora. Por onde andaria a imagem de Clara? Prolongando-se a visita, era inevitável a descoberta da corda sensível da enferma. Mais cedo ou mais tarde, um queixume indiscreto a poria em relevo. Assim aconteceu. Daniel ficou sabendo que mal oculto entenebrecia aquele coração, e preparou-se para ser eloquente na apologia da cor trigueira.

João da Esquina tinha saído da sala. O pobre homem já não podia suportar a sua cara metade, a qual, pela décima vez, lhe repetia: — Toma arsênico, filho, toma. Não posso saber por que não hás de tomar arsênico? Só, nas presenças das duas mulheres, deitou Daniel ombros à empresa de distrair a menina Francisca. Entre outras muitas coisas, afirmou, por sua conta e risco, que as belezas célebres, essas que inspiraram os grandes poetas, os grandes artistas e os grandes amores, tinham sido trigueiras, e, especificando, citou Dido, Natércia, Cleópatra, Beatriz, Fornarina, Laura, Inês de Castro, etc., etc. Desta gente toda, a Sr.ª Teresa e sua filha só conheciam Inês de Castro, porque havia meses que tinham visto representar uma obra dramática, produção inédita de não sei que Shakespeare rústico, na qual entrava esta senhora, mais maltratada ainda das mãos do trágico, que das dos "brutos matadores".

A mãe fez notar à filha que de fato não era das mais alvas a moçoila que desempenhou a parte da heroína daquela vez. Além destes argumentos histórico apologéticos, a respeito da cor trigueira, Daniel, aproveitando uma curta ausência da Sr.ª Teresa, segredou à menina algumas amabilidades de efeito salutar. Ela teve a condescendência de sorrir. Diga-se a verdade: nunca até então escutara também mais gentil conforto contra o motivo das suas penas. Daí até o fim da entrevista foi toda sorrisos. Daniel, quando saiu, ia muito bem-conceituado pela parte feminina da família e prometeu voltar. João da Esquina conservava-se ainda um pouco frio. De mais a mais, quando Daniel passou pela loja, a Sr.ª Teresa que era para ele de uma amabilidade monstruosa, disse para o marido: — Toma arsênico, João; que teima a tua em não tomar arsênico! Esta insistência produziu calafrios na espinha dorsal do tendeiro.
— Ó mulher, não me digas isso! Que cisma! exclamou ele irritado.

Na noite desse dia, pela primeira vez, deixou a menina de lavar o rosto com água misteriosa, que o barbeiro lhe vendera por um bom preço, afirmando-lhe possuir a virtude de tornar brancas, com o tempo, as mais escuras africanas.

Capítulo XXII

No dia seguinte, Daniel voltou. A família Esquina, até sem exceção do elemento masculino, sorriu-lhe cordialmente. O que fizera esquecer assim ao tendeiro as suas negras apreensões, e abrira em sorrisos aqueles sobrecenhos da véspera? O leitor, que toma a peito, decerto, a varonil rijeza de caráter do tesoureiro da confraria do Sacramento, não me perdoaria se eu não explicasse o fenômeno.

Foi o caso que, na véspera, depois que Daniel se retirou, a menina Francisca, ainda pensativa e enleada, veio à janela para o ver passar, e ao perdê-lo de vista, retirou-se suspirando. Este suspiro entrou pelos ouvidos da mãe, a qual chegava à sala naquela ocasião. A Sr.ª Teresa teve uma ideia. Este fenômeno se dava, de vez em quando, na esposa do Sr. João da esquina.

— Tem umas maneiras muito bonitas este rapaz, disse ela, fixando na filha o olhar mais investigador que tinha à sua disposição.
— Tem, respondeu esta secamente.
— Ou ele ou o João Semana, a quem ninguém pode tirar da boca uma palavra delicada. Este é coisa mais fina. — É, replicou a outra.
— Bem mostra que tem vivido entre gente polida e educada.
— Bem, continuava a menina.
— E não lhe hão de faltar bons casamentos, a esse rapaz.
— Não – dizia a filha.
— Isso há de ser bonito agora. Todas as raparigas da terra a enfeitarem-se para lhe agradar. Há de ter que ver. — Há de. A Sr.ª Teresa principiava a impacientar-se com o laconismo da filha.

— Mas acham-se muito enganadas, continuou ela, um rapaz assim não cai facilmente. Estas nossas raparigas são umas estúpidas. Louvado seja Deus. Não sabem dizer duas palavras. E desembaraço é o que se quer.
— É...
— E por que não o hás de tu ter, menina? Acrescentou ela, em tom mais baixo e insinuante. Eu?
— Tu, sim, por que não? Para que gastou teu pai contigo, a mandar-te aprender os verbos, senão para poderes agora mostrar o que és, e diferençar-te das outras? A menina desta vez nem um monossílabo pronunciou. Encolheu os ombros só.
— Bem se via que o Sr. Daniel logo conheceu com quem lidava. Cuidas tu que ele se gastava assim com qualquer Maria do monte? Diz-lhe que sim. Ele bem sabe que seria deitar pérolas a porcos. Por isso, menina, não deixes perder a ocasião. Acredita que darás muito gosto a teus pais, se...

A Sr.ª Teresa vacilou ao principiar a condicional, em que ela queria conservar a conveniente dignidade materna.
— Se? perguntou a filha, e foi este de todos os monossílabos, que até ali tinha soltado, o mais embaraçoso para a mãe.
— Se... sim... quero eu dizer, que eu e os teus pais não levaríamos mal se... um dia o Sr. Daniel nos viesse pedir a tua mão.

O ar de satisfação, que se desenhou no rosto da esposa do Sr. João da Esquina, mostrou que ela estava contente consigo pela construção final da frase. A menina ao ouvi-la, baixou os olhos; devia ver-se corar, se tal fenômeno fosse de possível observação nas faces dela. Enquanto a palavras, limitou-se a balbuciar um "Ora!" eloquente de graciosa confusão. A Sr.ª Teresa passou à loja, onde estava o marido.

— Ó João, olha que nós temos de conversas, disse-lhe ela, sentando-se ao pé do mostrador.
— Vens falar-me do arsênico outra vez? Perguntou o marido inquieto.
— Não! Ainda que, para dizer a verdade, não sei por que não o hás de tomar.
— E a dar-lhe!
— Mas ouve. Essa visita de Daniel do Dornas não te deu o que pensar?

— Deu-me que pensar, deu. E vou já mandar dizer-lhe que escusa de cá voltar, por quê...
— Não sejas tolo, homem! Abre os olhos e vê – exclamou a Sr.ª Teresa, com ar de mistério.
— O quê? – perguntou João da esquina, não, podendo deixar de abrir instintivamente os olhos.
— Que idade tem o Daniel?
— Eu sei lá?
— Vinte e tantos anos, vá. E que idade tem a Chica?
— Ela nasceu logo depois do cerco...

— Faz vinte anos para setembro.
— E daí?
— E daí? E quanto virá herdar o Daniel por morte dos pais?
— Eu te digo... para cima de trinta mil cruzados, não falando em...
— E ainda perguntas: "E daí?".

João da Esquina olhou para a mulher significativamente, e não deu palavra. Tinham-se compreendido os dois. Passados momentos, murmurou o homem: — Olha que não era mau, se...
— Vê lá então agora...
— O pior é...
— Pois sim, eu não digo que...
— Mas ele já? sim...
— Não, porém...
— Então quem sabe se...
— Isto é... até certo ponto.
— É verdade que também...
— Sim, pois está claro, e...
— E mau era que já...
— Com certeza... demais...
— Agora o que é preciso, é...
— Isso com o tempo... bem vês que...

Não sei se o leitor penetrou bem o sentido deste diálogo, cortado de expressivas reticências, e ao qual falta para o interpretar, a eloquência do olhar e de gestos, que os dois cônjuges trocavam entre si. É certo que eles se compreenderam assim, e largas horas ficaram discutindo os teres e haveres de Daniel, e as probabilidades e vantagens de uma união entre a casa dos Esquina e a dos Dornas, as quais, com os anos, podiam fornecer sofríveis elementos para a confecção de um brasão heráldico.

A Sr.ª Teresa foi encarregada por o marido de excitar na menina o ardor pela conquista, e industriada em dirigir o negócio de maneira a "prender o melro por asa" foi a frase imaginosa, da qual João da Esquina se serviu.
— O pior há de ser o pai: mas segura-me tu o rapaz, que eu depois tomarei a meu cargo a empresa, dizia ele. Conspirados assim os dois, sentiam-se radiosos de esperanças no futuro.

João da Esquina estava de tão condescendente disposição de espírito, que a sua cara metade aventurou um pedido.
— Agora para seres bonito, João, devias tomar arsênico. O tendeiro deu um murro no mostrador.
— Não te calarás com isso, Teresa?

Aí ficam expostas as razões dos sorrisos, com que o próprio João da Esquina recebeu Daniel, à segunda visita. A mãe conduziu-o aos aposentos da menina e teve o discreto cuidado de se distrair à janela enquanto Daniel interrogava a doente. O sistema de tratamento encetado continuou, e com igual êxito. Daniel desta vez, ao retirar-se, levava já a autorização para continuar por escrito as consolações principiadas vocalmente.

A Sr.ª Teresa não deixou sair Daniel sem que ele visse todas as obras de crochê das industriosas mãos da menina, e os modelos caligráficos, que escrevera na mestra. De passagem. disse-lhe também que ela havia aprendido os verbos, coisa que pouca gente sabia na terra. A Sr.ª Teresa possuía fé, quase supersticiosa, nesta ciência dos verbos.

João da Esquina quis obrigar Daniel a beber um cálice de vinho, do qual ele a muito custo conseguiu se dispensar.
— Da rua, Daniel voltou-se para cima, e vendo à janela a descendente dos Esquinas, cortejou-a com um sorriso cheio de amabilidades. Um cotovelão da Sr.ª Teresa fez notar ao marido esta circunstância. O homem conseguiu arranjar um gesto de finura, e recomendou gravidade. Naquela tarde, Daniel, escrevendo a um seu antigo condiscípulo, dizia, entre outras coisas, o seguinte: "Participo-te que se está desenvolvendo em mim o gosto pelo gênero campestre. Principio a achar mais dignas do pincel do artista estas formosuras expressivas e, quase direi, enérgicas da aldeia, do que as sempre monotonamente lânguidas maravilhas da cidade. Pena é que o reconhecesse um tanto tarde.

Resta-me já pouco alento para as empresas de rapaz, e, demais, a minha nova posição social obriga-me a uma seriedade que me tolhe a ação. Agora só devo aspirar às doçuras emolientes do lar conjugal. Não obstante, andam-me a tentar uns olhos pretos, e eu não sei se sustentarei o equilíbrio por muito tempo. Encomenda a todos os santos a manutenção da minha sisudez, se não queres ver perdida a fama do teu amigo, no ninho seu paterno." As visitas de Daniel à casa de João da Esquina continuaram. O mulherio da vizinhança falava já. A Sr.ª Teresa deixava falar o mulherio. Se isso entrava até nos seus planos.

Uma vizinha, comadre e muito íntima da Sr.ª Teresa, uma só ocultava à outra o mal que dela dizia pelas costas, falando-lhe um dia, aludiu a Daniel e às suas visitas.
— Então comadre? pelos modos, o nosso cirurgião gosta muito destes sítios.
— Cada um vai para onde mais lhe agrada, comadre.
— Isso lá é assim. E quem sabe o que será?

— Que será o que?
— Sim comadre, ele não é de raça que não seja a sua filha,
— Decerto que não é, não.
— Pois então...
— O futuro só Deus o sabe.
— É verdade. O ponto está que a sua pequena... Se ainda não lhe passou aquela cisma que teve para o Chico, sapateiro...
— O Chico, sapateiro! exclamou indignada a Sr.ª Teresa Não. que a minha filha é cabedal muito fino, para ir às mãos de um remendão daqueles.
— Nisso tem razão. Inda se fosse com o Joaquim sacristão.
— Qual sacristão, nem meio sacristão! A comadre pensa que uma criatura se sustenta com aparas de hóstia e com escorralhas de galhetas?

A comadre aplaudiu com uma gargalhada o dito, e observou: — O das estradas é que... está feito... já era assim mais jeitoso esse.
— Pássaro de arribação! Olhe, enfim não sei o que será. Esta pequena é muito difícil de contentar. Que quer? Está estragada de mimo... Mas se ela não o enjeitar... que tem agora ocasião de fazer um bom casamento, isso tem.
— E ele?
— Ele? pois não vê como o rapaz não nos larga a porta?
— Mas será... com boas ideias?
— Ora essa, comadre! Então julga que nós somos?
— Não digo isso. Mas... Dizem que ele foi um estroina dos meus pecados...

— Pois sim; mas isso é com gente de pouco mais ou menos: mas nós cá... Neste estado estavam as coisas, e assim duraram alguns dias mais. Chegou a ocasião da Sr.ª Teresa ter obtido alguma alavanca para fazer caminhar o negócio. Houve neste dia longa conferência entre os cônjuges. Ficou demonstrado para eles que o "melro estava preso pela asa". João da Esquina, levantando a sessão, disse com modo solene: — É ocasião de dar o grande passo! E, enfiando a sua roupa dos domingos, preparou-se para sair.

Agitava-o certa comoção interior, própria das grandes ocasiões. Queixou-se disto à mulher; esta lhe observou: — O culpado és tu.
— Então? – perguntou o marido.
— Se tomasses o... João da Esquina não ouviu o resto. Saiu impetuosamente.

A Sr.ª Teresa, vindo à janela para o ver, dizia consigo: — Mas por que não há este homem tomar o arsênico? Que circunstância tinha convocado o conciliábulo conjugal, e o que foi fazer o João da Esquina assim ataviado. Vê-lo-emos no capítulo seguinte.

Capítulo XXIII

Tomando certos ares de gravidade e de importância, em grande parte devido a uns estupendos colarinhos engomados, acessório daquele vestuário típico, dobrou o Sr. João da Esquina a esquina, donde lhe vinha o nome, e, atravessando a rua adjacente, caminhou em direção à casa de José das Dornas.

Ao entrar no portão do lavrador, deu o tendeiro ao rosto um jeito de indignação e procurou simular em seus movimentos uma impetuosidade e impaciência, contra as quais estava protestando aquele todo bonacheirão.
— Diga ao Sr. José das Dornas que está aqui o João da Esquina, que lhe quer dizer duas palavras foi como, em tom desabrido, ele se mandou anunciar pelo primeiro criado que viu. José das Dornas que acabaras de dormir uma sesta refociladora, veio ter com seu vizinho, com o rosto alegre e cantarolando. Ai, lá ri ló lé lá.

Eu vou pela mansidão. Olá! bradou o jovial lavrador, vendo o tendeiro. Viva o Sr. João! Ditosos olhos que o veem! Como vai essa bizarria? Sente-se; esteja a seu gosto. Vai um copito de rascante?
— Muito obrigado! respondeu secamente João da Esquina.
— Pois mal sabe o que perde; é daquele de esfolar o céu da boca. Então que milagre o traz por esta sua casa?
— Um negócio muito sério.

— Temos empréstimo, disse, em parte, José das Dornas; e alto. Muito sério? O caso é que você traz cara de funeral. Ah! Ah!
— Tenho pouca vontade de rir, Sr. José.
— Mau é isso. Então que diabo o aflige? Desembuche para aí. Olhe que eu sou homem para as ocasiões. A sua filha está pior?
— A minha filha está boa, replicou, com certo mau modo, o tendeiro.
— Boa! Com que então... logo à primeira... hein? O meu Daniel saiu-se como um homem.
— Saiu-se otimamente – disse João da Esquina duma maneira que procurou fazer notável.

— Olhe que me tem esquecido lhe emprestar o livro do rapaz; continuou José das Dornas, que não notara a tal maneira, aquele em que lhe falei; mas espere, que eu vou... Ia a levantar-se, porém um gesto do seu interlocutor fê-lo parar.
— Não tenha incômodo. É de outra obra de seu filho, que lhe quero falar.
— De outra! E José das Dornas principiou a dar mais atenção aos modos esquisitos do tendeiro.
— Homem, você hoje não sei o que tem consigo! Não o entendo!

Em vez de responder, João da Esquina pôs-se a mexer nos bolsos, e tirou de lá um papel cor-de-rosa, pequeno, elegante, lustroso e aromatizado; desdobrou-o, e pondo-o diante dos olhos do lavrador, disse-lhe simplesmente: — Ora, faça o favor de ler isto.
— Mas isto o que é?
— Leia e verá.

Era fácil dizer: "leia", mas não de pequena dificuldade para José das Dornas a tarefa, que com essas palavras lhe impunham.
— Homem, é melhor que você me diga o que é isto, do que...
— Nada, não senhor. Leia.

— Valha-o Deus! disse o bom lavrador, afastando o papel dos olhos quatro palmos, para o poder ler; não o conseguindo, tirou do bolso umas cangalhas, das quais armou o nariz, depois de ter lançado para o interlocutor um olhar, que valia um recurso, para tribunal de última instância, contra uma sentença de morte.
— "Trigueira" ele o leu logo no topo da página, e voltou para o tendeiro os olhos de espanto.
— Trigueira! Que quer dizer isto?
— Homem, leia, leia que o saberá.

José das Dornas continuou, já se imagina como. Eu evitarei ao leitor o assistir às verberações, que ele aplicou à prosódia portuguesa. Eis o que leu: Trigueira! que tem? Mais feia:

Com essa cor te imaginas?
Feia! tu, que assim fascinas.
Com um só olhar dos teus!

Que ciúmes tens da alvura.
Desses semblantes de neve!
Ai, pobre cabeça leve!

Que te não castigue Deus. No fim desta primeira estância, José das Dornas, como atordoado, levantou os olhos para João da Esquina; mas viu-o tão sério, que continuou:

Trigueira! se tu soubesses.
O que é ser assim trigueira!
essa ardilosa maneira.

Porque tu o sabes ser,
Não virias te lamentar.
Toda sentida e chorosa,
Tendo inveja à cor-de-rosa,

Sem motivos para a ter. Ô vizinho, mas isto... ia a dizer José das Dornas, que principiava a suar. Um gesto do tendeiro obrigou-o a prosseguir: Trigueira! Porque és trigueira, É que eu assim te quis tanto Repare Sr. José observou do lado, João da Esquina "É que eu assim te quis tanto". Vá reparando. José das Dornas abriu muito os olhos para reparar, e continuou: Daí provém todo o encanto.

Em que me traz este amor. "Este amor" repare, vizinho, "este amor"! tornou a dizer João da Esquina, e José das Dornas tornou a abrir muito os olhos, repetindo, sem saber para quê: — "Este amor"... é verdade, "este amor..." Cá está. E prosseguiu: E suspiras e murmuras! É peta! notou João da Esquina.
— Palavra de honra, que está aqui "E suspira e murmuras", Sr. João. Ora faça favor de ver.
— Não nego; quero eu dizer que... mas adiante, adiante. José das Dornas continuou:

E suspiras e murmuras!
Que mais desejavas ainda!
Pois serias tu mais linda,
Se tivesses outra cor?

José das Dornas começou a lançar para o vizinho um olhar inquieto; estava seriamente pensando que o homem endoidecera.
— Continue, disse-lhe o tendeiro. E o lavrador continuou, suando cada vez mais: Trigueira! onde mais realça.

O brilhar duns olhos pretos.
Sempre úmidos, sempre inquietos.
Do que numa cor assim?

Onde o correr duma lágrima.
Mais encantos apresenta?
E um sorriso, um só nos tenta,

Como me tentou a mim? "Como me tentou a mim", repetiu João da Esquina. Vá vendo.
— Homem! exclamou José das Dornas, estafado, bastará de leituras.
— Pouco falta. está a acabar, respondeu o outro. José das Dornas resignou-se e prosseguiu.

Trigueira! E choras por isso!
Choras, quando outras te invejam.
Essa cor, e em vão forcejam.
Para como tu fascinar?

Ó louca, nunca mais digas,
Nunca mais, que és desditosa,
Invejar à cor-de-rosa,

Em ti, é quase pecar. Ó Sr. João! Eu não posso mais! exclamou José das Dornas, com acento lastimoso.
— É só um agora; e acabou.
— Mas... E, ficando na reticência, José das Dornas tomou fôlego para ler ainda:

Trigueira! Vamos, esconde-me.
Esse choro de criança.
Ai, que falta de confiança!

Que graciosa timidez!
Enxuga os bonitos olhos.
Então, não chores, trigueira,
E nunca dessa maneira.

Te lamentes outra vez. Buff! bradou José das Dornas, ao terminar a leitura, e limpando o suor, que o banhava.

— Leu? Perguntou o tendeiro.
— Sim, senhor. Estão bonitos. São seus, Sr. João?
— Meus? Exclamou o tendeiro, escandalizado quase. Isto é mais uma receita do nosso médico novo.
— Hein! isse José das Dornas, parecendo-lhe que não tinha ouvido bem–diz vossemecê que é?
— Outra das lembranças do senhor seu filho.
— Do... do meu... do Daniel?
— Sim, senhor... Do Daniel.
— Pois o rapaz fez isto?
— Era com essas e outras que ele andava a tratar a minha filha. O culpado fui eu, que lhe dei entrada em casa. José das Dornas esteve a deixar escapar uma gargalhada, mas conteve-se prudentemente.

— Ó vizinho, por quem é, não ande por aí a dizer essas coisas, que me desacredita o rapaz. Olhem se o João da Semana o sabe! Um médico poeta! Para que diabo lhe havia de dar...
— Que faça versos à Lua e ao Sol, se quiser, dizia João da Esquina, não há de tirar disso grande proveito, mas que os faça, que os faça; agora andar a inquietar famílias e...
— Tem razão, vizinho, tem razão, e eu lhe prometo...
— Abusar da confiança de um homem como eu!
— Tem muita razão, vizinho.
— Fazer andar à roda a cabeça de uma rapariga de juízo!

Neste ponto, José das Dornas engoliu em seco, mas não deixou de repetir: — Tem toda a razão, vizinho...
— É um desaforo!
— Não o nego, Sr. João, não o nego.
— Não é homem em que a gente se fie.
— A falar verdade....não é, não é.

— Enfim, Sr. José, continuou o tendeiro com ar resoluto, e, depois de uma pausa, concluiu. É forçosa uma satisfação!
— Eu lhe prometo que o rapaz não volta lá. João da Esquina fez um gesto de quem não se lisonjeava com a promessa.
— Não é por isso que eu digo.
— Então?

— O vizinho sabe o que são bocas do mundo?
— Sim; e depois?
— O que são línguas chocalheiras?
— Sim; e daí?
— O que são...
— Vamos; adiante.
— Pois bem; para as fazer calar, é preciso...
— É preciso o quê?

— É necessário...
— É necessário o quê?
— É indispensável...
— O quê? Sr. João, o quê? exclamou o lavrador, já impaciente, o que é necessário?
— Que seu filho...
— Que meu filho?
— Case...
— Com sua filha, não?
— Está bem de ver. Com grande escândalo do tendeiro, José das Dornas pôs-se a cantarolar: Ai, lá ri ló lé lá.

Eu vou pela mansidão. E foi para isso que teve o trabalho de vir aqui? Ora olhe, Sr. João: nós somos conhecidos antigos, e eu macaco velho, como deve saber, que já não me deixo levar por essas. Aqui para nós, por que não tapou o vizinho da mesma forma as bocas mundo, que tanto falou do derriço de sua filha com o filho do sineiro? Por que se deu lhe não deu que elas tagarelassem por ocasião da festa do Coração de Jesus, quando o Bento do padeiro não tirou os olhos dela, e ela dele, durante toda a festa? Por que fez ouvidos de mercador, quando o Sr. Padre Antônio lhe disse que casasse a rapariga com o Chico sapateiro para não dar que falar a cegueira em que ela andava com ele? Aí então, não quis: nem lhe importaram as línguas chocalheiras? Chegaram-lhe agora as febres. Pois veio bater a má porta. Sossegue. Não tenha susto. Homens, que fazem versos, não são os piores. Contentam-se com isso. Sabe que mais? Meta a viola no saco; retese a corda à cachopa, e deixe correr.
— Isso não é resposta que se dê, Sr. José; exclamou o tendeiro, que via prestes a fugir-lhe uma ótima ocasião de negócio.
— Não se zangues, Sr. João. Amigos como dantes. Pensemos em outra coisa. Está um tempo muito criador...
— Sr. José, isto não vai assim.
— Não me mortifique, Sr. João, para que não vá pior. Os milhos...

— Sr. José!
— Não berre, vizinho.
— Eu quero ver...
— Pois abre os olhos... Mas...
— Quero ver se é capaz...
— Sr. João, vá para casa.
— Sr. José das Dornas! veja o que faz.
— Estou vendo.
— Repare bem para mim.
— Estou reparando.
— Saiba que eu sou...

Não pôde dizer o quê. Interrompeu-lhe o discurso o reitor, que entrou na sala. Vendo o aspecto dos dois interlocutores, e a vivacidade do gesto do tendeiro, o padre quis saber a razão da contenda. João da Esquina desanimou em presença do reitor. Agourou mal da intervenção. Depois e ouvir as queixas do tendeiro, o reitor perguntou-lhe, com o rosto severo, se o casamento da filha com empreiteiro das estradas não viria reparar mais falhas na inteireza da sua boa fama doméstica. João da Esquina sentiu-se derrotado, e já procurava uma saída airosa.
— Bem; eu retiro-me, que sou prudente. Levo a consciência de que fiz o meu dever. Mas o mundo saberá...

O resto da oração pronunciou-a fora da porta. esta circunstância me impossibilita de informar o leitor sobre o que o mundo tem de vir a saber a respeito do tendeiro.
— Que lhe parece esta, Sr. Reitor? Disse José das Dornas, mal o viu sair. Havia o meu Daniel de...
— O teu Daniel é um doido; e se isto assim continua, há de vir a fazer a tua desgraça.
— Mas uns versos que mal fazem? e então àquele cata-vento da Chica do tendeiro, que é mesmo... o Senhor me perdoe.

— Homem; a coisa não está nos versos. O que eu digo é que o Daniel tem deveres tão sagrados, entrando no seio das famílias, como nós os párocos. E se as mãos, que devem levar o remédio, espalham a peçonha, a maldição de Deus desce sobre elas. Quem abrirá as portas da alcova, onde padeça uma filha, uma esposa ou uma irmã, ao médico que não tem força para sufocar as paixões más do seu coração? Fá-lo ias tu? Não nem eu. Quanto mais santa é uma missão neste mundo, José, mais se rebaixa e avilta quem a aceita sem ter-lhe compreendido o alcance. O mau padre é o pior dos homens; e parece-te que será muito melhor o médico imoral? Pensa nisto, e diz-me se Daniel merece grandes desculpas. As palavras do reitor tinham o poder de calar no ânimo de José das Dornas, como as de ninguém.

O lavrador baixou a cabeça, e perguntou humildemente: — Então acha V.S.ª que Daniel deve casar com a...
— Não digo tanto! respondeu com vivacidade o reitor. Ali houve cálculo neles, conheço-os há muito; e espero que da parte de Daniel nada mais se deu além da loucura dos versos, que não valem nada afinal. Mas que lhe sirva de aviso.
— Se o Sr. Reitor lhe fosse ralhar...
— Onde está ele?
— Deve estar lá dentro no quarto. O padre foi ter com Daniel.

Capítulo XXIV

A vida que, por aquele tempo, Daniel passava na aldeia era de uma monotonia capaz até de saciar as exigências do homem mais indolente e ocioso. Vejamos em que se ocupava o nosso heroi, enquanto, sem o suspeitar, estava sendo objeto do momentoso diálogo, do qual, no capítulo antecedente, nos aventuramos a ser cronista. Para isso tomemos a dianteira ao reitor e entremos, antes dele, no quarto de Daniel. Não sei se é a voz da consciência a que me está a bradar que vou cometer uma indiscrição.

As pessoas mais sisudas e graves têm momentos na vida, durante os quais, a sós consigo, se entregam a distrações de crianças. É possível, pois, irmos encontrar Daniel em um dos tais momentos; e talvez que o possamos, por essa forma, prejudicar no conceito dos leitores. Mas, por quem são, lembrem-se que, em horas de ócio e enfado, ouso eu afirmá-lo, não tem sido também demasiado os escrúpulos na escolha de passatempos; essa consideração decerto os fará indulgentes. Àquela hora do dia, Daniel sentia-se morrer de tédio, debaixo dos telhados paternais. O calor não o deixava sair. Quis ler: faltavam-lhe porém os livros. Os seus ainda não tinham chegado da cidade.

Revistando os cantos e escaninhos da casa, apenas encontrou três reportórios dos anos findos, uma cartilha de doutrina cristã, uma tábua de pesos, medidas e dinheiros, e, em gênero mais ameno, o Testamento do Galo, a confissão do Marujo Vicente e a Vida Milagrosa de não sei que santo padroeiro da freguesia. Ainda assim, tudo isto leu Daniel, por motivo análogo aos que levou os náufragos da nau Catrineta a "deitarem sola de molho para o outro dia jantar".

Esgotado este pecúlio literário, lembrou-se Daniel de escrever cartas. Encontrou, porém, o tinteiro muito pobre de tinta; essa, amarela e bolorenta; e, pior que tudo, uma pena de pato, de tantos caprichos, que lhe fez perder logo a paciência. Veio para a janela; e, durante algum tempo, divertiu-se a atirar biscoitos a um cão, que andava solto pela quinta. As galinhas, patos, pombos e perus, que havia em abundância na casa, corriam tumultuosamente a disputar ao quadrúpede as migalhas as quais ele defendia com unhas e dentes. Este jogo de circo, em miniatura, encantava Daniel. Afinal se cansou dele também, e fê-lo cessar.

Vendo então um gato em pachorrento repouso, no alto duma ramada distante, tomou um espelho, e, por meio dele, fez cair sobre a cabeça do sonolento animal os raios ofuscadores daquele sol de agosto. O gato, assim despertado, abriu os olhos, mas fechou-os logo, e desviou a cabeça para se furtar àquela pouco agradável impressão. Depois de vários movimentos, sentindo-se sempre perseguido por o mesmo reflexo, ergueu-se, espreguiçou-se, aguçou as unhas na madeira da ramada, e, voltando-se para o outro lado, ajeitou-se com o manifesto intento de concluir o sono interrompido.

Impossibilitado, por esta evolução do gato, de continuar a incomodá-lo da mesma forma que até ali, Daniel fez-lhe pontaria com uma maçã verde, e tão certeira que o projetil foi bater em cheio nas costas do animal, que num salto desapareceu. Terminou para Daniel mais este divertimento. No peitoril da janela descobriu, porém, uma formiga. Uma formiga! Que valiosos achado naquelas alturas! A providência dos desocupados velava decerto por ele. Procurou logo uma migalha de pão e pô-la na passagem do laborioso inseto.

A formiga parou, tenteou com as antenas o estorvo, assim de repente lançado no seu caminho, examinou-o de todos os lados, depois, talvez por capricho, porque até os insetos têm, a meu ver, alguns caprichos; deu-lhe para desprezar o alimento e deitou a fugir. Daniel insistiu, colocando-lhe outra vez o pão na passagem; o mesmo exame da parte da formiga, e a mesma rejeição final. Nova tentativa de Daniel foi ainda seguida do mesmo resultado. Era demais para sua paciência; com um sopro fez voar a migalha e formiga pela janela fora. E mais uma vez, ficou sem entretenimento.

Pôs-se a passear no quarto; primeiro descrevendo zigue-zagues; depois, procurando conservar os pés na linha de juntura de tábuas do soalho; em seguida, medindo escrupulosamente a passos regulares o comprimento e a largura do retângulo do aposento; e, feita esta última operação, multiplicou os resultados obtidos, como se tomasse muito a peito o cálculo daquela área.

Completa esta tarefa, e, depois de alguns bocejos expressivos de enfado, procedeu ao trabalho, não menos importante, de equilibrar na ponta do dedo mínimo uma vara de marmeleiro. Cansou-o cedo a violência do exercício, no qual, de mais a mais, não foi muito feliz; este mau êxito o desgostou como se naquilo tivera posto a sua reputação.

Acendeu um cigarro comprado no único e mal fornecido estanco da terra. O papel parecia, porém, apostado a impacientá-lo: era incombustível; o tabaco tinha crepitações que aos ouvidos de Daniel soavam como risadas de mofa; e os lumes prontos, aqueles perfeitos e elegantes lumes prontos de pau, primitivos modelos da indústria nacional, bem conhecidos de nós todos, perdiam a cabeça a primeira tentativa feita para os inflamar... faziam-na perder também a Daniel, diria eu, se se usassem ainda os trocadilhos.

Chegou a despejar uma caixa para acender o cigarro, e este lhe ardia só de um lado. Afinal não fumou. Para desabafar a sua impaciência, trauteou toda a música italiana que a memória lhe armazenava, e acabou por cantar em voz alta a ária de Genaro na Lucrécia: Di pescator ignobile. Esser figliuolo credei. Nisto, chegando à janela, viu que os moços da lavoura estavam todos a olhar para cima boquiabertos, admirando aquele acesso de fúria musical.

— Bom! pensou Daniel. Estou dando escândalo, e a arriscar a minha reputação de homem sisudo. E calou-se, tocando com os dedos um rufo no peitoril da janela. Depois passeou, sentou-se, ergueu-se de novo, e tornou a passear. Achando por acaso uma pedra de giz, escreveu distraído, na porta da janela, as seguintes palavras: Coge mofar, Sumatra, Telescópio, Manon Lescaut. O oculto fio lógico, que, encadeava essas quatro palavras na mente de Daniel, é um mistério que eu não sei decifrar. O giz gastou-se.

Ó doce vida da aldeia, exclamou por fim Daniel com amargura. Ó sonho dourado dos poetas de geórgicas e de idílios, como eu me estou deliciando em ti! Eis a secura quies, os otia in latis fundis e os molles somni, de que fala o poeta. É isto! Ora eu sempre queria que aquele bom do Virgílio me dissesse o que se há de fazer no campo a estas horas do dia? Que vida! que vida esta, meu Deus! e que futuro! Ao dizer isso, lançou casualmente os olhos para o leito, e, como se este lhe desse a resposta, ao que ele queria perguntar ao cantor de Eneias, deitou-se. Deitou de costas, e pôs-se então a contar as tábuas do teto. Contou dezessete.
— Dezessete, noves fora, oito, disse insensivelmente Daniel.

Depois reparou que eram oito os vidros da janela, e admirou lá consigo muito esta, na verdade admirável, coincidência. Um resultado tão curioso animou-o a prosseguir em observações análogas. Preparava-se para contar as cabeças dos pregos, que viu pelo teto, porém uma mosca importuna. teimando em pousar-lhe na testa, veio perturbá-lo neste ponderoso exame, e obrigou-o a desistir.

Por acaso, fitou então os olhos em uma espécie de mancha escura, que estava na parede fronteira. Ao princípio olhou-a distraído, mas pouco a pouco, a atenção empenhara-se naquilo, como se em objeto de grande monta. A distância não lhe permitia distinguir o que fosse.
— É uma nódoa de umidade, decerto, disse Daniel consigo, ou não... é um inseto talvez... Mas não se move? Seja o que for... E desviou os olhos. Daí a pouco estava outra vez a olha r para lá.
— É um inseto, é... mas tão imóvel!

Não pode deixar de soprar-lhe, ainda que sem probabilidade nenhuma de o atingir, pela distância a que lhe ficava. A mancha negra não se movei.
— Não é inseto, pensou Daniel. E outra vez retirou a vista daquele ponto, para, passados instantes, a levar de novo lá.
— Mas a forma é de inseto... E ergueu meio corpo e estendeu a cabeça para o sítio. Não pode ainda distinguir o que fosse aquilo. Tornou a deitar-se, simulando a resolução de se não importar mais com o problema.

Mas a curiosidade irritada subiu a ponto de o constranger a levantar-se. Aproximou-se então da mancha da parede, e viu que era uma mariposa escura, em um daqueles estados de imobilidade, em que por tanto tempo se conservam às vezes. Daniel não resistiu à tentação de lhe tocar de leve nas asas; a mariposa fugiu. Perseguindo-a, chegou até a janela. Neste momento passava no pátio um dos mais velhos criados da quinta. Daniel chamou-o e mandou-o subir. Daí a instantes, entrava-lhe o homem no quarto. Daniel deitou-se e disse-lhe que falasse. O criado não sabia em quê. No que quiseres; mas fala-me para aí.

O velho olhou para a janela, olhou para o ar, e disse: — Temos vento; aquelas nuvens brancas costumam dar nisso: — Tu sabes o que é o vento? Disse Daniel, espreguiçando-se: — O vento? O vento é assim uma coisa... como um... assopro, respondeu o homem.
És um asno. O vento é uma corrente de ar, produzida pela desigual distribuição de temperatura na atmosfera. E Daniel dizendo isto, entre dois bocejos, olho para o criado divertindo-se em estudar-lhe no rosto o efeito da definição científica. O homem abriu a boca, sorrindo de dúvida.
— Mas aposto que o menino não me sabe dizer uma coisa?
— O quê? Perguntou Daniel, que estava a achar sabor ao diálogo.
— Donde vem o vento e para onde vai? Esta pergunta, análoga a outra que, ainda não há muito se fez em lugar mais sério, embaraçou algum tanto Daniel.
— E tu sabes, Antônio?

— Eu? Não que nem nenhum matemático. E diga-me, sabe também o que são estes sinais que aparecem, às vezes, como a semana passada?
— Que sinais?
— Pois não viu aquela noite da semana passada a Lua a sumir-se, que era uma coisa de estarrecer?
— Ai, isso era um eclipse.
— Um eclis? Pois um eclis, seria. Mas o que é aquilo?
— É a Terra.
— Terra!
— A Terra, a Terra, a sombra da Terra, do mundo.

— A sombra! Então... nós estamos de baixo e a Lua de cima, como lhe havemos de fazer sombra? Essa não é má! Daniel, para se distrair, quis experimentar até que ponto podia fazer compreender a este homem a ideia do fenômeno físico em questão. Alguma coisa se há de tentar na aldeia, em uma longa tarde de estio.
— Imagina tu aquela janela, o Sol; eu a Lua; tu a Terra. Ora bem; põe-te a andar pela esquerda.
— Mas se a janela é que é o Sol, que ande a janela.
— Não há tal; pois a Terra é que anda.
— Como! Então o Sol não é que anda?
— Não. O Sol está parado.
O criado deu uma risada.
— Muito obrigado. Para ver o Sol andar, olhe que não é preciso ir ao Porto. Vê-se mesmo de cá. O passatempo principiava já a enfastiar Daniel.

Veio interrompê-lo a propósito uma criança de nove anos, filha do seu interlocutor, a qual tendo ouvido a voz dos pais, entrou sem cerimônia, pelo quarto adentro. Ao ver, porém, Daniel, parou como hesitando.
— Vem cá, pequena, vem cá, bradou-lhe Daniel, que naquele momento recebia com prazer toda a qualidade de diversão. Não tenhas vergonha, vem cá. Toma um biscoito.

A pequena ganhou ânimo com a oferta, e dentro em pouco estava a comer biscoitos, familiarmente sentada junto de Daniel.
— Então como se diz? Perguntava o pai; e, como ela não respondesse, respondeu ele próprio: — Muito obrigado, Sr. Daniel.
— Tu como te chamas, pequena? Perguntou Daniel.
— Rosa.
— Uma criada de V.S.ª emendou o pai. A pequena dispensou-se de repetir.
— Olha, continuou Daniel, tomando-a ao colo, dize-me uma coisa, que é da tua mãe?
— Está em casa.
— E tu gostas dela?
— Gosto.
— Gosto, sim senhor, emendou o pai.
— E de teu pai?

A criança olhou para o pai e pôs-se a rir: — Dize assim, disse-lhe este: Também gosto, sim senhor.
— Também gosto, repetiu a pequena, suprimindo, como uma inútil excrescência, o resto da frase.
— Mas o teu pai é um tratante.
A criança sorriu: — Dize: não é, não senhor, ensinou-lhe o pai.
— Não é, repetiu a criança.
— É, é...
— Não é; vossemecê é que...
— Ah! atalhou o velho. Feia! isso não se diz.
— Tu sabes adivinhas, Rosa? Perguntou Daniel, rindo.
— Sei.
— Sim, senhor – corrigiu ainda outra vez o velho.
— Ora vamos lá a uma adivinha. A pequena não se fez rogar.

— Então diga lá o que é esta: Altos castelos. Verdes e amarelos Isso é de certo a casa de um brasileiro  respondeu. A criança pregou-lhe uma risada, e toda satisfeita, exclamou: — Boa! É uma laranjeira.
— Ah! Ninguém havia de dizer. Vá lá outra.
— Que é, que é, que? Alto está, e alto mora.

Todos o veem que o pai da pequena lhe fazia não sei que sinal com o dedo. Seguindo a direção que lhe pareceu indicada assim, Daniel parou a vista em um pinheiro longínquo, e disse: — É um pinheiro. Pai e filha deram uma risada.
— É um sino, disse a pequena.
— Pois nem viu que eu apontava para a torre.
— E esta, continuou a criança: Mil marinhinhos, mil marinhões. Dois parafitas e quatro chantões? Isso agora é que tem mais que se lhe diga. Que língua vem a ser essa? Marinhinhos e marinhões? e que mais? Que mais?
— É um boi, é um boi, respondeu a rapariga, a quem faltava a paciência para ver estar a pensar muito tempo.
— Um boi! Sempre quero saber como é que isso é um boi. Mil marinhinhos, um boi?
— Mil marinhinhos, são os pelos.
— Ah? E mil marinhões?
— São os pelos maiores, respondeu o pai.
— Dois parafitas são as gaitas, continuou a filha.
— E então, provavelmente, os quatro chantões... ia a dizer Daniel.
— São as pernas, concluíram pai e filha.
— Pois essas, de todas é a mais bonita, disse Daniel, que efetivamente, no estado de espírito em que se achava, encontrou certo sainete de originalidade no disparatado enigma, tão popular no Minho. Neste tempo entrou Pedro no quarto; o criado velho retirou-se, levando a filha consigo, e os dois irmãos ficaram sós.

Capítulo XXV

Pedro era caçador e dos apaixonados. Dizendo eu isto, já o, leitor, se não é um homem fadado por Deus para felicidades excepcionais cá na Terra, em qual assunto falaria ao irmão o primogênito de José das Dornas. De fato, quem haverá aí que, por mais de uma vez, não tenha visto irem-se-lhe duas horas seguidas pelo menos, duas horas de tempo preciosos a escutar uma dessas intermináveis descrições de caça, de astúcia de galgos e perdigueiros, de singularidades de tiros; de manhas de lebre, galinholas, garças e perdizes, com que Necrodes desapiedados fazem cair sobre seus irmãos em Adão todo o peso da sua paixão venatória?

Ao princípio acolheu Daniel de bom grado a nova diversão que lhe oferecia o assunto, ao qual não era adverso também. As duas primeiras aventuras de caça escutou-as com atenção não afetada. Tratava-se de uma caçada de lebres, na qual Pedro obrara maravilhas, com a coadjuvação de um cão, de que ainda agora sentia saudades. Era um longo romance, que daria para muitos capítulos. Permitam-me que lhes registre aqui ao menos o argumento, o qual, mutatis mutandis, serve para todos do mesmo gênero.

De como se originou o projeto da caça. O que se disse por essa ocasião. Escolha da época. Princípios gerais que devem regular o caçador nessa escolha Descrição da partida. Enumeração e descrição dos caçadores.  Apreciação filosófica das suas qualidades venatórias. Divagação sobre os dotes indispensáveis ao bom caçador. Condições meteorológicas da madrugada, no dia da surtida. Reflexões sobre a influência dela nos destinos prováveis da empresa; esboço topográfico do campo de ação. Impaciência dos cães. Sinais característicos de um cão de boa raça.

Projeto inédito do narrador sobre a educação canina. Algumas considerações sobre a melhor qualidade de espingarda, de pólvora e vestuário mais acomodado ao gênero de caça em questão. Exame do problema: "se é preferível almoçar antes da partida ou no campo" Primeiros indícios de caça. Alvitres dos caçadores. Análise crítica de cada um dos alvitres, concluindo pela demonstração da vantagem do narrador, o qual prevalece sempre. O primeiro tiro e a primeira lebre morta. O autor atribui, com a possível modéstia, a glória de ambos a si próprio. Novos episódios, alguns lances felizes dos companheiros e muito mais desastrados. De como o autor deu, em certo caso, prova de grande prudência, contemporizando, e em outro, soube ser arrojado, como devia. Notável contraste nisto com todos os companheiros.

Descrição de um aguaceiro, trovoada ou vadeação de um rio, e efeitos próximos e remotos que teve sobre os caçadores. De como se jantou. Amarguras estomacais e provações musculares. Campanha da tarde. Bom emprego do último tiro. Dificuldades que trouxe a noite. Confusão dos companheiros e frieza de ânimo no autor. Considerações sobre a maneira de se orientar no caminho um caçador perdido. Algumas palavras sobre o melhor sistema de cozinha a caça. Preceitos do regime alimentar do cão. Recapitulação de tudo quanto se disse. Peroração em honra da casa em geral e da caça da lebre em particular. Transição para outra história.

Todos estes capítulos, difusamente desenvolvidos, ouviu portanto Daniel, com mostras de curiosidade. A terceira história, porém, já o mais indiferente; a quarta recebeu-a com bocejos, a moda de comentários; a quinta com impaciência manifesta; a sexta com inquietação; a sétima com horror, horror que foi crescendo gradualmente até a duodécima. Pedro fazia então o elogio fúnebre do perdigueiro, que, havia um mês, lhe tinha morrido.

— Olha que era um animal aquele, Daniel, que parecia que entendia uma pessoa! Eu nunca vi bicho mais fino! Se tu o visses no monte! Aquilo era um azougue. Um dia, tinha ido, eu, o Luís do mestre-escola e o Francisco do alferes.
— Isto que horas serão? Perguntou Daniel, a ver se desviava de si a história iminente.
— Vai nas três, respondeu Pedro, e continuou: Mas íamos nós todos... aí, é verdade, ia também o Domingos cabo mor... oh! mas esse não mata um pardal. Tem aquele diabo um costume...
— Que insuportável calor! bradava Daniel, tão pouco à vontade no leito, como se fora de Procusto.
— Hoje está quente, está, concordou o irmão, e continuou: Mas tem aquele diabo um costume, que por mais que eu lhe diga, não é capaz de perder. Daniel colocou a almofada dos travesseiros sobre os ouvidos para não ouvir.
— O costume é o seguinte: Tu sabes que no tempo das perdizes... Foi neste momento que entrou o reitor no quarto.

— No tempo as perdizes, no tempo das perdizes, tanto mentes, quanto dizes. É manha velha de caçador. Gabo-te os vagares, Pedro! Nem que um homem viesse a este mundo para andar de arma, ao ombro e polvorinho a tiracolo, por montes e vales, tiro aqui, tiro acolá, vida de galgo, atrás da lebre; e a casa por aí sabe Deus como!
— Isto era para conversar um bocado, disse Pedro, sorrindo a esta objurgatória do padre. Daniel ia erguer-se; o reitor não lho permitiu.
— À vontade, à vontade; quem acabou de ouvir uma ladainha de Santo Humberto, como eu imagino... ainda se fosse só imaginar; como eu infelizmente, sei por experiência também, não deve se sentir com grandes forças para se ter em pé. Daniel sorriu.

— Mas veja lá, Daniel, continuou o padre; veja você este seu irmão. Que homem de casa aqui se está preparando! Esquecido a taramelar, e o trabalho da eira entregue aos criados que, quando eu passei, bem pouco se cansavam com ele. Tudo vai ao deus-dará nesta casa, depois que o maldito vício da caça virou a cabeça a este homem! Olha que um chefe de família, Pedro, não é só responsável por si, mas também por toda a sua gente, parentes e criados. Ele é que deve dar o exemplo. e eu, para te dizer a verdade, não gostei nada de ver aquela doida da Maria, lá embaixo com os meliantes dos teus criados, que só sabem tanger violas e dançar, como ainda agora o fazem. Eu, apesar de a coisa não ser comigo, que não sou dono da casa, sempre lhes fui ralhando, para de todo não perder o tempo. Agora tu...

— Pois os vadios estavam a cantar, e com o trabalho por fazer?
— Boa dúvida! Onde o patrão dorme, ressonam os criados. E fazem muito bem.
— Ora eu lhes vou ar já a cantiga. E, distraído da sua paixão favorita, Pedro saiu do quarto, com direção à eira.
— É um bom rapaz! disse o reitor ao vê-lo sair.
— Isso é. Pedro há de vir a dar um excelente pai de família, acrescentou Daniel.

— Para isso lhe basta o grande fundo de moralidade daquela alma! replicou o padre, indo buscar uma cadeira que aproximou da cabeceira do leito, no qual Daniel, a instâncias dele, se conservava ainda. Daniel seguia com a vista e os movimentos e gestos do padre, e suspeitava que ele tinha alguma coisa a dizer-lhe.
— A moralidade, continuava este, é a primeira condição para a felicidade do homem. Como pode querer que o respeitem, o que não sabe respeitar os outros, nem se respeitar a si próprio?
— Temos sermão, pensava Daniel. Onde quer ele chegar?

De repente o reitor, como se lhe acudira uma ideia natural: — É verdade, ó Daniel, então você tem casamento contratado, e não dá parte à gente?
— Eu? Casamento? Exclamou Daniel, deveras admirado, e sentando-se no leito.
— Casamento, sim. Ainda agora me asseguraram.
— E quem é a noiva que me destinam?
— Uma vizinha sua. É aqui a filha do João da Esquina.
— Ah! Isso sim, disse Daniel, sorrindo-se e deitando-se outra vez.

— Isso sim? Não leve o caso a rir, que o negócio é muito sério. Porventura não haverá fundamentos para a notícia que me deram?
— Eu tenho ido a casa dela, é verdade.
— Ah!
— Mas... como médico...
— Não está má medicina a sua! Então que tratamento lhe aconselhou?
— Confortativo, respondeu Daniel gracejando.
— Ah! e o boticário entenderia as receitas que escreveu?

— Nem todos os conselhos médicos precisam do auxílio do boticário. Os banhos do mar, os passeios, os leites de jumenta, e as diferentes prescrições do tratamento moral, por exemplo.
— Estou vendo que foi um tratamento moral que fez.
— Exatamente.
— Olhem que cegueira a do João da Esquina, e a de seu pai, e a minha até, que não vimos que era uma carta de guia para bom caminho, uns mandamentos para a salvação do corpo, e não sei se da alma também, o que ainda há pouco lemos!
— O quê? Pois leram? Perguntou Daniel com vivacidade, e erguendo-se outra vez.

— Lemos, sim. Mas não entendemos. Veja lá: a mim pareceu-me aquilo uma coisa desaforada; e ao João da Esquina, então? Esse não descansou enquanto não teve de nós a promessa solene de que o obrigaríamos, a si, uma reparação. Daniel tinha já os pés no pavimento.
— Uma reparação? Por quê? A quem?
— Olhem que inocência! precisa talvez que eu lhe responda?
— E que espécie de reparação hei de eu...
— A única devida a uma rapariga, a quem...
— A quem?
— Cuja boa fama se perdeu!

— Então acusam-me de ter perdido a boa fama daquela menina, e querem constranger-me talvez a casar com ela! exclamou Daniel sobressaltado, e pondo-se a pé num ímpeto, como se o picasse uma víbora.
— Quem mais o constrangerá há de ser a consciência, que ainda não emudeceu de todo em si.
— Não constrange, não. Não me julgo moralmente obrigado a reparação de qualidade alguma. A menina Francisca... tem uma cabeça... bonita, na verdade, realmente bonita.
— Está bom, está bom. Que tenho eu com essas bonitezas? Isso não vem agora a nada.
— Bonita, digo eu, mas leve, leve como uma bola de sabão, continuou Daniel.
— É defeito de muita gente.

— Achei-a triste, tão triste por ser trigueira... veja que doidice aquela! que entendi... não entraria isso nos meus deveres de médico? Entendi que a devia curar. Ora, pensando que para este efeito valeria mais um galanteio do que todas as drogas medicinais...
— Então, então... disse o reitor, um pouco despeitado com o tom leviano de Daniel que deu agora em gracejar comigo?

— Não gracejo. É que realmente o meu procedimento... não digo que fosse de uma sisudez exemplar, mas não merece as cores negras com que lho pintaram, nem reclama as medidas extremas e violentas que me propõem. Um casamento impossível!
— Impossível! O que aí vai! Não o fazia tão fidalgo! Com que então...
— Olhe, Sr. Reitor, disse Daniel, tomando ar mais sério; vou falar-lhe com toda a sinceridade. Eu sou bastante leviano; conheço que o sou. De ordinário, não me canso muito a calcular consequências, antes de dar um passo qualquer. Caminho de olhos fechados em muitos atos da vida, e sobretudo quando só eu lhe posso vir a sentir os efeitos maus. Mas há uma coisa em que não me costumo a pensar levianamente. É no casamento. Se um dia me vir casado...
— Rezarei a todos os santos por sua mulher? Estou certo que será bem preciso.

— Se um dia me vir casado, suponha que encontrei uma mulher, por quem sinto alguma coisa além do amor, por quem sinto o respeito e a confiança que se devem a uma mãe de família. Não tenho sido muito escrupuloso em contrair certa ordem de ligações, é verdade; porém nunca me lembrei de fazer dessas mulheres que amei, nem quando a paixão me cegava mais, os anjos familiares a quem entregamos o nosso futuro inteiro. Neste sentido tem-me espantado o arrojo de muitos. E não é isto tenção formada em mim contra o casamento; mas é que acho muito grave a missão de esposa e de mãe, para a entregar assim levianamente em quaisquer bonitas mãos, só porque são bonitas.

— Isso lá é verdade, disse o reitor, que não previa que nestas palavras aprovadoras assinava sua capitulação. Daniel, ainda que tivesse sido sincero no que dizia, não desestimou ver assim o reitor quase voltado para o seu lado e prosseguiu com mais ardor: — Ora quem quiser que tente fazer daquela menina, que sabe os verbos, uma boa mãe de família; eu por mim é que não farei a experiência. Era uma tremenda responsabilidade que tomava para com meus futuros filhos.

— Não, não vamos também agora a fazer da pequena pior que o que ela é, observou o reitor. A cabeça é um pouco estouvada, sim, mas o fundo é bom, e passados anos... Mas, homem dos meus pecados, se você pensa assim e nisso não serei eu que lhe diga que pensa mal para que se mete nestes enredos? Para que dá ocasião a que os outros se julguem com direito a...
— Tem razão, Sr. Reitor. Eu não me quero apresentar como inocente. Digo humildemente: precavi. Mas que quer? Onde se encontram as facilidades... nem todos tem força para se vencer. E depois, olhe que nos faz falta deveras a capa egípcia de José, para a sacudir dos ombros em ocasiões de aperto.
— Adeus! Aí torna com as suas! disse o reitor, custando-lhe a disfarçar um sorriso.

O certo é, porém, que o padre estava aplacado. Tranquilizou Daniel, contando-lhe tudo que tinha sucedido. Fez-lhe um longo sermão de moral, afirmando-lhe no fim que, se não fosse por saber a família Esquina "useira e vezeira" nestas tentativas de especular casamentos de vantagem, e nem sempre por meios justificáveis, seria menos indulgente. Daniel fez voto de emenda, e protestou ser aquela a sua última rapaziada. Graças, porém, à loquacidade da Sr.ª Teresa a história dos versos transpirou e causou escândalo na aldeia. Não se falou em outra coisa, durante algumas semanas. Os pais olharam Daniel com desconfiança; os rapazes, com ciúmes; as raparigas, com curiosidade. O trio de línguas da casa dos Esquina cantou a palinódia a respeito de Daniel, e com valentia não menor que a empregada nas loas, com que primeiro o tinham celebrado.

Por todos os lados da aldeia ressoaram os coros. O nível da reputação de João Semana subiu no conceito público. Daniel confirmou sua reputação de libertino e de homem perigoso. Ele é que era indiferente a isso tudo. Dava-lhe poucos cuidados o futuro de sua vida clínica assim tão ameaçado. Continuava gozando, com resignação, se não com prazer, os ócios daquele viver de morgado. As suas maiores distrações eram o passeio, a caça e a pesca. Na menina Francisca já não pensava. Desprestigiou-a de todo aquela conspiração matrimonial. Do ódio, com o qual daí em diante o honraram os progenitores da menina, nunca ele se lembrou.

Capítulo XXVI

Quando contaram a João Semana o que se passou entre Daniel e a família dos Esquinas, o velho cirurgião não o quis acreditar. Teve, porém, de ceder à unanimidade das opiniões, e então não se fartou o nosso bom homem de benzer-se, de espantado. João Semana era intolerante em coisas de moral, e principalmente médica. Para bons ditos, anedotas e contos, ainda que às vezes temperados com o sal de Bocácio, de La Fontaine e da rainha da Navarra, tinha grande indulgência o velho clínico, que, por toda parte, os contava também, sem escolha de auditório, nem de ocasião; mas a menor aventura que de longe sequer se aproximasse do gênero das que ele fazia crônica de tão boa vontade, dificilmente encontraria remissão no seu tribunal. Se o réu era um colega, crescia então de ponto a austeridade. Por isso o procedimento de Daniel encontrou nele um severíssimo juiz.

Forçoso é, porém, dizer que uma circunstância havia em todo aquele episódio, que, mais que nenhuma, o escandalizava. De fato, conquanto manifestamente não o dissesse, o que em extremo o irritava era Daniel ter caído na fragilidade de fazer versos. João Semana não tinha em grande conta de coisa séria a poesia; e então poesia daquela? Inda se fosse um soneto, vá. O soneto tem um aspecto sério, grave e discreto, que não derroga a dignidade de ninguém. Qualquer desembargador, cônego, ministro de estado honorário, ou lente jubilado quatro das mais sérias entidades sociais, pode fazer um soneto, sem agravo da sisudez oficial; mas aquela poesia travessa, ligeira, folgazã, de Daniel, poesia de um gênero novo para João Semana, poesias sem musas nem Apolo, fê-lo sair fora de si. Joana teve que o ouvir naquele dia.

— Aí está o que você faz, aí está, dizia ele, por sua causa, pela desastrada lembrança que teve de mandar aquele doido em meu lugar, é que tudo isto sucedeu. Sempre tem lembranças!

— Deixe lá, Sr. João, olhem a grande coisa! respondia a criada. Ora! afinal de contas não passa de uma brincadeira. Fosse a rapariga seriazinha, e não tivesse aquela cabeça que nós todos sabemos, que já nada disso acontecia.
— Ela não é que tem a culpa.
— Não tem? Pois quem? Ele? Não que ele é rapaz. Nada lhe fica mal.
— Que diz você? Nada lhe fica mal? Então um cirurgião ou médico pode lá ter essas liberdades? Onde é que se viu um homem da nossa posição fazer versos? Não tem vergonha.
— Ora adeus! São rapazes.
— E a dar-lhe! São rapazes, são rapazes, e acabou-se. Boa desculpa! Essas e outras é que deitam a perder a classe.
— Mas que perde o Sr. João Semana com isso?
— Que perco?

O facultativo, por mais que fez, não conseguiu efetivamente dizer o que perdia; por isso passado algum tempo, continuou: — Não é bonito aquilo, não; não é.
— Pois sim, não digo que seja; mas com os anos passa-lhe o fogo. Verá.

Em geral, nos tribunais femininos os delitos da natureza daqueles de que João Semana acusava Daniel, são julgados como Joana acabava de julgar este. Grande magnanimidade para com o homem e severo rigor para com a mulher. Entrem lá na explicação do fato os que tiverem estudado. Eu, por mim, registro-o apenas. Houve longa discussão entre a criada e o amo, a este respeito; discussão que não deu em resultado a vitória a nenhum dos contendores, fato vulgar em quase todas as discussões. Ela suscitou, porém, em Joana o desejo de se informar melhor das particularidades do delito e da extensão dele. Em cumprimento desse desejo, tomou a criada do João Semana a sua capa de pano e partiu, logo que pôde, a colher noções.

Depois de muito andar, de muito perguntar e ouvir, e de muito ralhar, em defesa de Daniel, ainda que de si para si, a lisonjeasse um pouco a comparação, que todos estabeleciam entre e João Semana, em grande proveito do último, deu consigo a Sr.ª Joana... onde? Em casa das duas pupilas do reitor. Foi Margarida quem lhe falou. Passados os usuais cumprimentos, e depois de tentar recusar o oferecimento do cálice de vinho que Margarida lhe fazia, e que afinal sempre aceitava, trouxe a Sr.ª Joana à conversa o assunto que a procurava.

— Então, diga-me cá uma coisa, menina. Que lhe parece o nosso cirurgião novo. Margarida fitou os olhos em Joana, como para lhe adivinhar nas feições o sentido da imprevista pergunta: — Que me parece? Que me há de parecer?
— Sim; não acha que está um bonito médico para uma rapariga doente o mandar chamar? Continuou Joana, sorrindo. Ignorando ao que a velha criada de João Semana queria aludir, a pupila do reitor, a seu pesar, sobressaltou-se com esta interrogação.
— Mas por que me pergunta você isso?
— Pois não sabe? Ora a menina, há de andar sempre fora deste mundo! Aposto que não sabe o que por aí vai com Daniel?
— Não, respondeu Margarida, sem já, poder disfarçar a sua curiosidade, à qual certa inquietação, por ela mesmo mal explicada, se vinha misturar.
— É o que eu digo! tornava Joana.
— Mas então que há? A Sr.ª Joana com a melhor boa vontade informou Margarida da história da menina Francisca; já se sabe com muita severidade de comentários para ela, e a costumada indulgência para com Daniel.

— Aquela bandeira de torre, dizia ela; volta-se para onde lhe sopram. Louvado seja Deus! Não há olhos para que se não enfeite. E ainda o acusam a ele! Faz muito bem: é rapaz. Eu sei que para cirurgião devia ter mais juízo; devia, mas ora! Hoje em dia, já se não repara nessas coisas. E depois, ele é uma criança e se a Chica não lhe desse trela... estou que se não atreveria a... Em todo o caso, menina, é sempre bom trazê-lo de olho. Aquela cabeça, benza-a Deus, não vale grande coisa, não. Sempre assim foi. Como a Clarita lhe casa agora na família, é natural que ele venha por aqui. Cautela menina! Eu bem sei que com certa gente não faz ele farinha, mas...

Margarida forcejou por sorrir às recomendações de Joana, mas conseguiu-o mal. Aquelas palavras lhe atravessavam o coração. Afligia-a a leviandade de Daniel. Estava-lhe, pois, destinada a cruel provação de um desengano destes? As almas delicadas, como a dela, sofrem intensamente, sempre que veem se projetar uma sombra na imagem daqueles, a quem as suas afeições iluminavam de ideal. Ver abaixar-se à região das paixões menos elevadas e nobres, o coração que se tinham costumado a fantasiar, palpitando-o só de generosos instintos, é para as ferir de desalento, ou para as atormentar de desespero.

Joana continuava: — A menina ri-se! É o que lhe digo. Não lhe deem muita confiança. Não que ele tenha mau coração. Credo! Conheço-o desde pequeno. Aquilo não faz mal a uma pomba, mas enquanto ao mais... O Padre Santo Antônio nos acuda! Eu digo, que se eu fosse a rapariga... Mas... que tem, que está tão falta de cor, menina? Não está bem? Que sente?

— Nada, respondeu Margarida, procurando mostrar-se tranquila. Não tenho nada. É que está aqui muito abafado... E, levantando-se, caminhou para a janela, a disfarçar a sua perturbação e a respirar o ar mais livre, que chegava dali, batido pela folhagem das árvores.
— Não que olhe que sempre hoje está um calor! disse Joana. Mas isso também há de ser debilidade. A menina foi sempre de pouco comer. Beba uma água de caldo, que isso lhe passa. Ou serão vertigens? Olhe que não é outra coisa. Eu também as tenho e daquelas! Às vezes parece que se me parte a cabeça. É como se me trupitasse cá dentro um regimento de cavalaria. O que é muito bom para isso... sabe?

Não se pode calcular para que longa enumeração de receitas tomava fôlego a Sr.ª Joana, cujos conhecimentos terapêuticos a convivência com João Semana enriquecera, se Margarida a não interrompesse, dizendo-lhe da janela: — Mas quem sabe lá se a inclinação do Sr. Daniel por essa rapariga é sincera? E, ao dizer isto, passava a mão pela fronte, como se de fato a tivesse tomado uma vertigem.
— Boa! exclamou Joana. Sempre tem coisas! A menina então não sabe nem quem é o Daniel, nem a Chica da Esquina.
— Então ele é assim incapaz de gostar de alguém? Perguntou Margarida, com afetada indiferença.

— Ele? Ele gosta de todas. Lá por isso... Vá perguntar ao sobrinho do regedor, que viveu com ele quando andou lá no Porto a estudar para padre... e olhe que também saiu um padre! de se lhe tirar o chapéu; não tem dúvida nenhuma... mas lhe vá perguntar quem é o menino. Gostar da Chica? Neste ponto a Sr.ª Joana fez um gesto, muito de seu; fungou ruidosamente, torcendo o nariz, fechando o olho esquerdo e prolongando o lábio inferior – conjunto de sinais fisionômicos, que valia um discurso.

Em seguida continuou: — Olhe que ele me soube muito bem-dizer, no outro dia, que só lhe fazia conta mulher que tivesse cem mil cruzados e que a queria da cidade. E ia agora gostar da Chica? estava indo! A menina está a ler. Esta conversa torturava Margarida. Joana sem o saber, era de uma crueldade inquisitorial. A sua loquacidade prometia longa duração, se as badaladas do meio dia, na torre da igreja paroquial, a não viessem pôr em sustos de chegar a casa depois de seu amo.
— Aí, meio dia já! Senhor me dê paciência, exclamou ela, juntando as mãos. E eu que tenho o jantar tão atrasado! Adeus, menina, adeus, sem mais.

E tomando, toda açodada, a capa que tinha pousado, e ajeitando à pressa o lenço engomado que trazia na cabeça, ia a sair, rosnando a oração meridiana: — Bendita e louvada seja a hora em que meu Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, padeceu e... Mas, ao transpor o limiar da porta, achou-se inesperadamente em frente de Clara, que a obrigou a parar. Segundo o costume, vinham radiantes de alegria as simpáticas feições da irmã de Margarida.

Ao ver Joana, saiu-lhe dos lábios uma exclamação de prazer: — Viva! Já não há quem a veja, Sr.ª Joana! Eu até principiei a rezar-lhe todas as noites por alma um padre-nosso e uma ave-maria. Joana, a quem tanto quadrava este gênio folgazão e descuidado de Clara, tinha por costume fingir, na presença dela, que o não podia sofrer; mas o jeito que, a seu pesar, lhe tomava a boca, inutilizava-lhe a dissimulação.

— Olhem os meus pecados! disse ela, voltando para a sala. Inda mais esta! Boa te vai? Estou bem aviada! Clara pusera a olhá-la com atenção e espanto afetado!
— Então que tafularia é esta? Lenço novo de cassa! Já reparaste, Guida? E arrecadas! Ai! Estou para morrer. O mundo perde-se! Agora é que o digo.
— É para que você veja, disse Joana, custando-lhe a manter a serenidade.
— Ó Joana, você irá casar-se?

— Olhem, olhem... ela aí vem com as suas tolices! Tenha juízo.
— Não, mas... sério, isto tem que se lhe diga... E penteada! Ai, e penteada!
— Que penteada? que penteada? Cuida que todas são como ela. Sempre está uma mulher casada.
— Ainda não, se faz favor.
— Pobre do homem! melhor sorte merecia aquele Pedro, que tão bom mocinho era... e é.
— Ah! Como ela diz isto! Querem ver que... Queres tu ver Guida, que... Pois será com ele? Veja o que faz Joana, olhe que eu...
— Adeus! Sabe o que mais? Não estou para a aturar. Deixe-me ir embora, ande.
— Embora? Isto é que não vai daqui tão cedo.

— E Jesus, Senhor! Deixe-me ir, que é meio dia, e faze-me tarde. O meu amo está a espera... Valha-me deus! Ora o que me havia de aparecer?
— O seu amo? Ainda há pouco ele ia para a banda dos Casais.
— Num momento põe-se em casa. Deixe-me ir menina.
— Não vai.
— Olhem que praga! Então? Isto não tem graça nenhuma. Não vê ali a Margarida como tem juízo.
— Venha com isso a ver se me mete em brios.

— Ai, cuida que eu tenho os seus cuidados? menina, deixe-me ir embora. Que seca!
— Deixe-a ir, Clara, deixa, que pode fazer falta, disse por fim Margarida, que as estivera escutando distraída.
— Vá lá; em atenção à Guida. Mas há de vir então pelo quintal que lhe quero dar um ramo para o Sr. João Semana.
— Não que ele está agora mesmo à espera dos seus ramos; nem dorme com a lembrança.

— Há de levar-lhe um ramo de meu mando. Já disse. Amores antigos não esquecem.
— Olhe, deixe antes isso para o cirurgião novo, que esse é que não lho enjeita.
— Quem? o Sr. Daniel! Ai, é verdade... Tu sabes, Guida? Disse Clara, rindo. A Chica do tendeiro...
— Sei, sei, respondeu Margarida, levantando-se com vivacidade.

— Sempre tem uma cabecinha o tal senhor meu cunhado! Mas eu por mim sou ainda pelo João Semana. Olha, Joana, diz-lhe você que me faças uns versos também? Assim como os do outro.
— Ai, vai já fazê-los; pode esperar por isso.
— Uns versos como os tais da... trigueira... Não eram os da trigueira?
— Sim, sim; tudo se há de arranjar.
— É verdade, que já sei uns que serviam.

E, saindo com Joana para o quintal, Clara pôs-se a cantar:

Morena, morena.
Dos olhos rasgados.
Teus olhos, morena.
São os meus pecados.

Capítulo XXVII

Margarida ficou só na sala. Viera aumentar-lhe a turbação, em que estava já, esta cantiga de Clara. Andava-lhe muito ligada a ideias do passado, para a poder escutar com indiferença. Aquela toada era para Margarida como as palavras misteriosas que em certos contos de fadas, se diz terem o condão de evocar dos páramos mais agrestes, jardins, florestas e palácios encantados; povoara-se-lhe a imaginação ao ouvi-la, um pouco de recordações ao princípio, e depois muito de fantasias...

Encostada ao peitoril da janela, e apoiado o rosto nas mãos, assim ficou por muito tempo com o olhar vago e o pensamento mais vago do que o olhar ainda. Se o espírito, ao sair dessas exaltadas abstrações, se volta de súbita para as realidades do presente, o desencantamento é fatal e amargo. Entra-nos então no coração um profundo desgosto da vida, e como que se nos quebram as forças para continuar a ação. Estava passando por um desses estados o espírito de Margarida. As vozes joviais da irmã e os risos de Joana chegavam-lhe aos ouvidos; e afligiam-na aqueles sinais de alegria. As vivas cores das rosas e dos cravos atraiam-lhe a seu pesar, as vistas para os alegretes do jardim, e impacientavam-na; quase lhes queria mal por aquele aspecto festivo.

Quando, em épocas de provação para a alma, a sós com os nossos pesares e as nossas lágrimas, escutamos lá fora o ruído ou divisamos o esplendor das festas alguma coisa estremece dolorosamente em nós. Sentia-o Margarida naquele instante, e tanto lhe crescia o mal que, para fugir-lhe, ergue-se e passeou com agitação por algum tempo na sala.

— E por que não hei de eu também distrair-me, como se distrai a Clara? Pensava ela. Virão já de nascimento estes gênios assim? Mas como se há de acreditar que os Senhor queira fazer cair sobre a criatura que ainda não o ofendeu, este grande castigo de uma tristeza tamanha? Não, não pode ser. Antes creio... isso sim, que o gênio de cada um toma a feição da vida, que em criança se teve... Uma pessoa, afinal, é como uma árvore; enquanto nova, é que se pode dobrar, que depois... Ali estão aqueles cedros que, de pequenos, Clara vergou em arco; ganharam essa forma, e hoje já não se erguem direitos como os outros. É assim. Quem abriu os olhos, começou a pensar, sem ver grandes alegrias em volta de si, pode lá aprender a sorrir? As crianças então, que tudo aprendem dos outros, a falar, a andar, a brincar... como não aprenderiam também alegria ou a tristeza?

Nisto fizeram-na ir à janela algumas vozes infantis. Eram quatro crianças, quase nuas, que rodeavam uma pobre mulher, coberta de andrajos e macilenta. E elas, apesar de sua nudez e dos rostos pálidos, riam e brincavam em redor da mãe, que nem tinha pão para lhes dar. À porta das duas irmãs estava sempre sentada a caridade. Não se fechou vazia ainda desta vez a mão da indigência, aberta a implorar por ali. A pobre mãe chorava de gratidão ao retirar-se; as crianças brincavam ainda.

E calou-se por algum tempo; depois prosseguiu a meia voz: — Pois sim, mas há uma riqueza que elas têm e eu não tive. Aquele olhar da mãe. Não vi eu sorrir-lhes a mãe? Coitada, no meio da sua desgraça ainda não desaprendeu de sorrir; precisa de risos para os filhos. É ver como eles olhavam para ela. É isso... deve ser isso.

E tornava a passear no quarto; depois parando junto da janela ao lado do quintal, continuou como antes: — Deve ser isso, sim. No meio da pobreza, no meio da miséria, pode nascer ainda a alegria, mas é preciso que haja um olhar de afeição para a criar... um olhar de mãe, sobretudo. Ai, um olhar de mãe deve ser para agente quase como um raio de sol para as flores. É ver aquela rosa, que nasceu acolá, à sombra do muro. Como é desmaiada! Enquanto que as outras... Bem faltas de cuidado cresceram por entre a horta aquelas papoulas vermelhas; quem pensava nelas? Mas lá ia o sol animá-las... Clara teve uma mãe que estremecia, teve o seu raio de sol... eu, de bem pequena, perdi a minha... Quem tão cedo se viu órfã, como há de ser para alegrias?

Neste ponto, entrou na sala uma rapariga, que as servia, trazendo um ramo de flores na mão.
— Veja menina, disse ela. Veja o bonito ramo que eu trouxe do campo de baixo. Vou já, já daqui pô-lo ao Santo Antônio, lá dentro.
— Pois vai, vai, Maria. E a rapariga, que era uma exposta, saiu cantando alegremente.
— E esta então, continuou pensando Margarida, quando ela se retirou. Que mãe teve esta para lhe semear a alegria, que nunca perde? A pobre nem família conhece; a gente que a criou não a tratava com carinhos. E como ela vive! e como ri! Não há dúvida pois; não há dúvida que se vem ao mundo assim. Então eu... Ó Senhor! mas isto não pode ser. Que condenação, meu Deus!

E como se procurasse se convencer de outra solução menos desconsoladora, do problema em que meditava, prosseguiu pouco depois: — Mas quem me diz que é isso uma condenação? Por que não hei de ver se posso tirar de mim estas ideias negras? Olhando-se bem claro dentro de nós, talvez... vejamos: Estou hoje triste; é verdade. E por quê? Esta manhã não estava. lembra-me que até ri com Clara... Parece que é mau agouro esta alegria, que sentimos às vezes ao acordar! Depois... Há pouco... foi depois que veio aquela mulher... E que me disse ela? Tudo que eu lhe ouvi não era para isto. Não, decerto. Afinal que tenho eu com... Aqui o pensamento quebrou o jugo que o constrangera a seguir o caminho estreito da reflexão, e entregou-se insofrido a mais extravagante carreira.

Na posição e nos gestos de Margarida nada acusava a revolução mental que se operara; mas instantes depois ela murmurava já: — Quem sabe se aquela rapariga? Mas não, não pode ser... E ele? Que mudanças traz o tempo! Eu não sei como são certas memórias também... Mas que admira? A vida da cidade... Quem havia de pensar? Parece-me que ainda estou a ver, quando ele era criança e vinha... Dez anos! Absorvida em pensamentos desta ordem a veio encontrar o reitor que raro deixava de visitar as suas pupilas.
— Em que cismas tu, rapariga? Disse-lhe o padre. Santo Nome de Jesus! não posso atinar o que tanto tens para cismar. Nem que te cansassem aos ombros grandes canseiras de família! Deita o coração ao largo. Não vês a Clarita? Faz assim como ela. Lembra-te que tens vinte e três anos. Aos sessenta é que é natural pensar assim.

Margarida beijou-lhe a mão dizendo: — Isto julgo que nem é pensar. É quase um esquecimento de tudo, e de nós mesmos, em que às vezes se cai. Mas faz bem ralhar comigo, Sr. Reitor, faz muito bem. Este costume é mau. É quase uma doença da qual hei de ver se me curo.
— E tem juízo. Olha, minha filha, isto de pensar muito... Enfim, o Senhor para isso nos deu a razão, mas... Queres tu saber? Um dia, veio aqui um homem que, pelos modos, é um grande sábio, um desses filósofos da cidade. Era domingo e eu tinha que fazer a minha prática.

O tal sujeito foi para a igreja. Quando o vi lá fiquei assustado. Enfim... com esta boa gente daqui, entendo-me eu bem, mas, pobre cura da aldeia que sou há vinte anos, o que queres tu que eu possa dizer diante de gente instruída e ilustrada, como era o tal? Estive para desanimar, Margarida, olha que estive; mas disse comigo: "Não senhor, eu não devo recear. Não tenho lido muitos livros, é verdade; mas os Evangelhos leio-os todos os dias.

Eles me ajudarão. Pois não tenho eu lá aquele sermão da montanha?" E fui para a igreja, e abri o S. Mateus, e li: "Amai a vossos inimigos, bendizei aos que vos maldizem, fazei bem aos que vos tem ódio, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem". Bastou-me isto, e pus-me a falar, assim que te falo agora, Margarida. Achava-me à vontade. Pois sabes que é ao que eu trouxe isto: o tal homem, de que eu me receava, foi ter comigo à sacristia para me abraçar, e disse-me: "Gostei de ouvir; deram-me a suas palavras, por algum tempo, mais sãs consolações do que as minhas noites de estudo". Ficou-me este dito do homem, e pareceu-me que ele tinha consigo grande coisa a afligi-lo. Pensava demais talvez. Corre-se o risco de endoidecer. Nada, não tem jeito.

Margarida sorriu, assegurando ao reitor que evitaria esse perigo, fazendo por se distrair. No decurso da conversa ulterior, falou-se em Daniel. O padre aludiu à entrevista que tinha tido com ele, e procurou atenuar a culpa do rapaz, expondo as ideias que lhe ouvira em relação ao casamento e à escolha de uma esposa. O resultado de tudo quanto disse foi deixar Margarida mais pensativa do que antes.

Capítulo XXVIII

Passou todo o mês de agosto e parte do de setembro, sem que se celebrasse o casamento de Pedro e de Clara. Pequenos estorvos, os quais será inútil referir aqui, baldaram a diligência com que andara o reitor em obter os papeis necessários às duas partes contraentes. O padre estava ansioso por proclamar, à missa conventual, os primeiros banhos, e não cessava de interrogar o lavrador sobre o andamento em que iam os preparativos domésticos para as bodas do filho. José das Dornas dava a entender que depois do S. Miguel era a ocasião mais favorável para a solenidade, visto que a cobrança das rendas lhe permitiria então fazê-la com o esplendor devido. A ansiedade na aldeia era imensa, porque todos conjeturavam já quanto teriam de memoráveis umas bodas em casa do abastado e liberal lavrador.

Achava-se terminada a principal colheita de milho e não se fixara ainda o dia em que tão falada e prometedora festa devia realizar-se. Em consequência de tais delongas, à primeira esfolhada em casa de José das Dornas assistia ainda Pedro como rapaz solteiro. Esta circunstância não foi sem influência na sucessão dos acontecimentos que temos por narrar. Concorramos nós também para este serão campestre, que assim nos é necessário. Julgo que pequeno será o número dos leitores, que não tenham assistido a uma esfolhada na aldeia, ou que pelo menos de tradição, não saibam a índole folgazã e traquinas deste gênero de trabalho, do qual ninguém procura se eximir: pois antes espontaneamente correm de toda a parte a oferecer-lhe os braços. E não há outros serões mais divertidos também.

Ali todos riem, todos cantam, todos se abraçam, e se beijam até; e fala-se ao ouvido, e graceja-se e dança-se, e com franqueza se apontam defeitos, e sem ofensa se recebem censuras, e até são mal colhidas as lisonjas; e tudo isto então, toda esta apetecível desordem, todo este abandono de etiqueta, à vista da porção sisuda da companhia, à qual a tolerância fecha deste vez excepcionalmente o olhos; e, a alumiar uma tal azáfama, meio festiva, meio laboriosa, apenas a luz mortiça de um modesto lampião, pendurado de uma trave do teto, ou, ainda melhor, a suave claridade do luar em campo descoberto! Aquelas liberdades todas são permitidas, ordenadas até, pelo código das esfolhadas.

Cada espiga vermelha, cada espiga de milho rei, como por lá lhe chamam, é a sentença promulgada contra o feliz, a cujas mãos ela chegou. Cabe-lhe distribuir por toda a assembleia, ou receber de toda ela, um abraço, mais ou menos apertado; sentença que ele de boa vontade cumpre, principalmente quando ente tantos abraços, há um pelo qual em vão suspira nas outras épocas do ano. Esta lei, digna das ordenações daquelas joviais "Cortes de amor" da Idade Média, é a alma das esfolhadas. Dela provém os risos, os arrufos, as recusas, as insistências, as queixas, as acusações, os despeitos, e os ciúmes, que, ao mesmo tempo, desordenam o serão, excitam os trabalhadores e adiantam a tarefa.

Quando um dia a máquina agrícola fizer ouvis nas aldeias portuguesas o silvo estridente do vapor; quando a força prodigiosa de suas alavancas, o movimento de suas rodas gigantes e complicadas articulações dispensar o concurso de tantos braços, nestes trabalhos rurais; quando a musa pastoril, resignada, trocar as vestes primitivas por a glose do artista, e esquecer as antigas cantilenas, para aprender as canções das fábricas; lembrar-se-ão com saudades das esfolhadas os felizes que as puderam ainda gozar.

A onda econômica adianta-se rápida; dentro em pouco inundará os campos. Deem-se pressa os que ainda quiserem conhecer as velhas usanças, para as quais está já a soar a derradeira hora. De há muito gozavam de apregoada fama as esfolhadas em casa de José das Dornas. A impulso do seu gênio prazenteiro, o velho lavrador pusera em costume o observar-se pontualmente o rito destas festividades campestres. Não havia ali se isentar de cumprir a sentença a que a sorte o sujeitasse, sob pena de ignominiosa expulsão do grêmio e perpétua exclusão de festas semelhantes.

Homens e mulheres, crianças e velhos, amos e criados, todos fraternizavam, todos se nivelavam aquela noite para se abraçarem ou beijarem e até dançarem por fim. Quem não gostava disso era o reitor, o qual todos os anos, por este tempo, mimoseava com uma longa pregação o seu amigo José das Dornas mas sempre sem nada conseguir. Os costumes populares, as práticas tradicionais encontravam no lavrador um apego, quase igual ao que tinha para as crenças religiosas. Parecia-lhe um sacrilégio o infringi-los. Debalde o reitor lhe dizia: — Acaba-me com essas folganças, José. Isso é a perdição de muita gente. Não sei como tu, homem sisudo, te pões assim a brincar com as crianças e com os moços, em termos de te perderem o respeito.

José das Dornas limitava-se a responder-lhe: — Ó Sr. Reitor, deixe lá. Uma vez não são vezes. Beijos e abraços, quanto mais às claras, menos perigosos são. Daqueles que se dão ás escondidas, é que é ter medo. Enquanto ao respeito, sossegue, que quando for preciso, eu sei como ele se faz ter aos atrevidos. E depois, que quer? Eu fui criado nisto. Este último argumento é sempre o mais irresistível da lógica do nosso homem dos campos. Qual dos dois velhos tinha razão? Eu sei lá! A falar a verdade, não acredito demasiado na inocência daqueles abraços beijos e muito menos na de alguns que, por motivos particulares, se dão mais do coração e mais tempo se prolongam; mas é também certo que, evitando as esfolhadas muitas ocasiões se oferecem ainda de uma pessoa se perder, e alguma razão tinha José das Dornas ao dizer que estas coisas, na presença de espectadores, se despojam de grande parte da sua gravidade. Desta vez deviam ser as esfolhadas em casa da família Dornas dignas da sua tradicional nomeada.

A pedido de Pedro, foi convidada muita gente. Encarregou-se ele mesmo de formar a lista, a qual naturalmente abriu com o nome de Clara. Clara recebia sempre com alegria convites da natureza deste. Margarida quis dissuadi-la de aceitar.
— Que vais fazer, Clarinha? Disse-lhe ela. Olha, eu, se fosse a ti, não ia. Afinal, por mais que digam, sempre nestas esfolhadas há liberdades e costumes, que... que...
— Sabes, Guida? Respondeu-lhe Clara, se todos se fosse a elevar por os teus conselhos, e a dar atenção aos teus medos, pode ser que o mundo andasse muito bem guiado, e andava decerto; porém morria-se de aborrecimento por aí. É ver que nem me queres deixar ir à esfolhada em casa de meu marido, e quando é ele mesmo que me convida!
— E quem sabe se mais estimaria se não fosses?

— Qual? Estás enganada. Supõe-lo como tu. Eu bem o digo! Olha, minha Guida, tu não servias para casada. Fazia-te ainda mais sisuda do que és, sisuda e séria que nem uma abadessa de convento, e depois havias de querer que o teu homem fosse sisudo e sério como tu.
— Vai, vai, Clarinha; nem eu to posso impedir. Mas, se queres que fale a verdade, fico sempre a tremer, quando te vejo sair para estes serões. Às vezes há por lá desordens, rixas...
— Ai, sossega. Eu te prometo que não me meterei em nenhuma.
— Promete-me também que não dará causa a nenhuma, tornou Margarida sorrindo.
— Como queres que eu dê causa a uma desordem, doida?

— Como há de ser! Eu digo-te, mas não te arrenegues. Tu tens um bocadinho de ruindade, confessa; e às vezes para te divertires, gostas de fazer perder a paciência aos outros. Ora, Pedro tem um gênio assomado e...
— Deixa-te disso. O Pedro não é homem para se finar por ciúmes só por ver receber ou dar um abraço em noite de esfolhada! Era o que me faltava também!
— Pois Deus vá contigo, filha; mas lembra-te que dentro em pouco és mulher casada e que o teu noivo está ao pé de ti.
— Estás descansada. E depois, sabes o que o Pedro me disse em segredo? O irmão também faz tenção de ir à esfolhada.
— Quem? O Sr. Daniel?

— É verdade. Que graça! Mas o Pedro não quer que isto se saiba para que não lhe faltem as raparigas, com medo ou com vergonha. Estou morta por ver como elas ficam, assim que o virem lá. Ora diz tu se isto se podia perder!
— Ainda pior.
— Que dizes? Ainda pior! Pois também és das que o pensam excomungado? Pobre rapaz! Quem ouvir falar a essa gente por aí, há de fazer dele uma ideia! Pois não tem nada do que dizem. É amigo de rir, isso, sim, mas também sabe falar sério, quando é preciso. E não ouves o que muitas vezes o Sr. Reitor tem dito a respeito dele? Que é um excelente coração, afinal.
— Nem eu digo o contrário, mas...

— Mas és uma medrosa, é o que tu és; uma medrosa, que me andas por aí sempre a sonhar sonhos negros. Um dia hei de fazer-te falar com ele, e verás...
— Ai, não, não,  exclamou Margarida, quase assustada.
— E como dizes isso! Que medos! Estás como a outra gente, já vejo. Pois admira-me em ti que não é dessas coisas. É uma cisma que te hei de fazer perder, assim como tu me fizestes perder as das bruxas que eu dantes tinha. Lembras-te?

Horas depois, Clara despedia-se da irmã, dizendo-lhe: — Então, Guida, até logo. Ei bem queria que viesses, mas fizestes voto...
— Bem sabes que nunca sinto alegria nestas festas.
— Como hás de tu senti-la, se nunca vais lá?

E Clara partiu, e pulsava-lhe o coração de contente, quando ia pelo caminho. O gênio de Clara pedia-lhe isto. Era uma necessidade para ela a alegria e as festas. Não se lhe coadunavam com a índole as melancolias de Margarida. Quando só, saia-lhe dos lábios tão depressa o canto, como os suspiros do seio da irmã. E a alegria de uma, como a tristeza de outra, nem sempre tinham motivo definido. Vinham-lhes do coração, que parecia espontaneamente exalá-las.

Na natureza há fenômenos assim. O canto de algumas aves parece uma lamentação, repassada de profunda melancolia; o de outras soa brilhante como hino festivo, nos coros da criação; e nem as primeiras têm pesar de que se carpirem, nem estes júbilos a celebrar. O canto sai-lhes da boca modulado por uma disposição natural; pois quase de igual forma, acudiam os sorrisos aos lábios de Clara e as lágrimas aos olhos de Margarida.

Capítulo XXIX

A esfolhada fez-se na eira espaçosa e desafogada de José das Dornas, e por formosíssima noite de luar claro como o dia. O ser alumiado pelo luar é uma circunstância que redobra o valor da festa. Eu creio nas influências planetárias; perdoem-me a fragilidade astrológica os homens da ciência positiva. Bem sei que passou já de moda esta crença tão arraigada nos mais severos espíritos de outros tempos; mas por mim, ainda não pude resolver a romper com ela de todo. Penso em que o moral e o físico da humanidade andam sob o império de forças multiplicadíssimas, muitas das quais ainda estão por descobrir ou estudar, e não vejo que se possa desde já excluir do rol delas a luz desse planeta pálido, tão querido aos amantes e poetas.

Digam-me por exemplo, se uma esfolhada ao meio dia pode ter nunca a índole jovial das que se fazem à claridade da Lua? Se nela se concedem beijos e abraços com tão poucos escrúpulos? Se a gente se ri com igual vontade e franqueza? E não me venham explicar isto só pelo efeito da meia obscuridade, que serena as repugnâncias dos tímidos, e excita a audácia dos arrojados; porque nunca o vi se elevaram ao mesmo grau de intensidade essas ruidosas alegrias e folguedos, quando a luz, ainda menos limpa de sombras, de uma só lâmpada ilumina o lugar do serão.

Forçosamente tem a Lua parte nisso. Não sei o que há na atmosfera em uma noite assim! O espírito mais embotado para as suaves comoções da poesia, parece receber então um raio de lucidez e acreditar vagamente na existência de alguma coisa, acima dos prosaicos interesses da vida positiva; os corações mais fechados a arroubamentos de amor, sentem-se embrandecer, e de mais de um consta haver infringido, em noites dessas, velhos e porfiados protestos de isenção. E negam a influência da Lua?! No coração dão-se fluxos e refluxos de sentimento, cuja teoria pode ter alguma coisa de comum com a do fluxo e refluxo dos mares. É uma velha crença esta, que me leva a supor a Lua favorável ao amor e indispensável à alegria das esfolhadas. E do meu lado encontro José das Dornas, que esperou por uma noite de lua cheia, para celebrar a sua festa.

Um monte enorme de espigas ocupava o meio da eira. Abertas de par em par as portas do cabanal aguardavam as amplas canastras para onde se iam lançando as espigas esfolhadas. Sentados em círculo, à volta daquela alta pirâmide, trabalhavam azafamados, parentes, criados, vizinhos, amigos e conhecidos, que sempre afluem aos serões desta natureza, ainda que não convidados. Não havia lugares de distinção aí. Cada qual se sentava ao acaso, ou, quando muito, conforme as suas secretas preferências. A mais completa igualdade se estabelecera na companhia, desde o princípio dos trabalhos.

José das Dornas, que sabia, como ninguém, manter, nas ocasiões devidas, a sua dignidade de chefe de família, dava, desta vez o exemplo a sem-cerimônia, praticando jovialmente, até com o mais novo dos seus criados; e estes usavam para ele de liberdades que, fora do tempo, lhes sairiam caras. Pedro, rapaz sempre atencioso e grave no seu trato para com os velhos, naquela noite, tendo por vizinha uma séria e madura matrona da aldeia, requebrava-se em galanteios para com ela, e afetava rendidos extremos, com grande riso dos circunstantes e de Clara, a qual, pela sua parte, fingia uns ciúmes igualmente aplaudidos da assembleia.

Uma velha, querendo aproveitar o seu tempo, tentou regular ali as suas contas com Nossa Senhora rezando uma das muitas coroas, de que lhe estava em dívida; e, a cada passo, rompia em vociferações contra duas raparigas entre as quais ficara e cuja palestra a fazia perder na fieira de padre-nossos e ave-marias da sua interminável reza. Os arrufos da velha eram estímulo para risadas. Às vezes saltava ao meio do círculo uma criança com grandes bigodes, feitos de barba de milho, e a ideia era logo apoiada e imitada por todas as outras, com grande embaraço ao bom e pronto andamento da tarefa do serão. As mães ralhavam, rindo; os pais faziam o mesmo; e disfarçadamente punham, ao alcance dos pequenos, novos instrumentos para idênticos delitos.

As raparigas e rapazes tiravam uns aos outros o gorgulho, que por acaso encontravam nas espigas, o que introduzia grande alvoroço na assembleia, e enchia os ares de gritos e de vozerias atroadoras. E ia assim animado o serão, quando uma circunstância, para quase todos inesperada, veio subitamente esfriar esta fervura. Esta circunstância foi a chegada de Daniel. Eram nove horas quando ele apareceu na eira, ainda em trajos de jornada, pois voltava, naquele momento, de uma excursão distante.

Saudando alegremente a companhia, Daniel pediu para si um lugar no círculo dos serandeiros. José das Dornas, Pedro e Clara, que havia já muito o aguardavam com impaciência, sorriam entre si, ao verem o embaraço em que todos ficaram com aquele reforço. A reputação que Daniel adquirira não era de fato para lhe preparar um lisonjeiro acolhimento.

Os homens franziam as sobrancelhas e exprimiam em rosnados apartes, o seu desagrado; as mulheres de idade fitavam no recém-chegado um olhar, como o que lhes merecia um lobisomem; as raparigas acotovelavam-se, cochichavam umas com as outras; sufocavam os risos e olhavam às furtadelas para Daniel; porém, não houve quem se afastasse para dar lugar; antes apertavam uns contra os outros, para lhe evitarem a vizinhança.

Daniel repetiu a reclamação, e, ao mesmo tempo, corria com os olhos as diferentes figuras ali reunidas, como a procurar aquela cuja proximidade mais agradável lhe pudesse ser. O tácito indeferimento do seu pedido continuou porém. Os risinhos mal abafados, as murmurações a meia voz e o som do esfolhar das espigas, tarefa em que todos pareciam com dobrada vontade empenhados, era o que se ouvia, em seguida à requisição que ele pela segunda vez fizera.
— Então que é isso? Dizia José das Dornas, meio a rir, meio despeitado. Que diabo! Não haverá ai lugar para mais um? Olhem que o rapaz não está empestado.

Houve um movimento geral, como para conceder o lugar requerido, movimento simulado porém, que, longe de abrir brecha no círculo, ainda mais o estreitou. Daniel principiava a preparar-se para conquistar terreno, que lhe negavam, e com esse intuito fitava já um espaço entre duas galantes raparigas, que naquele momento falavam ao ouvido e riam, quando escutou a voz de Clara, que lhe dizia do outro lado da eira: — Venha para aqui, Sr. Daniel, se lhe agrada a companhia. E, arredando-se de uma velha meia mouca e cega, que tinha à direita, Clara ofereceu a Daniel o lugar que ele pedia. A este não desagradou a colocação e apressou-se a tomar assento, junto de sua futura cunhada.

Uma tal solução foi para todos satisfatório, a não termos de executar talvez muitas das raparigas, que mais repugnância tinham mostrado em conceder junto de si o lugar perdido, mas que não desestimariam vê-lo usurpado contradições da natureza essencialmente feminina. Daniel compreendeu a necessidade de angariar simpatias na assembleia, que o olhava desconfiada. Principiou por distribuir cigarros por alguns dos circunstantes, que fumavam, e chamando-os a cada um pelos seus nomes para o que interrogava primeiro disfarçadamente Clara; a todos dirigiu um cumprimento, que algum tanto os abrandou.

Às velhas ofereceu uma animada descrição vocal da procissão de Cinzas, no Porto, descrição modelo, embora não primasse em exatidão, nem no número de andores, nem na designação dos santos. No fogo do seu rapto inventivo, chegou a falar em um certo S. Macário, bispo, com grande espanto duma velha, cujas reminiscências da procissão dos franciscanos nada lhe diziam de tal santo. Daniel inventou-lhe uma biografia, digna de Ribadaneira. As velhas abrandaram-lhe a acrimônia dos seus olhares. E os rapazes? Para com estes experimentou Daniel a receita de Orfeu para abrandar as pedras; tentou a música.

Achou à mão uma viola, e tirou alguns harpejos e executou umas variações sobre motivos da Cana-verde, que atraíram a si as simpatias dos que tinham no coração verdadeiros instintos artísticos. Para as raparigas não procurou arte de se fazer valer, porque estava ele persuadido, não sei se com fundamentos que qualquer que fossem as aparências, não lhe deviam ter elas muito má vontade, sabendo-o um dos mais entusiastas admiradores do sexo. Apesar de tudo não se animava o serão. Reinava ainda certo constrangimento, a conversa fazia-se por grupos, e em voz quase baixa, e mantinha-se, por assim dizer, desencadeada. Os únicos a falarem alto, além de Daniel, que por muito tempo fez, como se costuma dizer, a despesa da conversação, eram, às vezes, Pedro, José das Dornas e Clara.,Esta ria ao ver a dificuldade com que Daniel conseguia esfolhar uma espiga, enquanto ela aviava uma dúzia.

— Que desastrado! dizia Clara. Nesse andar tem que fazer.
— Então como é que se arranja esta coisa?
— Assim, ora repare. Pega-se num prego...
— Mas o que é do prego?
— Então não sabia pedi-lo? Aí tem um. Mas pega-se num prego, e atravessa-se o folhelho assim, e depois...

A execução substituiu o resto do preceito. Em um momento estava a espiga esfolhada e na canastra.
— Está pronto, acrescentou Clara.
— Vamos a ver se eu sei, disse Daniel. Seguro o prego, pronto... Atravesso o folhelho, ou folhido, ou lá o que é... Até aqui vai bem. E depois... e depois... e depois... Esta repetição era devido à dificuldade que ele encontrou a executar a última parte da operação.

Clara não se fartava de rir, e as outras raparigas riam também com ela. Algumas faziam ouvir o seu epigrama, com menos rebuços já. Ainda assim, não se declarara abertamente a confiança, nem se generalizara a conversa. O que cada um tinha a dizer, comunicava-o ao vizinho mais próximo; este se julgava a coisa digna de referência, transmitia-o ao imediato, de maneira que todos vinham a saber, mas sucessivamente, e pouco a pouco; cada qual ria por sua vez, e sem aquelas súbitas, unânimes e estrepitosas manifestações de alacridade, desafiadas por um bom dito, ao soar imprevista e simultaneamente aos ouvidos de uma assembleia inteira.

Havia em todos vontade de modificar esta feição séria e retraída do serão; mas ninguém tinha coragem de empreender a revolta. De mais a mais, nem uma só espiga vermelha aparecia a oferecer pretexto à realização desse desejo tácito de todos. Clara foi a única, nestas condições, a quem sobraram ânimos para fazer alguma coisa decisiva. Levantando a voz argentina e sonora, que todos os presentes conheciam bem, principiou a cantar: Andava a pobre cabreira. O seu rebanho a guardar Todas as vozes de raparigas, como por impulso comum, juntaram-se em coro, e terminaram na mesma toada a quadra: Desde que rompia o dia. Até a noite fechar Clara continuou: De pequenina nos montes E prosseguiu o coro: Nunca teve outro brincar, nas canseiras do trabalho.

Seus dias vira passar A letra e a música desta cantiga ou xácara popular comoveram intimamente Daniel, despertando-lhe memórias amortecidas, avivando-lhe imagens quase apagadas, entre as quais uma, mais suave que todas, o enleava. Era a da pequena Guida, da sua companheira de infância, a que tantas vezes ouvira aquela simples canção, que falava também de uma guardadora de rebanhos, como ela era. Na voz de Clara alguma coisa julgou Daniel descobrir da inocente criança que recebera então as primícias do seu coração infantil, mas apaixonado já. Esta primeira analogia lhe fez notar que no olhar também, no gesto e no rir a havia igualmente, e isto obrigava Daniel a fitar em Clara olhos mais observadores que nunca.

Dentro em pouco se esqueceu do que primeiro o levara à contemplação, e, sem já pensar na pequena guardadora de rebanhos, continuava a olhar para Clara com uma atenção não encoberta. No entretanto Clara continuava cantando: Sentada no alto da serra. Pôs-se a cabreira a chorar. E as raparigas todas seguiam: Por que chorava a cabreira? Agora haveis de... Milho rei! milho rei! milho rei! rompeu uma voz, e esta tríplice exclamação tudo pôs em desordem; interrompeu o canto, e arrebatou Daniel à doce contemplação em que se deixara cair. Aquele grito partira de José das Dornas, que fora o primeiro a cujas mãos concedera a sorte, enfim, uma espiga vermelha. A festa mudou súbita e completamente de caráter.

À exclamação do lavrador respondeu grande alarido na assembleia. De todos os lados se pedia o cumprimento da lei das esfolhadas. Cabia pois a José das Dornas fazer a primeira distribuição de abraços. O alegre lavrador não se fez rogar. Seguiu-se então um espetáculo iminentemente cômico. José das Dornas ergueu-se do lugar onde estava para correr um por um, todos os outros, e, com profusão de abraços, dar o exemplo de observância à lei reguladora da festa.

Todo este cerimonial foi acompanhado das gargalhadas dos espectadores, e entremeado de observações jocosas do oficiante, o qual fazia valer sobremaneira o ato, graças ao gênio folgazão que Deus lhe dera. A cada rapariga que abraçava, José das Dornas, prolongando mais o abraço, dizia com visagens e gestos, que faziam estalar de riso os circunstantes.
— Na minha idade, aos sessenta anos, só o milho rei me podia dar destas fortunas! Ainda bem que a sorte mo trouxe às mãos. Ao abraçar os homens, exclamava ele, com certo ar de desconsolação, comicamente expressivo.
— Que belo abraço desperdicei agora!

Passando pelos filhos, abraçou-os também, dizendo-lhes: — Rapazes, tenham paciência. Eu sei que são destes abraços que vós quereis. Mas é lei, é lei. Os outros virão a seu tempo. A um criado disse, meneando a cabeça: — Ah! maroto! Ser obrigado a abraçar-te, quando tanta vontade tinha de te apalpar de outra maneira as costas! Ora vá, que talvez te não gabes de outra. O certo é que, depois disso, começou a animar-se a esfolhada. As espigas vermelhas como se atraídas pelo bom colhimento feito à primeira, apareceram sucessivamente a diferentes mãos, e cada uma que aparecia dava lugar a episódios graciosos e a prolongada hilaridade.

Às vezes era uma rapariga tímida e acanhada, que não queria cumprir a sentença; e então todas as vozes se reuniam a exigi-la; e ela a recusar-se, e os vizinhos a empurrá-la, e todos a aplaudirem a rapariga, sorrindo e enleada de confusão, a correr a roda, e alta vozeria a celebrar com ovações a vitória sobre a rebelde; outras, era um velho ou velha, a que faziam tropeçar, ou se abaixar para dar o abraço, e que depois cobriam desapiedadamente de montes e folhelho com aprovação e coadjuvação geral da parte jovem dos serandeiros; outras, um rapaz destemido, que, pela terceira vez, reclamava abraços, e contra o qual se tramava uma conspiração mulheril, a contestar-lhe a legalidade das pretensões, acusando-o de fraude e de trazer de casa as espigas vermelhas, de que se valia; animava-se então a discussão, mas afinal sempre se davam os abraços.

Todos porém, aceitavam as excepcionais liberdades desta noite de tradicional folgança, com a consciência de que não poderiam nunca fazê-las valer a justificar ulteriores e mais arrojadas aspirações. Havia porém um espectador e ator destas cenas noturnas que, por circunstâncias fáceis de prever, não estava muito de ânimo a receber com a mesma frieza as concessões do estilo. Era Daniel.

Havia muitos anos que ele não tomara parte nestes serões, de forma que, aos participar dos privilégios que, só em ocasiões tais, lhe podiam ser concedidos, não conservava no mesmo grau que os seus companheiros a tranquilidade de espírito e a frieza de ânimo com que os outros contavam, ao sair dali, dormir um sono sossegado e livre de pesadelos. Todos poderiam receber de uma rapariga um abraço e esquecê-lo logo depois; Daniel é que dificilmente conseguiria se afazer a isso. Além de que, a noite era de luar; daquele luar de que falei, magnético, inebriante, que exalta a imaginação, que a inquieta, e nos predispõe a sonhar! E então uma imaginação como a de Daniel.

Havia de mais a mais uma outra circunstância, que concorria para produzir nele estes efeitos excepcionais. As raparigas não lhe concediam os abraços, marcados pelo estatuto da festa, com a mesma pronta familiaridade, com que os outros os obtinham. Não obstante ter cessado já o constrangimento do princípio da noite, e não pesarem em ninguém as primeiras prevenções contra o cantor das trigueiras, contudo, na ocasião crítica, no momento do abraço, havia nas menos tímidas um ar de pudica hesitação, nas faces adivinhavam-se-lhes um rubor, no baixar dos olhos uma eloquência, que centuplicavam o valor dos tais abraços e, forçoso é confessá-lo, alteravam-lhe também um pouco a significação.

Quando se concede ou se recebe um abraço, corando, é porque palpita o coração; e cada palpitação do coração é um fenômeno cheio de grandes mistérios, que perturbam o pensamento de quem neles considera. O de Daniel não estava muito sereno já, quando chegou a vez de Clara de cumprir a sentença também. Levantou-se imediatamente a irmã de Margarida, e, com o desembaraço que lhe era próprio, começou pela esquerda a sua "via-sacra", como ela, rindo, chamou-lhe. pela ordem que levava, devia ser Daniel o último, a quem tinha de abraçar. Ao chegar junto dele, parte da natural audácia a abandonou.

Já antes notara ela alguma coisa de particular nos olhares e nas maneiras do irmão do seu noivo, que tinha diminuído a familiaridade, com que ao princípio o acolhera, e diminuindo na proporção em que nas outras crescia. Foi quase a tremer que ela o abraçou. Daniel percebeu-lhe a agitação, e sorriu. Clara, sentando-se outra vez junto dele, sentia-se constrangida e não ousava erguer os olhos. Daniel achava deliciosa aquela súbita timidez, e começou logo a formar castelos no ar, quase esquecido de que era a prometida esposa de seu irmão, de quem nunca mais desviou os olhos, nem distraiu as atenções. Apareceu afinal, a ele também, uma espiga de milho vermelho. Daniel mostrou-a, sorrindo, a Clara.

— Visitou-me enfim a ventura, disse-lhe ele. Graças a Deus! porém mais feliz seria se me fosse permitido cumprir da sentença só aquela parte que não me obriga a levantar. Clara quis responder-lhe, mas nada lhe ocorreu, que dissesse. Nisto, uma criança que estava próximo deles, denunciou à assembleia que o Sr. Daniel tinha achado um milho rei. Agora, já todos foram unânimes a exigir, em grandes brados, que pagasse ele também o tributo estabelecido. Daniel não procurou se eximir; abraçou porém a todos à pressa e distraidamente, até chegar à Clara. A essa, apertou-a ao peito de maneira a redobrar o enleio em que se achava já a rapariga.

Desse momento por diante, Daniel ficou inteiramente dominado por a sua irreprimível imaginação. Feliz mente as atenções de todos estavam atraídas pelas peripécias da esfolhada, que a não ser isso, teriam dado que falar as maneiras do estouvado rapaz em todo o resto da noite. Clara sentia um acanhamento nela pouco habitual, procurava vencê-lo, para refrear a imprudente exaltação do seu vizinho, mas todos os seus esforços eram baldados. Nem parecia a mesma, de tímida que estava.

Daniel, por mais de uma vez, serviu-se das fraudes usadas pelos serandeiros e frequentadores de esfolhadas, para renovar os abraços; e isto sem procurar se ocultar de Clara. Esta, não lhe denunciando o artifício, deixava assim imprudentemente se estabelecer, entre ambos, certa cumplicidade, que estimulava Daniel. A isto se sucederam frases de galanteio, ditas a meia voz, e olhares que a não deixavam; por acaso encontravam-se-lhes às vezes as mãos, e Clara sentia que Daniel lhas apertava nas suas.

A pobre rapariga, inquieta, irresoluta, senão fascinada, nem tentava lhe fugir nem ousava repreendê-lo; sentia-se triste, no meio de uma festa em que todos riam. Triste, ela! Pela meia noite terminou a esfolhada. Seguiram-se as danças. Clara não quis dançar; veio sentar-se junto de José das Dornas. Daniel sentou-se outra vez do lado dela. Dentro em pouco o lavrador dormia. Daniel falava. Falou sem cessar., mas ele próprio dificilmente poderia dizer em quê. Clara escutava-o em silêncio, quase atordoada pelas comoções da noite.

Aquela maneira de conversar, o que ele dizia, e as palavras de que usava, tudo lhe era desconhecido; impressionavam-na e agradavam-lhe, como uma novidade. Ela mal poderia explicar o estado do seu espírito naquele momento. Alguma coisa a obrigava a escutar Daniel, enquanto outra a mandava desconfiar daquelas palavras, que lhe soavam bem, como música melodiosa.
— Mas, Clarinha, repare que ainda não teve uma palavra que me dissesse! segredou-lhe Daniel, por fim, com afetuosa inflexão de voz.
— E que quer que eu lhe diga?
— Pois não se lembra de nada?
— De nada. A minha cabeça não tem neste momento muito para me dar.
— Oh! mas não lhe peça nada também, peça antes ao seu coração.

— Que posso eu pedir ao meu coração que lhe sirva? Perguntou Clara, procurando sorrir, mas com visível constrangimento.
— Se ele não tiver que dar, que se dê a si próprio, respondeu Daniel em voz baixa.
— Sr. Daniel! exclamou Clara, conseguindo, enfim, por um maior esforço, vencer o seu enleio, e pondo-se subitamente a pé. Pedro, que lhe escutara a voz, aproximou-se dos dois.

A vista do irmão fez cair Daniel em si, e alentou-lhe a razão no eterno combate que sustentava com a fantasia. Curvou a cabeça e sentiu quase uns assomos de remorsos por o seu estouvado procedimento naquela noite.
— Que tens, Clarinha? Perguntava nesse tempo Pedro à sua noiva. Parece-me que te ouvi... Clara ainda agitada, apertou o braço de Pedro, como se a procurar proteção, talvez contra si mesma.
— Que tens? dize! continuou Pedro, já mais inquieto.
— Não é nada.
— Mas tu gritaste.
— Não; é que... a falar a verdade, não sei o que sinto. A inquietação de Pedro aumentava: — Mas então... Dói-te alguma coisa?
— Não... Olha, sabes? Queria ver-me em casa. Se soubesse nem tinha vindo.
— Nesse caso vamos acompanhar-te.

Daniel aproximou-se: — Está doente, Clarinha? A vista de Daniel exacerbou o estado nervoso, em que se achava Clara.
— Por amor de Deus! Deixe-me! – exclamou ela, com um grito, cheio de impaciência, quase febril. Esse grito chamou as atenções. Todos se aproximaram dela.
— Que é?
— Que foi?
— Deu-lhe alguma coisa?
— Está mal?
— O Clara, então, isso o que é?
— Que tens, filha?

E cada qual perguntava a seu modo, e cada qual a seu modo respondia e dava um conselho e uma conjetura. Amigas obsequiosas preparavam-se para desapertá-la. Houve algumas que a quiseram obrigar a beber água fria! outras se esforçavam para lhe untar as fontes com vinagre.
— Aquilo são bichas, dizia uma velha muito entendida em diagnósticos.
— É flato, sustentava em divergência com esta, outra colega.
— Com vinagre passa-lhe, dizia a primeira.
— Um gole de chá de cidreira, é um instante; emendava a segunda. Clara sentia-se deveras mortificada, e tanto que a viam chorar.
— O melhor é acompanharmo-la a casa; disse José das Dornas. Isso não há de valer nada. Se não puder por seu pé, o João que vá aparelhar a ruça. A primeira parte do alvitre foi posta em execução. Clara partiu, servindo-lhe de escolta Pedro, Daniel e um moço da casa. E a festa da esfolhada acabou assim.

Capítulo XXX

Ao voltar para casa. na companhia de Pedro e de Daniel, Clara caminhava silenciosa e triste. Os dois irmãos não se achavam com mais ânimo do que ela para tentar conversa. Pedro ia pensativo e desassossegado com o súbito incômodo de sua noiva; e Daniel, ainda sob o domínio das comoções recebidas naquela noite, que entre memórias agradáveis, lhe deixava alguma coisa do amargor dos remorsos. Sem terem trocado uma só palavra, chegaram assim à porta das duas irmãs. Uma luz no quarto de Margarida era sinal de que ela não dormia ainda.

Clara, erguendo para ali os olhos, suspirou. Parecia invejar o sossego daquela vigília, a paz da consciência que velava assim. Ao despedir-se de Clara, Pedro disse-lhe afetuosamente: — Boas noites, Clarinha; amanhã espero te encontrar melhor. Daniel aproximou-se dela também: — Sossegue – disse-lhe. Não se assuste. Tenha confiança em mim; asseguro-lhe que pode estar tranquila. E, como visse que a rapariga o fitava com um gesto de estranheza e de interrogação, acrescentou: — Sim; então não vê que sou médico? Afirmo-lhe que pode estar descansada; adeus. E separaram-se. De todos os três posso assegurar que nenhum teve bom sono.

Pedro toda a noite lidou com o receio de que o incômodo e Clara fosse de gravidade; vieram-lhe à imaginação as mais negras apreensões a respeito do futuro do seu amor; a cada momento levantava a cabeça do travesseiro para espreitar se, através das frestas da janela, já aparecia a primeira luz do alvorecer. Em Daniel foi uma luta do senso íntimo que o não deixou repousar. Odiava-se e acusava-se com severidade, por haver de alguma sorte abusado, deslealmente, da confiança de seu irmão; mas, cedo deixava de ouvir esta voz da consciência como se distraído por um espírito maligno, que lhe recordava os encantos de Clara; e a seu pensar, sentia-se às vezes quase desvanecido com esperanças, às quais ele próprio tentava cerrar o coração.

 

Alguma cosa semelhante perturbava também naquele momento o espírito de Clara. A cada passo se esquecia a pensar nos diversos episódios do serão e em tudo quanto Daniel lhe dissera; e logo se arrependia e acusava, como de uma traição feita a Pedro, de ter assim escutado e recordar agora as falas apaixonadas daquele louco imprudente.
Margarida, antes de se deitar, veio ter com ela.
— Então, divertiste-te? Perguntou-lhe.
— Não.
— E por quê?
— Por quem és, Guida, não me perguntes hoje nada, se é minha amiga. Estou doente.

Margarida assustou-se pela maneira como foram ditas estas palavras.
— Doente! exclamou ela com verdadeira inquietação; e apalpando-lhe a fronte, que escaldava: — E tens febre, Clarinha! Bem me dizia o coração: antes não fosses.
— E antes! disse Clara, suspirando. E calou-se, fingindo que adormecia. Margarida não conseguiu mais serenar a turbação que lhe produzia o estado da irmã.
— Que sucederia lá? Perguntava ela a si mesma. Foi mais um que não dormiu naquela noite. Levou-a toda a cismar e a escutar se algum rumor chegava do quarto de Clara.

A madrugada, porém, opera milagres. Não há luz como a da manhã para dissipar as visões de uma imaginação preocupada. Como esses vultos sinistros, que os sentidos alucinados das crianças medrosas descobrem em cada canto escuro de um quarto de dormir, as criações do espírito aflito desvanecem-se aos primeiros raios da aurora. Rimo-nos então das nossas apreensões da véspera, nem compreendemos os nossos terrores. As sombras de uma floresta, que a noite nos representa pavorosa, tomam ao amanhecer um aspecto festivo, e mostram-se-nos recamadas de flores; é também a essa hora que uma transformação análoga parece operar-se nas sombras do nosso futuro; temos mais esperança na vida então; aclara-se-nos a nuvem cerrada que caminha diante de nós, quando ouvimos cantar alvoradas às aves, que o dia desperta.

Este fenômeno íntimo do nosso espírito, realizava-se em Daniel e Clara. O desgosto em si, os vagos remorsos da véspera, as inquietações mal definidas, dissipou-os o surgir da manhã. Clara olhou para a irmã, que lhe espiava o despertar, com os olhos expressivos de desassombrada alegria. Daniel vestiu-se, cantando jovialmente; e, sem vislumbres de pensamentos negros, preparou-se para sair. Os acontecimentos da noite anterior eram já sem a menor importância aos olhos de ambos. E que importância podia ter uma noite de esfolhada? Quem se lembraria de atribuiu valor às liberdades consentidas então? Clara perguntava a si própria as causas daqueles seus excessivos terrores, e não os podia justificar.

Quando Margarida, ainda cheia de cuidados, e olhando-a com solicitude, lhe falou nisso, Clara pôs-se a rir.
— Que queres tu que te diga? Nem eu mesma já sei o que me afligia ontem. Não te sucede às vezes isso?
— Em ti é que me admira. É tão pouco do teu gênio! respondeu Margarida, olhando-a fixamente.
— E também te prometo que nunca mais me tornarás a ver assim.
— Deus o queira.

Margarida disse isto, como quem se não dava por satisfeita com a explicação ou com as palavras de evasiva Clara. Ela suspeitava ainda que alguma coisa se tinha passado durante a esfolhada, que a irmão lhe não queria revelar. Mas Clara conservou tão bem, em todo o dia, a jovialidade do costume, que as apreensões de Margarida acabaram por dissipar-se de todo. Correram alguns dias depois destes acontecimentos. Persistindo ainda os mesmos estorvos ao projetado e decidido casamento de Pedro, passava este o tempo em trabalhos campestres, e Clara ocupando-se da feitura do enxoval, em que era ajudada pela irmã. Daniel, ainda sem cuidado de clínica, prosseguia nas excursões venatórias pelos arredores. Havia, porém, muitas ocasiões em que ele voltava a casa sem ter disparado um tiro, o que não o afligia demasiadamente.

Pedro renovava então as suas preleções sobre a caça, e instruía Daniel a respeito dos lugares da aldeia, mais abundantes nela. Do que Daniel não se esquecia era de passar todos os dias à porta das duas irmãs, que ambas o viam, e, pode-se até dizer, o esperavam já. Margarida ocultava-se, porém, mal o sentia; Clara, pelo contrário, inclinava-se no peitoril, e, sorrindo, correspondia à saudação do caçador.

Era mais outra inconsideração de Clara. Conseguiu persuadir-se esta boa rapariga que era obrigada àquilo. Para compensar a demasiada severidade, com a qual, no seu entender, tratara Daniel na noite da esfolhada, e sem se lembrar que, não obstante o seu próximo parentesco com ele justificar estas familiaridades, a má reputação que Daniel gozava na aldeia e a fértil imaginação dos noveleiros locais as faziam um pouco imprudentes. De fato, já nos círculos da terra constava da predileção de Daniel pela rua em que moravam as duas raparigas; e falava-se disto com certos olhares, com certas reticências e sorrisos, mais malignamente eloquentes do que murmurações explícitas.

Escusado será dizer que na loja do Sr. João da Esquina encontravam estas meias vozes um eco admirável. Daniel concorreu para exacerbar esses vagos rumores populares. Um dia, em que se entretivera meia hora conversando da rua para Clara, passou, ao retirar-se, por um jornaleiro, que trabalhava a pouca distância dali. Este homem, com aquele ar de simpleza velhaca, tão vulgar na gente do campo, pôs-se a cantar:

Caçador que vais à caça;
Muito bem armado vais;
Os olhos levais por armas,

E, em vez de tiros, dás ais. Ora esta era uma das vezes em que Daniel voltava a casa sem uma vítima da sua espingarda, que nem chegara a descarregar. A cantiga do aldeão irritou-o, pareceu-lhe que era uma alusão insolente; mas teve a prudência de se não dar por entendido e passou sem dizer nada. No da seguinte, porém, reproduziu-se o fato. Voltando outra vez e à mesma hora, de uma caçada, igualmente incruenta, ouviu de novo o jornaleiro a cantar.

Singular caçada a tua,
Arrojado caçador,
Que, em lugar de penas de aves,

Só trazes penas de amor. Era demasiada a ousadia, para que Daniel a sofresse. Parou e olhando para o homem, o qual, de atento que estava na tarefa, nem pareceu dar por ele, dirigiu-lhe a palavra: — Ó maroto! O jornaleiro fingiu reparar então pela primeira vez em Daniel, e, levando a mão ao chapéu, disse cortejando: — Nosso Senhor lhe dê muito boas-tardes. O patrão quer alguma coisa?
— Quero avisar-te que andarás com juízo se deres outro jeito ás tuas cantigas quando eu passar por aqui.
— Então que cantava eu? Já não me lembra, se quer que lhe fale a verdade.
— Pois, se na terceira vez te escutar, eu te prometo que to gravarei melhor na memória. E dizendo isto prosseguiu Daniel no seu caminho.

A prudência do homem aconselhou-o a que não cantasse mais; porém, em compensação, foi um dos mais atendidos oradores dos diferentes círculos, onde a vida de Daniel era discutida com aquele ardor de curiosidade e bisbilhotice próprias da aldeia. A Margarida não dava também pouco que pensar a frequência com que Daniel lhe passava à porta. Sabia já que ele tinha tomado parte na esfolhada, e quase tudo o que sucedera então. O resto talvez que o adivinhasse, conhecendo, como conhecia, o caráter de Clara e os seus atos irrefletidos que por vezes a prejudicavam. Além disso, certos indícios que não escapam à perspicácia de vistas de uma mulher que observa outra, começavam a dar-lhe canseiras. E tinha razão para estes receios. Mas alguém os concebera já.

Um dia, o reitor, voltando para casa, encontrou Daniel, a cavalo, debaixo das janelas de Clara, e conversando animadamente com ela. O padre não gostou muito disto; e logo lhe veio à ideia a primeira e as sucessivas proezas do seu antigo discípulo. Cortejou-os e passou adiante sem dizer palavra. Encontrando-se, porém, a sós com Clara, pouco tempo depois, foi-lhe dizendo com diplomático ar de naturalidade, estas palavras ambíguas: — Escuta, ó Clara: olha que um enxoval é uma coisa séria. Todos os cuidados e atenções são poucos, quando se está trabalhando nisso; e tu, minha filha, distrai-te algum tanto. Se eu estivesse no teu lugar, nem trabalhava à janela. É tão fácil a distração aí. Clara respondeu de um modo galhofeiro, como costumava. Era-lhe difícil tomar alguma coisa a sério.

O padre procurou depois Margarida, e disse-lhe: — Lembras-te do que te recomendei há tempos, Margarida? Não tires as vistas de Clara. É uma espionagem necessária e para bem dela; por isso, não deves ter escrúpulo em fazê-la.
— E por que me repete agora outra vez essa recomendação, Sr. Reitor?
— Eu cá me entendo. Faze o que eu te digo, Margarida. E ao retirar-se, dizia consigo o bondoso pároco: — Também não sei que demoras são estas com o casamento! É preciso dar aviamento a isto!

As palavras do reitor aumentaram a preocupação de Margarida, parecendo vir justificá-la. Mas como aconselhar a irmã, se ela lhe furtava todos os ensejos de confidências? Margarida fez o que o padre lhe ordenara. Pôs-se a espiar Clara. Foi uma amarga prova para aquele caráter feminino, e por dois motivos diversos; repugnava-lhe o papel que se viu obrigada a desempenhar, e depois a execução dele a cada instante estava lhe valendo descobertas, que dolorosamente lhe rasgavam o coração. Ela percebeu que em Clara se passava alguma coisa singular.

Ao aparecer Daniel, ou quando ao longe lhe soavam os passos, já os olhos de Margarida viam espalhar-se, pelas faces da irmã, uma turbação pouco discreta; era com vivacidade não disfarçada que se curvava para o ver passar e com voz alterada de sobressalto que lhe respondia e conversava com ele. Todas estas observações inquietavam Margarida. Padecia pela felicidade de Clara, que via ameaçada assim, e por si, cujas antigas ilusões, cujo sonho oculto, que, apesar de não ter confiança na sua realização, ela acalentava ainda, se iam pouco a pouco desvanecendo, e em que desprestigiosa realidade.

Capítulo XXXI

Uma tarde, estavam as duas irmãs sentadas a trabalhar, à janela do lado da rua. A luz do sol apenas dourava já os cimos dos montes mais elevados e longínquos. Aproximavam-se as horas, às quais Daniel costumava passar ali. Já por mais duma vez dirigira Clara a vista pelo caminho que ele ordinariamente seguia: era uma vereda íngreme e tortuosa que vinha do alto da colina à planura, onde estava situada a casa, e daí descia ao vale, centro principal do povoado. Porém, sempre que os olhares de Clara tomavam aquela direção, encontravam-se com os da irmã, e instintivamente se abaixavam logo. Margarida não estava também tranquila naquela tarde. Em toda a fisionomia dela, em todos os gestos e palavras, denunciava-se, por sinais evidentes, um violento desassossego interior. De quando em quando, voltava-se para Clara, como se resolvida a falar-lhe, a comunicar-lhe alguma coisa que a preocupava; mas, num momento, parecia abandoná-la a resolução e permanecia silenciosa. O estado de espírito de uma e de outra mal lhes permitia sustentar a conversa, a qual procedera frouxa e interrompida, a todo instante, por frequentes pausas.

De uma vez, porém, a impaciência de Clara, ao observar o caminho, por onde era de esperar Daniel, desenhou-se-lhe tão expressiva na fisionomia, que isto deu ânimo a Margarida para vencer a hesitação com a qual lutara até ali. Fixando a vista na costura em que trabalhava, principiou dizendo, em tom de gracejo: — É na verdade uma pena, Clara, que tu, que tens tão bonitos olhos, teimes em os trazer assim fechados,
— Fechados? Que queres tu dizer, Guida?
— Que os fecha para muitas coisas, que é sempre perigoso não ver, filha.
— Não te entendo, disse Clara, sorrindo.

Margarida prosseguiu: — Mas isso é gênio teu. Tu andas no mundo, como de noite pelos caminhos da aldeia. Não te lembras, quando, no outro dia, saímos mais tarde de casa do nosso pobre mestre? Fazia muito escuro. Eu, a cada passo, estava a parar; parecia-me por toda a parte ver fojos e barrancos, tu ria-te de mim e seguia sempre para diante, com uma confiança naquela escuridão, como se realmente fosse estrada direita.
— E olha que não cai! – acudiu intencionalmente Clara, que julgou principiar a compreender o sentido das palavras da irmã.

— Não; é certo que não. Parece que há uma estrela que protege quem assim é animoso; como se todo esse ânimo não fosse outra coisa senão a mão do Anjo da Guarda a guiá-lo, sem se mostrar. Mas olha: lembras-te quando uma vez, voltando assim de noite a casa, e sem escolher caminho, vieste dar aos lameiros dos Casais? Viste-te obrigada a tornar para trás, e, como se adiantava a noite, tiveste de ir ficar a casa da tua madrinha, nos Cabeços. Que susto que eu tive, Santo Deus! se eram já altas horas, e tu sem chegares?
— É verdade. E por sinal que me mandaste procurar. Mandei. Imagina lá como eu fiquei, como ficamos nós todos quando sendo já madrugada, nos voltaram a casa com uma das argolas das orelhas, que tinham encontrada meio enterrada nos lameiros.
— Tinha-me caído lá, tinha.

— Julgamos-te perdida, morta. Ainda não havia muito que lá morrera afogado aquele pobre cabreiro. Hás de estar certa? Que noite passei, Nossa Senhora! E tu...
— E eu a dormir muito descansada em casa de minha madrinha. Pudera não. Imagina tu que eu tinha andado... léguas, talvez.
— Mas aí está como, sabendo-te salva como dessa vez te sabias, os outros, por alguns sinais mentirosos, como aquele, te podem julgar... perdida.

E Margarida calou-se, depois de fazer esta observação. Clara olhou algum tempo para a irmã, sem dizer palavra: em seguida replicou, parando de trabalhar: — Fala-me claro, Guida. Dize o que me tens a dizer. Que precisão tinhas de vir com isso, para me dares um conselho? Alguma coisa fiz eu, que te desagradou. Vamos, dize o que é. Acaso já deixei de escutar-te alguma vez como tu mereces?
— Tens razão, Clarinha. Eu devia ter mais ânimo para te falar... para te dizer certas coisas, vendo como tu me atendes sempre... Mas, que queres? Ao mesmo tempo, tenho tanta confiança em ti, que pergunto a mim mesma, se valerá a pena estar a mortificar-te assim...
— Mas então que mal tenho eu feito?
— Ora! que te responda a tua consciência, Clarinha; pergunta-lhe.
— Não sei... disse Clara, um pouco perturbada.

— Não é de nenhum pecado mortal que ela te acusará, de nenhum crime muito negro; sossega. Mas de uma culpazita... de uma fraqueza dessa cabeça, um pouco mais leve, do que para uma noiva se queria.
— Bom. É o sermão de costume. Já vejo, disse sorrindo, Clara. Sabes ao que acho graça? É a não ser o Pedro que o prega. Esse tinha mais desculpa. Mas então que fiz eu de assim de maior?
— Ora vamos. Para que precisas que eu to diga? Ia afirmar que, agora mesmo, o estás a dizer baixinho a ti própria. Houve um pequeno silêncio entre as duas.

No fim dele, Clara ergueu a cabeça, dizendo: — Sim, parece-me que sei o que é. O Sr. Reitor já no outro dia me deu a entender o mesmo. É por eu falar com o Sr. Daniel quando ele passa por aqui? Santo nome de Maria! Como há de ser isto, então? Não me dirás, Guida? Continuava Clara jovialmente. Como hei de eu, depois de casada, deixar de conversar com o irmão do meu marido? Que ideia fazem de mim, tu, o Sr. Reitor e todos os que nisso repararam?

— Bem vês, Clarinha, que não é de ti que eu receio. Conheço-te. mas tu bem sabes, o Sr. Daniel é... dizem dele... passa por... E Margarida hesitava, ao procurar exprimir a opinião pública a respeito de Daniel, porque todas as frases lhe pareciam demasiadamente duras e severas para com o caráter dele.
— Nem sei o que me parece te ouvir dizer isso. Ainda que ele fosse o que por aí dizem, conserve-se uma pessoa no seu lugar, que nada pode temer. Querias talvez que eu fizesse como aquela gente, no outro dia, na esfolhada, que toda se encolhia quando ele chegou?
— Na esfolhada? Disse Margarida, ainda sem olhar para a irmã. Ora tu que ainda me não contaste nada do que se passou naquela noite! Esta alusão embaraçou manifestamente Clara, que se apressou a dizer, como se a não tivesse ouvido.

— E demais, não tens tu escutado todas ou quase todas as conversas do Sr. Daniel comigo? Aí tens estado, por dentro da janela, e sem que ele o saiba. De que o ouves falar? Diz-me alguma coisa que eu não deva ouvir? Conta-me o que viu na cidade, o que leu, histórias, versos... e como conta bem!  e queres que eu me não entretenha a ouvi-lo, quando tu mesma, às vezes, sim, que eu bem tenho reparado, deixas de trabalhar, e ficas quieta a escutá-lo também! Então que há nisto de mal?
— Mas então? Já se fala... Que se lhe há de fazer? O mundo tem maldades, e nós vivemos no mundo... Há gente de tão más tenções, que, só pelo gosto de fazer mal, pode ir às vezes inquietar o espírito de Pedro, com histórias mentirosas, e daí sabe Deus...

O ruído de um cavalo a trote, que vinha do lado dos montes, interrompeu o diálogo. Clara dirigiu para lá os olhos, e viu um cavaleiro que se aproximava, saudando-a de longe. Era Daniel.
— Olha; falai no ruim... disse ela para Margarida, que instintivamente retirou a cadeira da janela.
— Vais ver – prosseguiu Clara, como eu sou amiga de fazer vontades. Vou acabar com isto, já que assim o querem... isto é, já que assim o queres; pois dos outros bem me importava a mim.
— O melhor é... ia dizer Margarida, quando a voz de Daniel, falando da rua para a janela, a obrigou a calar.

— Muito boas-tardes Clarinha, dizia ele. Receava não a ver já hoje; por isso obriguei este pobre animal a um trote por estes caminhos de cabras abaixo, que muito pouco lhe agradou.
— Então tinha o que me dizer?
— Nada. Era para não perder o meu dia. Quando vi fechadas as folhas da mimosa da Quinta da Feira, temi vir encontrar já fechada também a sua janela, Clarinha.
— Era pena! disse Clara, sorrindo; e depois, debruçando-se ao peitoril, acrescentou, lançando com disfarce, um olhar para a irmã: Tenho a lhe pedir um favor, Sr. Daniel.
— Que felicidade para mim! Diga.
— Quando de hoje em diante, voltar para casa, não há de vir por este sítio.
— Clara! disse Margarida em voz baixa, puxando pelo vestido da irmã. Clara não a atendeu.

— Por que me faz este pedido? Perguntou Daniel, admirado.
— Porque, segundo me dizem, deram-lhe para reparar por aí nestes seus passeios, e então, para não inquietar o mundo...
— Clarinha, que estás a dizer! murmurava Margarida, escondendo-se por detrás da irmã.
Clara fingia não ouvi-la.
— Tenho-a ofendido por acaso alguma vez? Perguntou Daniel.
— Em coisa nenhuma. Bem vê que eu digo que é pelo mundo...
— Então deixe falar o mundo.
— Não é tanto assim. Talvez o fizesse se não fosse noiva. Parece-me até que o fazia, mas assim...

— Esta vida de aldeia! exclamou Daniel, num tom de supremo enfado. Esta vida de mexericos e de maledicências velhacas! Praga maldita das terras pequenas, onde faltam coisas sérias em que pensar! Ora vejam no que esta gente se ocupa? Em saber o que eu faço, como vivo, para onde vou, com quem converso; e isto entretêm-na! Então repararam já em eu passar por aqui? Como se não fosse coisa muito natural conversar consigo, Clarinha. Pois não somos nós parentes quase?
— Isso dizia eu à...

Um sinal de Margarida obrigou-a a interromper-se. Limitou-se a dizer, mutilando a frase e mudando a inflexão: — Isso dizia eu.
— Afinal, não há como viver na cidade – continuou Daniel. Lá pode um homem conversar com uma senhora, apertar-lhe a mão até, que ninguém repara nisso. Aqui andam a espiar tudo o que se faz e a tomar tudo a mal. Que costumes estes! E Daniel prosseguiu numa longa imprecação contra a vida campestre, exaltando a urbana, o que demorou, ainda por muito tempo a conversa.

No fim dela, renovou Clara o pedido, e conseguiu que Daniel, depois de alguma resistência, lhe dissesse a sorrir: — Pois bem; esteja certa que eu farei com que não falem de mim. Não me hão de ver mais aqui. E partiu.
— Estás satisfeita? Perguntou Clara, voltando-se para a irmã, logo que o perdeu de vista.
— Não, respondeu esta.
— Por que não?
— Queria que fosses tu a que deixasses de aparecer, e não lhe falasses assim.
— Por outra, tornou Clara levemente despeitada, querias que eu fosse grosseira.
— Não, respondeu Margarida, abraçando-a, queria que fosses prudente.

Capítulo XXXII

Daniel cumpriu a promessa que fizera. No dia seguinte, à hora costumada, não passou por casa das duas raparigas. Era para admirara nele esta pronta condescendência às opiniões do público. A própria Clara não tinha esperado encontrá-lo tão dócil; não ousamos dizer que também o não tinha desejado, ainda que dos frequentes olhares que dirigia para o sítio, donde todos os dias costumava vê-lo aparecer, alguém tiraria talvez esta ilação. Cerrava-se a noite. Havia muito tempo que o toque das ave-marias tinha ido se perder nas mais distantes serras, que limitavam o horizonte. O fumo das choças e das herdades difundira-se sobre a aldeia. O zumbido dos ralos, essa incômoda sinfonia, com que rompem no estio as harmonias do crepúsculo, era atordoador.

Principiavam a cintilar as estrelas no céu, apenas muito para o ocidente, uma estreita faixa restava ainda do dia que fenecera. Clara saiu de casa, em direção a uma pequena fonte que havia nas proximidades dela, e ao final da estreita rua, que acompanhava o muro dom quintal. De dia, era esta fonte muito procurada, em virtude da excelência das águas, gabadas de tempos imemoriais, pelos clínicos da localidade, quase como milagrosas em infinitos casos de doenças. Não obstante a absoluta carência de princípios medicinais não justificar a nomeada. Depois das trindades, porém, o solitário e sombrio do lugar afugentava a gente supersticiosa do campo.

Clara, criada de pequena por aqueles sítios, e desde então costumada a não os temes, de propósito escolhia estas horas para mais à vontade fazer sua provisão de água, e demorava-se ali sem a menor sombra de terror, antes cantando sempre, com ânimo desafogado. Como o leitor decerto prevê, não era nenhum monumento arquitetônico a fonte de que falamos. Imagine-se uma boca de mina, aberta na base de um pequeno outeiro, que, todo assombrado de pinheirais, se alongava a distância, na direção do norte da aldeia; uma telha, meio quebrada, servindo de bica; e a receber o abundante e inesgotável jorro de água límpida, uma bacia natural por ele mesmo cavada, e onde, à vontade, vegetavam os agriões ávidos de umidade. Do pinhal sobranceiro descia-se à fonte por alguns degraus grosseiramente abertos, havia muito tempo, no terreno saibroso do outeiro, e aperfeiçoados pelo trilho cotidiano dos que se serviam dos atalhos do monte com o fim de encurtar distâncias dali a diversos pontos da aldeia.

Ao lado, e separado alguns passos da fonte, abria-se um desses enormes barrancos rasgados pelas torrentes de sucessivas invernos e cuja entrada quase disfarçavam os troncos robustos dos fetos e das giestas que, crescendo livremente, haviam atingido proporções quase tropicais. Quando Clara chegou à fonte, não havia lá ninguém. A cantar, aproximou-se dela, e ajoelhando, principiou a encher o cântaro de barro que trazia. A água caiu ao princípio ressoante no interior do vaso; depois amorteceu gradualmente o som, à medida que subia o nível do líquido; este dentro em pouco transbordava. Clara ia levantar-se. Na posição em que estava, tinha voltadas as costas para a entrada do barranco. Neste momento pareceu-lhe ouvir algum rumor daquele lado. Não foi superior a um vago sentimento de susto. Voltou-se inquieta. Deu com os olhos numa forma escura, e em breve reconheceu mais claramente ser um vulto de homem, que se aproximava dela.

Soltando um grito, Clara ergueu-se de súbito para fugir. Segurou-a a tempo um braço e falou-lhe uma voz conhecida: — Que vai fazer? Não se assuste. Sou eu. Era a Voz de Daniel.
— Santo nome de Jesus! exclamou Clara ao reconhecê-lo e ainda tomada de susto. O que faz por aqui?
— Vim vê-la, respondeu Daniel, com a maior naturalidade.
— Então é assim que cumpre o que ontem me prometeu?
— Pois que prometi eu, senão fazer com que me não vissem? É o que faço, vindo agora só e aqui.
— É pior, muito pior isto, disse Clara, lançando-se em volta de si olhares de inquietação.

— Não é, continuou Daniel. Pois não me disse que não desconfiava de mim? Não foi só por condescender com os reparos tolos de meia dúzia de curiosos e de velhacos que me pediu... que exigiu de mim que não viesse? Falando-me assim, neste sítio e a esta hora, não pode recear alguém. Lembra-se de me haver dito que o povo tinha medo de passar de noite por aqui.
— Mas, apesar disso. Jesus, meu Deus! continuava Clara sobressaltada. E para que havia de procurar falar-me? que tem que me dizer? Daniel sorriu.
— Que pergunta a sua Clara! Imagina lá a minha vida na aldeia? devoram-me desejos de conversar. Mas não tenho com quem. Privando-me de a ver, Clarinha, afastava-me da única pessoa, das que até agora tenho encontrado, com quem se pode sustentar uma conversa seguida e agradável. Veja se não seria crueldade me proibir...

— Não diga isso, respondeu Clara. Eu entendo-o às vezes, sim; mas é quando todos o entendem também; quando a sua conversação mais me entretém, tenho notado que muitos o escutam como eu, com atenção. Mas doutras vezes... Neste ponto Clara se reteve, como se receasse terminar.
— Doutras vezes? repetiu Daniel sorrindo.
— Doutras vezes não o entendo, e é sobretudo quando fala só para mim.
— Não me entendes? Perguntou Daniel, com uma inflexão de voz, que fez estremecer Clara.
— Não, não o entendo porque não posso... porque não quero... porque não devo acreditar na verdade do que me parece entender.
— E quando lhe falei assim, diz-me?

— Um dia, começava a falar-me desse modo em casa daquele doente que foi ver. Doutra vez... Oh! e dessa! foi aquela noite da esfolhada, em casa de seu pai.
— E não me entendeu nessa noite?
— E queria que o entendesse?
— Pois não deve ser o desejo de quem fala? Perguntou Daniel dum modo jovial.
— Eu ouço dizer que há muitas pessoas que falam a dormir, quanto dariam esses por não serem entendidos, então?
— Mas eu nunca fui sonâmbulo, Clarinha.
— Tanto pior para si.
— Por quê?
— Porque então é mau.
— Mau!

— Mau, sim. Eu não sei de maior maldade do que a daqueles que andam por aí a inquietar o sossego das famílias, a alegria dos corações, e só por gosto e fazer infelizes.
— Então eu...
— Basta, Sr. Daniel. Se é homem de bem, retire-se ou me deixe retirar, disse Clara, com arde seriedade e nobreza que o impressionou.

Dando também às suas palavras mais grave tom, Daniel respondeu: — Escute, Clara. Acredite que não fala com um homem de sentimentos perdidos; escute-me e tranquilize-se. Eu conheço em mim um princípio mau, é verdade; mas creia que não lhe ando tão sujeito que nem compreenda já a força dos meus deveres. Conceda-me ainda um pouco de consciência. As vezes, muitas vezes até, deixo-me arrastar por esta força, que me leva a loucuras, que chega talvez a se aproximar de uma vileza... mas, ao chegar ai, até hoje tenho resistido e espero... Perdoem-me isto, por quem são. Cedo me verão arrependido.

— Cedo! e quando é cedo ou tarde? sabe-o lá? Quem lhe há de dizer que é cedo? Cedo para si poderá ser; e para outros também? Há poucos dias, que todos por aí só falavam de uma pobre rapariga, a quem, por divertimento o Sr. Daniel trazia quase doida. Está arrependido, não é verdade? Mas arrependeu-se cedo para ela? Amanhã poderiam dizer de mim...
— Que hão de dizer, Clarinha? Essa rapariga de que fala, não fui eu que a fiz doida; engana-se; encontrei-a já assim. Eu não trabalhei para a perder; também se engana; os seus é que se esforçaram por a darem por perdida. A Clarinha esquece que a si todos respeitam e que...

— Não é verdade. Em que sou eu mais que as outras? Ninguém está acima das vozes do mundo. E se até agora tinha razão para não me importar com elas, por me não julgar culpada, teria de as temer, se continuasse a ouvi-lo aqui. Adeus.
— Vejo que me enganava ainda ontem, dizendo-me que tinha confiança em mim. Esses receios...
— Enganaria; mas enganava-me a mim mesma, também. Eu não sei mentir. E a prova é que sinceramente lhe digo agora que desconfio.
— De mim?

— De si, sim, por que não? As suas ações não são leais. Vê que, vindo procurar-me aqui, me pode perder, e não se importa fazê-lo; peço-lhe que se retire, e teima em ficar; peço-lhe que me deixe retirar, e impede-me. Brinca assim com minha reputação sem se lembrar que sou quase já a mulher de seu irmão, quase a filha de seu pai, quase sua irmã também. Diz que sabe quais são seus deveres... e como é que os cumpre então? Se Pedro passasse por si, neste momento, e lhe abrisse os braços, como a irmão que é, teria valor para o abraçar, diga? Não fugiria antes dele como um criminoso? Fale. Daniel curvava a cabeça, sem coragem para responder.

Clara prosseguiu: — Peço-lhe pela alma de sua mãe, que nunca mais me procure aqui, que nunca mais me procure em parte nenhuma. Ontem ainda me ri eu dos avisos que recebia para me acautelar; hoje, já não sinto vontade de me rir. Tinham razão eles, tinham; agora o vejo; e este meu gênio é que me podia perder. Se por mim não é bastante lhe pedir, peço-lhe por seu irmão, por sue pai, e por si mesmo, que assim anda a perder o crédito de um nome, que nenhum dos seus nunca deixou de honrar.

— Está sendo muito cruel para mim, Clarinha. Concordo que fui imprudente, inconsiderado, mas... Confesso-lhe que a impressão que me causou e que me causa...
— Sr. Daniel, eu não quero saber os seus segredos. Deixe-me retirar.
— Pois bem, será esta a última vez que a procuro, que lhe falo até, que a vejo, se tanto exigir de mim; mas ao menos desta vez há de escutar-me.
— Mas, para que preciso eu escutá-lo? Dizia Clara pelo tom de exaltação que ele falava.

Daniel continuou: — Todos só têm palavra para me censurar, e ninguém há de ver um dia claro no meu coração? Ninguém, melhor do que eu, conhece a fraqueza ingênita deste caráter, que não sabe lutar; mas o que eu não sei, o que eu peço que me digam é o remédio para este mal. Clara, não procure fugir sem ouvir-me. Retirar-se-ia supondo pior do que sou, como todos que me conhecem. Eu quero que ao menos uma pessoa saiba a verdade a meu respeito. Escute. E, ao dizer isto, segurava o braço de Clara, que temia de inquietação. Neste momento, os passos de uma cavalgadura a trote rasgado soaram próximos, no caminho que vinha terminar defronte do lugar onde esta cena se passava. Clara não pode reprimir um grito de susto.
— Jesus, que estou perdida! exclamou ela; e soltando o braço que Daniel lhe segurava ainda, fugiu na direção de casa.

Antes, porém, de transpor a esquina que a devia ocultar às vistas de quem quer que era que se aproximava, e de conseguir fugir pela porta do quintal, o cavaleiro, tendo-a avistado e conhecido bradava rijo: — Ó Clara, Clarita! Rapariga! Ó pequena! Pschiu! Eh! Onde vais com essas pressas? Não são os franceses, sossega. O homem que bradava assim, era João Semana, que voltava de uma visita distante. Vendo a Clara a fugir tão apressada, conjeturou que ela se assustara, supondo-o algum facinoroso ou mal-intencionado, e por isso berrava para lhe fazer perder o medo. Mas ao aproximar-se da fonte, o velho cirurgião descobriu alguma coisa, que lhe pareceu procurava ocultar-se dele.
— Hum! murmurou consigo o velho. Pelos modos, o susto da rapariga era de outra espécie... Há de ser o Pedro.

E acrescentou em voz alta: — Olá, não fujas, rapaz; não é crime nenhum vir falar assim com uma noiva; ainda que, para dizer a verdade, escusava de ser tanto às escondidas, escusava. E com isto foi dirigindo o cavalo para aquele vulto, que parara, desde que viu que não podia fugir sem ser percebido. À medida que se aproximava, João Semana principiou a duvidar que fosse Pedro, o homem da entrevista noturna. Parecia-lhe menos corpulento do que o primogênito de José das Dornas. A esta suspeita, sulcou uma ruga profunda o longo da fronte do honesto celibatário, que decidiu consigo averiguar aquele mistério.

Capítulo XXXIII

Tendo formado esta resolução, João Semana picou a espora de sua égua, a qual, estranhando a insólita amabilidade, de um salto o apresentou junto de Daniel que era, como o leitor sabe já, o vulto em questão. Daniel, vendo-se descoberto, julgou que o melhor partido era entrar em jogo rasgado.
— Boas-noites, colega, disse ele em tom prazenteiro, e caminhando para João Semana.

Este deu uma estremeção na sela ao reconhecer o seu jovem confrade. O não muito favorável conceito que ultimamente formava dele, em relação a certas qualidades morais, fê-lo agourar mal de sua presença naquele lugar.
— Ah! Ah! Você por aqui! Anda a fazer versos?
— Ou a me inspirar para isso.
— Não é mau o sítio, não. E ao mesmo tempo pode dar-se a estudos de química também; a água desta fonte...
— Já me disseram que é medicinal.
— É excelente.
— Para que moléstias?

— Para muitas. Agora o que não sei é se para certos esvaimentos de cabeça também servirá. Bom era que sim, que anda por aí muito disso. Daniel fingiu não entender a alusão, e observou com modo natural.
— Está aqui muito agradável.
— Ai, o sítio é bom, lá isso é. E para a caça? Não gosta de caçar?
— Alguma coisa.
— Pois por estes montes há caça famosa. Ainda agora, quando eu vinha, fugiu daqui uma...lebre, e com uma pressa admirável. Não a viu?
— Não, não vi.

— O que é ser poeta! Não se vê coisa nenhuma. Com os meus oitenta anos vejo eu melhor. Pois é verdade; atravessou neste mesmo instante por esta rua... ia a jurar até que se escondeu ali no quintal; pareceu-me vê-la escapar através daquela porta.
— Tens boa vista, João; mas não tão boa, que te não passe por alto um amigo velho. A voz, que dissera estas palavras, parecia vir do ar.

João Semana levantou a cabeça e deu com os olhos do reitor muito pachorrentamente estabelecido sobre o tronco de um pinheiro derrubado no topo das escadas que desciam do outeiro. João Semana ficou espantado com a tal descoberta, e só isso o impedia de notar que Daniel o não ficara menos. Quando, porém, desviou para este os olhos, encontrou-o já sem sinal de perturbação, e até anediando os cabelos com toda a naturalidade. As suspeitas, vagamente concebidas pelo cirurgião, desfizeram-se.
— Que diabo fazeis vós ambos aqui? e tu então de poleiro, abade?
— É que isso aí embaixo é úmido como um charco, e eu não quero te dar o que fazer com o meu reumatismo, João. Mas eu desço, eu desço.
— Não, não, deixa-te lá estar. Lá por isso..
— Não que vão sendo horas também de me chegar até casa. Pois é verdade, continuava o pároco, apoiando-se na bengala, e descendo, com vagar, e cautelosamente, aos poucos suaves degraus, cavados no saibro do monte – pois é verdade; estávamos nós aqui, eu com o Daniel e a Clarita, a conversar...
— Ah! bem me pareceu que era ela...
— Era ela, sim. Então que dúvida? Olha que sempre fizeste uma descoberta!
— Mas para que diabo fugia a rapariga, então?

— Diz antes por que diabo não fugimos nós. Mas o meu reumatismo é que me não deixou. Quando me hás de tu dar um remédio para isto, homem?
— É pregar com os ossos nas Caldas, querendo. Mas, dizias tu fugir? Para que haviam de fugir de mim?
— De todos. Quando se conspira...
— Então vocês?
— Conspirávamos, sim, senhor. Aqui mesmo onde nos vê, estávamos a combinar uma coisa...
— Que diabo era o que combinavam?
— Combinávamos...

O reitor achava-se um pouco embaraçado por nada lhe ocorrer a propósito; por isso exclamou para contemporizar: — Que maldito costume tu tens, João, de estar sempre com o nome do inimigo na boca! Perde-me esse jeito.
— Pois sim, sim; hei de fazer por isso, apesar de que já vou um pouco tarde. Eu digo agora como aquele franciscano a quem repreendiam por, já na idade avançada, cair anda na fraqueza, em que Noé caiu: "Já agora hei de morrer com isto, dizia ele; porque de duas uma: ou já estou condenado, e então não sei que lhe faça; não vale a pena a emenda; ou não estou, e quem pode perdoar uma bebedeira de quarenta anos, não deve por dúvida em perdoar a de meia dúzia mais". Mas então o que combinavam vocês? A renovação da pergunta, depois da referência do caso, fez perder ao reitor as esperanças de eximir-se a responder.

Quando João Semana conservava uma ideia fixa, través da narração de qualquer anedota de frades, era para dificilmente a deixar. Conhecendo isto por experiência, o reitor resignou-se; e, ainda sem saber o que dizia, principiou a responder: — Combinávamos... E fingindo arrepender-se, exclamou: — Mas é boa essa! Não há senão perguntar. Tu não deves entrar no segredo. A coisa é entre nós três.
— Homem, diz lá o que é. Que diabo... Um gesto dom pároco obrigou João Semana a corrigir-se.
— Que S. Pedro de escrúpulos são esses agora?

A substituição do nome do espírito maligno pelo do apóstolo não lhe valeu a resposta que pedia, e que o reitor de boa vontade lhe dera, se a tivesse para dar: — E a teimar, dizia o padre ganhando tempo. Sempre és um curioso. Daniel interveio enfim: — Olhe, Sr. João Semana, basta que saiba, e depois não pergunte mais nada, que estávamos preparando uma surpresa a meu irmão Pedro, para o dia do casamento dele.

O reitor franziu as sobrancelhas, ao ouvir Daniel. Apesar do auxílio que ele viera lhe dar, desgostou-o a presença de espírito que mostrava, quando devia estar enleado de confusão e de vergonha; foi por isso que acrescentou com num evidente tom de severidade e irritação: — Casamento que, se Deus quiser, hei de brevemente abençoar. Estás agora satisfeito, João semana? Pois é verdade. Daniel meditava grandes novidades para o dia do casamento do irmão, grandes festas por causa dele e da noiva, et cetera, et cetera. Mas o seu projeto não mereceu, nem merece a minha aprovação. Daniel baixou os olhos ao ouvir estas palavras do padre.

Este prosseguiu: — Clara pensa como eu, mas este homem é obstinado, e através de tudo, teima em seguir sua vontade; mas eu protesto que...
— Vejo que não me entendeu, Sr. Reitor, disse Daniel com vivacidade.
— Entendi, entendi, homem. E julgo que não acho a propósito entrar agora em maiores explicações. Daniel guardou silêncio.

— Mas não podiam tratar disso em casa? teimou João Semana, que não largava assim facilmente uma ideia, de que se tivesse apossado.
— E a dar-lhe! Não há que se lhe faça, dizia o reitor. Homem, nós não queríamos que a Margarida soubesse nada disto, por quê... por quê... Mas tu vais a cavalo, e nós a pé. Segue o teu caminho, e apressa-te, que a Joana já há de estar com cuidado pela tua demora.
— E eu com vontade à ceia.
— Então, por que esperas? Vai com Deus, homem.
— Até amanhã, abade. Adeus, Daniel. Olhe lá como se porta, rapaz. Juizinho! senão está malservido com a sua vida. Lembre-se daquele frade...
— Aí, se te pegas a contar histórias, não chegas a casa à meia noite.
— Pois já não conto. E fustigando a égua, desapareceu cedo da vista dos dois.

Logo que se afastou, Daniel ia dirigir-se ao padre: — Sr. Reitor, foi providencial a sua vinda. Acredite porém... O gesto cheio de severidade, com que o reitor o acolheu, não o deixou continuar: — Basta. Não quero escutá-lo. Explicações não as preciso, por que ouvi tudo; justificações não as tem, não as pode ter, para dar. Boas-noites. E, colocando-se diante da porta de suas pupilas, à frente da qual haviam chegado, afastou-se para deixar passar Daniel: — Mas... ia este a dizer: — Boas-noites – repetiu secamente o reitor, e tão secamente, que fez perder a Daniel a coragem de insistir. Curvando-se com respeito diante do velho, retirou-se dali. O reitor, ficando só, entrou em casa das raparigas. Depois de trocar algumas palavras com Margarida, chamou de parte Clara, e em tom um pouco desabrido, disse-lhe: — Julgo que recebeste hoje um aviso do teu Anjo da Guarda, Clara. Olha agora se o aproveitas.

Quando a rapariga, levantando para ele os olhos, ia a interrogá-lo, o padre afastou-se, dizendo-lhe simplesmente: — Adeus. Dissera bem o reitor. Clara ouvira de fato o seu Anjo da Guarda. Aquela noite conheceu o perigo do caminho que seguira, a sorrir; e resolveu fugir-lhe. E iria já a tempo? pensava ela. Da involuntária entrevista, que tivera com Daniel, saíra salva de todo? de todo livre de suspeitas? A voz de João Semana, chamando-a de longe, mostrava-lhe que ela fora reconhecida. Mas que se passara depois? O reitor parecia também estar informado do sucedido. Como o teria suspeitado ou previsto? Mas, por outro lado, o tom moderado das palavras que lhe dissera, levou-a a crer que ele conhecia a verdadeira extensão da sua culpa, e não a exagerava. No meio desta corrente de pensamentos, Clara, às vezes estremecia. Se no dia seguinte, lembrava-se então, se levantasse contra si um desses boatos surdos, rápidos a propagar-se, prodigiosos a crescer, que infama, que mancham de lodo as mais firmes reputações, e inoculam seu veneno sutil numa existência inteira? A esta lembrança, Clara erguia as mãos com terror.

Aos pés de uma imagem da Virgem, pedia então misericórdia, e prometia evitar, dali em diante, todas as ocasiões de novos perigos. Daquela condenação, cuja lembrança bastava só para a assustar assim, a salvara um acaso... ou antes a Providência. O reitor, a cujos ouvidos continuavam a chegar todos os dias vozes desfavoráveis a respeito de Daniel, andava inquieto por causa da assiduidade com que o vira frequentar as proximidades da casa das suas pupilas. Aquelas prolongadas palestras, da rua para a janela, podiam dar que falar, receava ele; e cedo viu que efetivamente iam já dando. Qual não foi, pois, o seu desassossego, quando da casa de um pobre enfermo que fora confessar, viu às trindades daquele dia, passar furtivamente, e meio disfarçado, um homem, que, apesar e todo o disfarce, o reitor logo conheceu ser Daniel.

Deu-lhe uma pancada o coração, e, mal que pôde, desobrigou-se de sua santa tarefa, saiu apressado, e correu à casa de Margarida, a quem perguntou pela irmã. Sabendo que naquele momento ela tinha saído para a fonte, para ali se dirigiu também o velho, mas por outro caminho, que o levou ao próximo pinheiral. Chegou ali justamente quando Daniel aparecia a Clara; e pôde, sem ser visto, assistir a todo o diálogo entre os dois. Foi por esta forma que o reitor, a quem muitas vezes estava confiado o papel de Providência na sua paróquia, conseguiu salvar oportunamente a boa fama de Clara, no conceito de João Semana, e provavelmente, na opinião geral da terra. Se as recordações desta noite agitavam o espírito de Clara, não deixavam mais indiferente e tranquilo o de Daniel. Cruzando a passos largos o pavimento do quarto, velou grande parte da noite. Poucas provações mais amargas há para os caracteres humanos do que a de se sentirem desprezados pela própria consciência.

Experimentava-o Daniel, então: — Têm razão os que desconfiam de mim – pensava ele – conhecem-me melhor que eu próprio. Que sutis distinções ando eu a marcar por aí, entre o meu proceder e o de muitos miseráveis, que me causam tédio e desprezo? Que ridículas lamentações de homem não compreendido são as minhas? É no que se vingam sempre aqueles, cujos sentimentos inspiram aversão geral... Clamam-se que ainda não encontraram o espírito ou coração de harmonia com o seu. Vejamos. Pois não é infame o meu procedimento? Que lhe falta para ser completamente infame? Que espero eu de Clara? Para que a persigo? Para que a procurei hoje? – Não hesitei em dar estes passos, que, na aparência, a podem perder... E hesitaria em perdê-la na realidade? Quem mo assegura? tenho acaso certeza disso?

E, passeando mais agitado ainda, conservou-se por muito tempo sob o domínio desta ideia. depois continuou com mais exaltação: — Tenho, sim. Não rebaixemos também a tal ponto os nossos sentimentos. Eu sou volúvel, imprudente, inconsiderado; conheço e odeio-me, quando me vejo assim; porém não sou perverso, porém, não sou capaz de uma traição infame... Queria que me acusassem de tudo, mas que não me suspeitassem disso, e muito menos Clara, essa generosa rapariga, e muito menos o reitor, esse homem honrado... Mas o que importam as minhas intenções, se dou lugar a que se diga, a que se possa pensar em calúnia! Se não fosse hoje o reitor, a quem a Providência parece haver inspirado, que se diria amanhã nesta mexeriqueira terra? De mim, digam lá o que quiserem; mas daquela rapariga... É tempo de me fazer outro homem. E poderei consegui-lo? este meu temperamento é de uma mobilidade! pequenas coisas fazem-lhe perder o equilíbrio, que por momentos a razão consegue dar-lhe.

Será pois isto em mim um mal incurável! É verdade que os médicos falam de certos estados nervosos, que pequenas impressões sustentam e exacerbam, e que, muitas vezes, uma profunda comoção consegue serenar, dando a esses pensamentos a estabilidade que não tinham. O estado de meu coração é assim. Talvez ainda não experimentasse a têmpera, que tem de o fortificar; talvez. Em todo o caso devo lutar comigo mesmo. Mas poderei resignar-me à má opinião que de mim conserva aquela rapariga? Não; preciso falar-lhe uma vez ainda para que me perdoe e restitua a sua confiança; serei depois para ela um amigo sincero, um verdadeiro irmão. Hei de falar-lhe.

Capítulo XXXIV

Uma noite, depois de dormido o primeiro sono, ergueu-se Pedro, como solícito proprietário, para ir rondar um pinhal, distante da casa, onde, segundo informações recebidas, se tinham ultimamente praticado alguns roubos de pinheiros. Ao vê-lo sair, o criado mais velho da casa, o mesmo ao qual vimos Daniel disposto a fazer compreender a teoria dos eclipses, quis acompanhá-lo: — Deixe-me ir contigo, Sr. Pedrinho.
— Vai-te daí, homem; eu não sou nenhuma criança, para precisar de companhia.
— Mas...
— Deita-te; já te disse. E o noivo de Clara saiu, de espingarda ao ombro, e assobiando uma toada popular. Apesar da quase certeza que tinha de se não encontrar àquela hora com o principal e constante objeto dos seus mais gratos pensamentos, dirigiu o itinerário, com prejuízo da economia de tempo, pela rua em que morava Clara. É que é já um prazer contemplar os muros, a cujo abrigo se sabe repousar a mulher que se ama; prazer inocente, entre os que mais o são, e que, desde tempos imemoriais, os amantes saboreiam.

Fique a leitora sabendo que, muitas vezes, enquanto dorme, se lhe estão fixados nas janelas, desapiedadamente cerradas e obscuras, os olhos ardorosos de alguns desses tresnoitados passeadores. À medida que se aproximava do lugar, que o obrigara a este rodeio, ia diminuindo Pedro a velocidade da marcha. Chegou perto do muro do quintal, e, insensivelmente parou. Lembrou-lhe que bem podia ser que, apesar do adiantado da hora, Clara estivesse acordada, pensando nele talvez. Que amante deixaria de fazer, nas mesmas circunstâncias, iguais suposições? Como meio de verificação, pôs-se a cantar: Meia noite, tudo dorme;

Só eu não posso dormir;
Pois não me deixa este amor,
Que me fizeste sentir.

Depois de pequena pausa, continuou:

Este amor que é minha vida,
Vida do meu coração,

Atrás do qual meus... A interrupção foi devida a certo rumor, que Pedro julgou ouvir dentro do quintal. Calou-se por isso, e pôs-se a escutar. Tudo caiu em silêncio. Aplicando, porém, o ouvido à fechadura, pareceu-lhe perceber o murmúrio de vozes abafadas: — Quem anda aí dentro? Perguntou em voz alta Pedro, batendo à porta. Ninguém lhe respondeu. Continuou a escutar, e de novo julgou distinguir o mesmo som. Ia interrogar outra vez, mas, refletindo mudou de plano. Continuou o seu caminho cantando: Este amor, que é minha vida,

Vida do meu coração,
Atrás do qual meus suspiros.

E meus pensamentos vão. E seguiu, cantando assim, até certa distância da casa; e depois, retrocedendo, voltou com todas as cautelas, para junto da porta donde viera o rumor que o estava inquietando: — Se fossem ladrões, pensava Pedro – que haviam de fazer as pobres raparigas, neste sítio solitário, e sem braço de homem em casa para as defender? E este pensamento o decidiu a não sair dali sem averiguar aquilo. O seu estratagema prometia produzir efeito. Desta vez não era possível a ilusão. As vozes percebiam-se distintamente, e como em conversa acalorada, e, entre elas. Pedro julgou reconhecer uma de mulher. Então, sentiu ele um doloroso constrangimento de coração. Uma ideia terrível, súbita e sinistra, como a luz do relâmpago, lhe iluminou o espírito, e, pela primeira vez, concebeu suspeitas que o fizeram estremecer.

— Se Clara... murmurou, subjugado por aquela ideia. E um tremor convulso passou-lhe pelos membros com tal violência, que o constrangeu a apoiar-se à ombreira da porta para não cair. Naquele estado, a pulsação febril das artérias das fontes, impediu-o de escutar mais nada; o coração palpitava-lhe tão agitado que o ouviu bater. O som das vozes tornava-se mais audível, como se aproximassem da porta as pessoas que assim conversavam. Pedro levou maquinalmente a mão ao gatilho da espingarda e ficou à espera com a vista fixa e a respiração reprimida. Era terrível o seu olhar naquele momento. Ouviu-se o voltar da chave na fechadura, a porta abriu-se lentamente, e um diálogo, travado a meia voz, chegou aos ouvidos de Pedro; mas a energia da vertigem, que lhe tomara os sentidos, não lhe deixava perceber, senão de maneira confusa.

— Foi para lhe dizer isto, só para lhe dizer isto, que consenti em ouvi-lo aqui – dizia a voz feminina. Bem vê que seria uma loucura, se continuasse; mais do que uma loucura, seria um pecado até. Agora espero que cumpra a sua promessa. Mostre que é homem de bem. Adeus.
— Adeus, respondia-lhe outra voz. E perdoe-me se não posso ainda dizer friamente esta palavra. Mas verá se saberei emendar-me. Obrigado pela confiança que teve em mim. Adeus.

E, depois disto, um homem, todo envolvido numa capa comprida, saiu da porta do quintal, tendo antes apertado a mão, que se lhe estendia de dentro. Pedro mal tinha ouvido, e mal conseguia ver tudo aquilo; passava-lhe pelos olhos como que uma nuvem de fogo. Correu para este visitador noturno com a impetuosidade, de que o animava a raiva e, apontando-lhe ao peito a espingarda, gritou com um rugido aterrador: — Alto, miserável! Para, ou está morto! O homem ficou imóvel. Dentro do quintal se ouviu então um grito dilacerante, e a porta, violentamente impelida, veio fechar-se de encontro aos batentes. Pedro rompeu para o desconhecido, que recuou diante dele: — Quem és? Quero conhecer-te antes de te matar, infame!

E como o embuçado cada vez procurasse ocultar-se mais, Pedro lançou-lhe a mão, e, com um movimento rápido, descobriu-lhe o rosto, arrojando no chão a capa com que se envolvia. O luar bateu em cheio nas feições do outro. Reconheceu Daniel. É inexprimível em linguagem conhecida o que neste momento se passou no coração do pobre rapaz: — Daniel! bradou ele sufocado, pela intensidade da comoção que recebera. Daniel conservava-se mudo e abatido. Dir-se-ia fulminado. Houve um longo espaço de silêncio.

Pedro sentiu que se lhe formava no coração uma tempestade medonha; um raio de razão que lhe luzia ainda, inspirou-o para dizer em voz já cava e abafada: — Por alma de nossa mãe, Daniel, por alma de nossa mãe, sai daqui, se não queres que suceda alguma desgraça.
— Ouve Pedro, escuta-me, tentou dizer Daniel; mas as palavras a custo se lhe articulavam, e a voz prendia-se na garganta.
— Daniel, foge, foge daqui, se me não queres perder! foge, irmão! bradava Pedro, e, como que já sem consciência, contraiam-se lhe espasmodicamente os dedos sobre o gatilho da espingarda. Daniel ia falar-lhe ainda, quando sentiu uma mão pousar-lhe no ombro, e, em seguida, um homem que, durante o ocorrido se aproximara do lugar, veio interromper-se entre ele e o irmão.
— Retire-se, exclamou este homem com voz severa, voltando-se para Daniel. Eu tinha previsto esta desgraça. Era o reitor.

Ia a dirigir-se depois a Pedro, mas já não o encontrou ali. O padre estremeceu: — Meu Deus, é preciso evitar algum crime. O rapaz vai louco. Pedro batia violentamente com a coronha da espingarda na porta do quintal, que pouco lhe poderia resistir. Daniel vendo-o, ia correr em defesa da mulher, cujo futuro perdera talvez irreparavelmente. O padre susteve-o com energia, pouco de esperar naquela idade avançada: — Retire-se, bradou com voz vibrante exaltada. Não está ainda satisfeito com a sua obra? Quer acabar de perder aquela pobre rapariga?
— Mas ele vai matá-la!
— Estou eu aqui para velar por ela. Cabe-me esse direito, que me foi conferido por sua mãe no leito, onde agonizava. Retire-se.

O reitor naquele momento transformara-se; sublimara-se a ponto de exercer um império completo na vontade de Daniel; no olhar do velho parecia haver não sei que influxo magnético, que obrigou Daniel a baixar a cabeça e a retirar-se, constrangido por irresistível impulso. Pedro tinha arremetido contra a porta do quintal com verdadeira desesperação. Um pensamento sinistro o dominava; a raiva do ciúme e da vingança perturbava-lhe a razão. Afinal a porta cedeu. Pedro penetrou no quintal como verdadeiro louco; empeceu-lhe, porém, os passos uma mulher que lhe caiu aos pés, bradando: — Pedro, Pedro, não cause, não queira causar a minha perdição. Este grito fê-lo recuar. A voz desta mulher, que o implorava assim. Pedro passou da agitação do delírio à imobilidade do letargo: — Que é isso? Bradou, enfim, como ao acordar de um mau sonho. Margarida aqui?

Era efetivamente Margarida a mulher, que de joelhos e mãos erguidas lhe jazia aos pés. Desenhava-se no rosto da simpática irmã de Clara o mais violento desespero; e quem sabe o que lhe ia no coração. Era pois Margarida a que tivera a entrevista com Daniel? Abençoada suspeita iluminou pela primeira vez as trevas do espírito atribulado do pobre Pedro! Abençoada lhe chamei, pelo conforto que gerou; porque na horrível tortura de coração daquele desgraçado, foi um bálsamo consolador.

— Margarida, disse-lhe ele, trêmulo de incerteza e de esperança, fale-me a verdade. Em nome de Deus, diga-me; quem estava aqui com Daniel? Diga-me, diga-me tudo pelo Salvador. Houve um momento de silêncio. Margarida parecia hesitar; por fora da porta apareciam já alguns rostos curiosos, que chegavam atraídos pelo ruído: — Quem estava aqui com Daniel? Perguntou Pedro. Na alma de Margarida alguma coisa se passou de terrivelmente doloroso que quase a fez desfalecer.

Fechando os olhos, como quem adota uma resolução desesperada, como quem se despenha num abismo, respondeu com voz trêmula, mas perfeitamente inteligível: — Era eu! A turbação em que estava não lhe impedia de perceber o sussurro das vozes que, de fora da porta, acolheu esta resposta. Pedro, alheio a tudo que o rodeava, ergueu as mãos para o céu; e rebentando-lhe as lágrimas dos olhos, exclamou: — Bendito seja Deus! Sirva de remissão dos meus pecados o tormento destes poucos instantes. Quando o pároco chegou, encontrou-os nesta posição. Caminhou com o rosto severo para a mulher que via ajoelhada, mas recuou também, espantado, ao reconhecer Margarida.
— Margarida! Pois era? O reitor suspendeu-se, antes de concluir, como se um pensamento súbito lhe ocorrera. Não pode ser, não pode ser. E aproximando-se de Margarida, tomou-lhe o braço, com energia, bradando-lhe: Que quer dizer isto, minha filha? Que fazes tu aqui?

Margarida juntou as mãos, e, olhando para o reitor com uma expressão particular, respondeu: — Peço misericórdia!
— Para que culpa, minha filha? Perguntou o padre, que não tirava os olhos dela.
— Para a minha...
— Para a... Entendo! disse ele, como falando para si. E devo eu consentir que? Talvez que tenha razão continuou, fitando em Margarida um olhar de bondade e quase de respeita, e acrescentou a meia voz: Seja como quiseste, como Deus to inspirou decerto. Depois se voltando para Pedro: E que tens mais que ver aqui, homem!
— Tenho que pedir perdão a todos.

O reitor empurrou-o amigavelmente pelos ombros, dizendo-lhe: — Vai, vai. Deixa isso para outra vez. Não temos agora vagar para justificações.
— Mas, Sr. Reitor.
— Então! Vai para a tua vida, Pedro. E não me andes mais de espingardas, que são más companhias.

Dando depois com os olhos nos poucos espectadores desta cena, que se conservavam boquiabertos à porta, exclamou, todo irritado: — E vocês que fazem aí pasmados? Quem vos chamou cá? Não sois tão prontos para o trabalho. Andar! e ter cautela com a língua. Ouviram? Pedro saiu cabisbaixo. Os grupos dispersaram. Logo que os viu retirar, o padre levantou Margarida, que se conservava de joelhos e quase exânime e lhe disse comovido: — Foi um sacrifício heroico, Margarida, para o qual poucas teriam fortalezas.
— Um sacrifício?
— Sim, não é a mim que iludiste, filha, que te conheço bem e há muito. Vai ter com a verdadeira culpada e...
— Não a condene, Sr. Reitor; o seu anjo bom não a abandonou ainda esta vez.
— Bem sei, respondeu o reitor. Pois não te vejo eu aqui? Mas vai, e acaba a tua obra abençoada, confortando-a e chamando-a ao caminho do arrependimento. Eu também tenho a minha tarefa. E dou graças a Deus por ter permitido que os meus deveres paroquiais me conservassem por fora até estas horas. Até amanhã, minha filha: E o reitor saiu, mas em vez de tomar o caminho de casa, voltou na direção oposta.

Capítulo XXXV

A cena a que, um tanto imprevistamente, fizemos, no último capítulo assistir o leitor, exige de nós algumas palavras de explicação. Releve-se nos, portanto, a rápida digressão retrospectiva, em que vamos entrar. Daniel, como tínhamos dito, prometera a si próprio falar uma vez ainda a Clara, para atenuar a má impressão que a sua última entrevista pudesse ter deixado no espírito da rapariga, e inspirar-lhe de novo a confiança perdida.

Parecerá talvez um meio singular este de corrigir os efeitos de um passo imprudente por outro mais imprudente ainda; mas a razão humana, sofismando com a maior candura do mundo, concebe muitas vezes projetos assim. Em Daniel, sobretudo, eram frequentes estas resoluções irrefletidas. Inspirava-lhes um sentimento de mal fundado brio; mas nem sempre era bastante a força do seu caráter para briosamente as sustentar até ao fim. Não aprendera ainda a desconfiar de si, a ponto de fugir como devia, a essas ocasiões de tentação. Foi por isso que, esquecido já das suas promessas a Clara, renovou outra vez os antigos passeios pelas circunvizinhanças da casa dela, sempre com esperança de obter a entrevista, que imaginara necessária à reivindicação do seu crédito. Clara evitava, porém, todos os ensejos de se encontrar com ele, constrangendo-se até, para isso, a uma estreita reclusão.

Depois da cena da fonte, prometera ela a sua irmã e ao reitor não falar com Daniel, até estar efetuado o casamento, que o pároco, mais do que nunca, procurou acelerar. Assim todas as tentativas de Daniel para vê-la e falar-lhe, ou na rua ou na janela, saíam-lhe baldadas. Longe de o desanimar, este mau êxito antes o estimulou, e irritado pelas dificuldades que encontrava, formou a resolução mais audaz. Um dia, entrando no quarto, Clara encontrou no chão e próximo da janela, que deixara aberta, um papel dobrado. Abriu e leu. Era um bilhete de Daniel a pedir-lhe, nos termos mais respeitosos, uma entrevista – a única. Alegava em favor da sua pretensão, o não poder se resignar à desconsoladora ideia de ser malconceituado por Clara; prometia e jurava respeitá-la como irmã, pois como tal a considerava já; e acrescentava que não deixaria de a perseguir, até que ela condescendesse a escutá-lo. Se receava, dizia ele no fim, que essa entrevista desse lugar a interpretações injuriosas, regulasse e impusesse elas as condições debaixo das quais a concederia.

Esta carta, que não primava em laconismo, parecia, em boa lógica, dispensar a entrevista requerida e na qual pouco mais restava a fazes do que desenvolver o tema, já tão extensamente assim parafraseado por escrito. mas a lógica não domina de ordinário situações daquelas. Clara não respondeu ao bilhete e continuou, mais que nunca, a evitar Daniel. De parte deste continuaram as imprudências, às quais servia de novo estímulo o despeito, esse poderoso fermento de paixões nas almas mais sujeitas a elas.

Outro bilhete, recebido por Clara da mesma maneira, instava ainda com maior veemência pela entrevista pedida. Clara estava para referir tudo a Margarida, mas faltou-lhe o ânimo. Este estado de coisas continuou por algum tempo mais; até que um dia Clara, animada de confiança em si, que não perdia nunca, e na boa fé, que depositava nas promessas dos outros, resolveu consentir em escutar Daniel.Não lhe prometia ele ser essa a condição indispensável para não a perseguir de novo?

— Acabe-se pois este constrangimento em que vivo, dizia ela. Que posso recear? A minha boa estrela não me abandonará. Formada essa resolução, seguia-se a regular maneira de a levar a efeito. A curiosidade pública trazia muito vigiada a casa das duas irmãs; era pois difícil iludi-la. Demais, a promessa feita ao reitor e à Margarida embaraçava Clara. Daí, diversos expedientes lembrados, pesados e postos de lado, até enfim terminar pela adoção do pior de todos. O excesso de prudência e as cautelas conduz muitas vezes a imprudências mais perigosas. Clara comunicou a sua resolução a Daniel; este, exultando pela confiança que nela via transluzir, agradeceu-lhe com efusão, e prometeu a Clara, e a si próprio, mostrar-se digno dela. Assim se preparava a entrevista, cujos resultados o leitor conhece já.

Margarida porém, que, observando as recomendações do pároco, continuava a espiar a irmã, não era de todo alheia ao que se passava. Naquele dia sobretudo julgou perceber nos modos de Clara certa preocupação, que a fez mais vigilante. Eram trindades quando Margarida ia, como costumava, fechar por suas próprias mãos a porta do quintal. Clara não lho permitiu; e com tal instância teimou em se encarregar desse cuidado, aquela noite, que Margarida teve pressentimento do que se estava preparando. Isto a obrigou a ficar de pé, depois de se recolher ao quarto. Apagou a luz para que lhe não suspeitassem a vigília, e não abandonou a janela.

Passado tempo, viu, e com que amargor da alma! confirmadas as suas suspeitas. Clara saia furtivamente de casa. Margarida não hesitou; e com passos incertos e o coração oprimido de tristeza, seguiu-a, sem ser sentida. Valeu-lhe para isso a espessura das árvores que orlavam os arruados do quintal. Naquele momento, mais comovida das duas não era decerto Clara. Enfim, ouviu-se o ruído de passos na rua exterior; a porta abriu-se, e Daniel apareceu. A impressão que neste momento experimentou Margarida, foi tal, que, quase a fez sucumbir. Cedo, porém, a reação daquela vontade enérgica, apesar de feminil, dominou a luta. Margarida continuou a observar.

Daniel, ao princípio, foi grave, e mostrou-se fiel à promessa que fizera; mas, pouco a pouco, influíram nele as condições singulares daquela entrevista. As palavras ganharam fogo e, em breve, animava-as já o entusiasmo impetuoso de vinte anos. Esquecia-se que viera para se justificar, e ia agravando a culpa. Clara, escutando-o, não conseguia disfarçar completamente a turbação que a dominava; mas foram sempre dignas da noiva de Pedro as palavras com que lhe respondia; assim a não traísse o tremor da voz, a ânsia de respirar, e, mais que tudo isso, o fato de se achar ali, só, naquela hora da noite, embora lhe atenuasse o delito o pensamento da generosidade, que a animara a cometê-lo. Mas os instintos nobres de Daniel só por momentos se deixavam adormecer com as insidiosas carícias da fantasia; pouco bastava para os acordar vigorosos. Desta vez produziu efeito a salutar cantiga de Pedro.

Escutando-o, ambos se sentiram arrependidos de se acharem ali. Viram claro toda a futilidade de motivos que, momentos antes, para eles justificavam de sobra este passo irrefletido, e curvaram a cabeça: — É meu irmão, murmurou, que fará aqui por estas horas?
— Trazido talvez pela mão de Deus para... disse, quase para si, Clara, no mesmo tom de voz.
— Adeus, Clara; perdoe esqueça mais esta imprudência minha. prometo-lhe que será a última. E de hoje em diante...
— Adeus. Foi neste momento que Pedro os interrompeu pela primeira vez. O resto já é sabido.

Quando, no momento em que Daniel saía, Clara reconheceu a voz do noivo, soltou um grito de terroso, e, fechando instintivamente a porta, caiu desfalecida na rua do quintal. Foi então que Margarida correu, que a arrastou nos braços para longe daquele sítio, e depois, sacrificando a sua reputação ao futuro da irmã, veio cair aos pés de Pedro, como a verdadeira culpada. O conceito que Pedro formava do caráter de Margarida não o tinha deixado imaginar sequer que pudesse ser ela a que aceitara a entrevista com o irmão. Apesar de todo o seu amor por Clara, era maior ainda a confiança que depositava em Margarida. O que viu depois o espantou, mas deu-lhe grande alívio.

Clara ignorou tudo quanto ultimamente se passara, pois durante todo este tempo, não recuperara os sentidos. A noite toda a levou num quase delírio, no qual imaginava ver Pedro e Daniel travando uma luta fratricida. Margarida, velando a cabeceira da doente, torcia as mãos de desespero: — Meu Deus! Meu Deus! dizia ela. Se lhe não passa este delírio, tudo está perdido. Pedro saberá a verdade. Pela madrugada, porém, Clara sossegou; um sono reparador acalmou-lhe a febre e, após ele, só ficou o abatimento e uma palidez geral que denunciava a crise terrível que tinha vivido. Margarida, ao despertar dum sono, também inquieto, por que mal passara, encontrou-a acordada e já aparentemente tranquila. Receando renovar-lhe a crise em nada lhe falou. Clara olhava-a em silêncio, mas como que não ousava também interrogá-la.

Afinal fez um esforço, fitou a irmã nos olhos arrasados de lágrimas e disse com desalento: — Tudo está acabado! De hoje em diante, todos me apontarão ao dedo e me chamarão uma rapariga perdida. Margarida não pode também reprimir as lágrimas: — Que estás a dizer, Clarinha? Foi mau o passo que deste, foi; mas sossega. Eu, que te ouvi, sei que estás inocente.
— Ouviste?
— Tudo... Eu sabia... Eu suspeitava a verdade.
— Mas ele...
— Ele... Pedro? Nada sabe ainda.
— Nada sabe? Queres enganar-me, Margarida? Pois ele nãosurpreendeu o... outro, quando...
— Mas ignora que fosses tu...
— Então quem julga que era? Margarida calou-se embaraçada, e desviou a vista do olhar fixo da irmã.

— Não sei, mas... tenho a certeza de que ele não suspeita de ti... E sabes? é preciso fazer agora por te levantares, e te alegrares, para que, se ele vier por aí, não conheça ao ver o estado em que estás, a verdade, ou suspeite mais do que a verdade; que é ainda muito pior. Vamos, veste-te; foi uma nuvem a de ontem; uma nuvem que passou. Hoje está um sol tão vivo, acrescentou, abrindo as portas das janelas que dá força e alegria. Vê. Ora anda, levanta-te. Enquanto Margarida assim falava, Clara parecia engolfada em profunda abstração. Afinal, como se nada tivesse percebido de quanto ultimamente Margarida lhe dissera, exclamou com vivacidade: — Guida, eu quero saber como isto é. Pedro soube que estava uma mulher ontem à noite no jardim. Se, como dizes, ele não suspeita de mim, de quem pode pois suspeitar?

Margarida não respondeu, e abaixou os olhos perturbada: — Guida, dize-me a verdade continuou Clara mais inquieta já. Pedro julga-me inocente.
— Julga.
— Quem é pois a seus olhos a culpada? A confusão de Margarida serviu de resposta. De pálidas que estavam, tingiram-se então de um rubor de indignação as faces de Clara. meio erguida no leito, os olhos animados, os lábios trêmulos, exclamou: — Ele suspeita de ti! de ti! Margarida? Pedro suspeita de ti? E pôde ter um pensamento... e pôde imaginar que tu serias... Atreveu-se a acusar-te! Ele? Pedro! Mas diz-me, Guida, Como ele fez isso? Quem lhe deu esse direito?
— Fui eu.
— Tu!
— Sim, fui eu. Não lho poderei eu dar? Acrescentou Margarida, quase sorrindo, e, afastando os cabelos desordenados, que cobriam a fronte da irmã.

— Entendo. Perdeste-te para me salvar. Limpaste com os teus vestidos a lama dos meus, para me apresentares pura aos olhos do meu noivo, que com razão me supunha culpada! Entendo. Viste-me perdida, e fizeste como aquela criança que, há tempos, se afogou para livrar um irmão da corrente; salvaste-me, mas afundando-te. E havia eu de consentir nisso, Margarida? Tão má ideia fazes tu de mim, para imaginares que aceitaria tu um sacrifício igual? Não; quero que Pedro saiba tudo; que me perdoe ou que me despreze depois; a uma ou outra coisa me sujeitarei; mas sacudir sobre a tua cabeça a vergonha que chamei sobre mim, Oh! Isso... Margarida tomou-lhe afetuosamente as mãos e em tom persuasivo pôs-se a dizer: — Ora escuta, Clarinha. Hás de primeiro ouvir-me com muito sossego e muito juízo e depois dirás se eu tenho razão. Queres contar a verdade a Pedro, dizes tu. Que fazes com isso? Torná-lo infeliz, fazes com que entre ele e o irmão exista sempre, daí por diante, um motivo para aversão; e a ti, que amas Pedro, apesar de uma leviandade de momentos, só.

 

FIM

 

 

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